Talvez o leitor não visse,
Entre editais publicados,
Uma boa gulodice?
Abra esses beiços amados.
Vamos, não tenha vergonha,
Estenda agora a linguinha,
Para que esta mão lhe ponha
Sobre ela esta cocadinha.
Disse nesse documento
A câmara que é vedado
Usar o divertimento
Entrudo, como é chamado.
Impôs as palavras duras
Do parágrafo e artigo
Do código de posturas,
Código já meio antigo.
A mim disse que a pessoa
Que outras pessoas molhasse,
Fosse a água má ou boa
Que das seringas jorrasse,
Incorreria na multa
De uns tantos mil-réis taxados,
E não ficaria inulta,
Se os não desse ali contados.
Porque iria nesse caso
Pagar suas tropelias
Na cadeia, por um prazo
De (no mínimo) dois dias.
E as laranjas, que se achassem
Na rua ou na estrada à venda,
Mandava que se quebrassem,
Como execrável fazenda.
Laranja, bem entendido,
Laranja, própria de entrudo,
Um globo de cera, enchido
Com água... às vezes, com tudo.
Ora, se o leitor compara
A exemplar compostura
Do povo (exemplar e rara)
Com o dizer da postura;
Se adverte que uma só pinga
De água não caiu na gente,
Que não houve uma seringa
Para acudir a um doente;
Que o belo colo das damas
Não viu o gesto brejeiro
De apagar-lhe internas chamas
Quebrando um limão de cheiro;
Conclui logo que a cidade
Obedece, antes de tudo,
A si (porque a edilidade
É ela) e deixou o entrudo.
Porém eu, que vi, em todos
Os anos, isto na imprensa,
Já desde o tempo dos godos
(João, com tua licença!);
E que, apesar de postura,
Vi seringas respeitáveis
De água cheirosa e água pura,
Terríveis e inopináveis;
Crioulas e molequinhos
Carregando em tabuleiros
Prontinhos e arrumadinhos
Infindos limões de cheiro;
Eu diversamente opino,
E digo que a lei se engana,
Se cuida ter no destino
Alguma ação soberana.
Recorda a mosca pousada
Na carroça, diz a fama,
Que, ao vê-la desatolada,
Cuidou tirá-la da lama.
Não, amiga lei. O entrudo
Desapareceu um dia
Entre calções de veludo,
Carnavalesca folia.
Reapareceu mais tarde;
Vingou por bastantes anos,
Com estrondo, com alarde,
Triunfos grandes e ufanos.
Chega a polícia de novo
E desterra o velho entrudo;
Troca de brinquedo o povo,
Fica somente veludo.
Mas quando houverem passado
O tempo e a policia, a ponta
Da orelha do desterrado
Entre bisnagas aponta.
E porque legem habemus,
Seja branda ou seja dura,
Anualmente veremos
A mesma inútil postura.
Fonte:
Obra Completa de Machado de Assis, Edições Jackson, Rio de Janeiro, 1937.
Publicado originalmente na Gazeta de Noticias, Rio de Janeiro, de 01/11/1886 a 24/02/1888.
Entre editais publicados,
Uma boa gulodice?
Abra esses beiços amados.
Vamos, não tenha vergonha,
Estenda agora a linguinha,
Para que esta mão lhe ponha
Sobre ela esta cocadinha.
Disse nesse documento
A câmara que é vedado
Usar o divertimento
Entrudo, como é chamado.
Impôs as palavras duras
Do parágrafo e artigo
Do código de posturas,
Código já meio antigo.
A mim disse que a pessoa
Que outras pessoas molhasse,
Fosse a água má ou boa
Que das seringas jorrasse,
Incorreria na multa
De uns tantos mil-réis taxados,
E não ficaria inulta,
Se os não desse ali contados.
Porque iria nesse caso
Pagar suas tropelias
Na cadeia, por um prazo
De (no mínimo) dois dias.
E as laranjas, que se achassem
Na rua ou na estrada à venda,
Mandava que se quebrassem,
Como execrável fazenda.
Laranja, bem entendido,
Laranja, própria de entrudo,
Um globo de cera, enchido
Com água... às vezes, com tudo.
Ora, se o leitor compara
A exemplar compostura
Do povo (exemplar e rara)
Com o dizer da postura;
Se adverte que uma só pinga
De água não caiu na gente,
Que não houve uma seringa
Para acudir a um doente;
Que o belo colo das damas
Não viu o gesto brejeiro
De apagar-lhe internas chamas
Quebrando um limão de cheiro;
Conclui logo que a cidade
Obedece, antes de tudo,
A si (porque a edilidade
É ela) e deixou o entrudo.
Porém eu, que vi, em todos
Os anos, isto na imprensa,
Já desde o tempo dos godos
(João, com tua licença!);
E que, apesar de postura,
Vi seringas respeitáveis
De água cheirosa e água pura,
Terríveis e inopináveis;
Crioulas e molequinhos
Carregando em tabuleiros
Prontinhos e arrumadinhos
Infindos limões de cheiro;
Eu diversamente opino,
E digo que a lei se engana,
Se cuida ter no destino
Alguma ação soberana.
Recorda a mosca pousada
Na carroça, diz a fama,
Que, ao vê-la desatolada,
Cuidou tirá-la da lama.
Não, amiga lei. O entrudo
Desapareceu um dia
Entre calções de veludo,
Carnavalesca folia.
Reapareceu mais tarde;
Vingou por bastantes anos,
Com estrondo, com alarde,
Triunfos grandes e ufanos.
Chega a polícia de novo
E desterra o velho entrudo;
Troca de brinquedo o povo,
Fica somente veludo.
Mas quando houverem passado
O tempo e a policia, a ponta
Da orelha do desterrado
Entre bisnagas aponta.
E porque legem habemus,
Seja branda ou seja dura,
Anualmente veremos
A mesma inútil postura.
Fonte:
Obra Completa de Machado de Assis, Edições Jackson, Rio de Janeiro, 1937.
Publicado originalmente na Gazeta de Noticias, Rio de Janeiro, de 01/11/1886 a 24/02/1888.
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