Roberto Amaral (R. Átila A. Vieira) nasceu em Fortaleza, 1940. Mudou-se para o Rio de Janeiro em 1970. Graduou-se como bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais pela Faculdade de Direito da Universidade Federal do Ceará, em 1964. No ano seguinte, formou-se em Filosofia pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras do Ceará. Autor de mais de duas dezenas de livros na área da ciência-política-comunicação-direito, publicou também Viagem e Outras Estórias (contos), São Paulo: Brasiliense, 1991; Não Há Noite Tão Longa (romance), Rio de Janeiro: Record, 1996, e Limites (contos), Rio de Janeiro: Record, 1999.
Há muito se preconiza que a falta de tempo para leitura tem levado os escritores a escreverem poemas e contos curtos. E, em razão disso, o romance seria gênero do passado. Entretanto, publicam-se todo ano milhares de romances no mundo. E a maioria dos contistas não se deixou seduzir pela fórmula do chamado miniconto. Roberto Amaral é um deles. Algumas de suas narrativas chegam a mais de vinte páginas. Esse fôlego de atleta empurra o ficcionista para caminhos mais largos e longos, que aproximam suas composições de pequenas novelas. Assim, nele o tempo é sempre dilatado. Não se contenta com flashes, flagrantes, um só episódio. “Pessach” subdivide-se em três momentos. Essa “mudança de foco” ocorre em outras peças. Em “Amor” primeiro se vê Mariazinha num quarto de hotel. No meio da história surge “o velho Praxedes”, pai da moça citada, e Dr. Santana, futuro marido dela. Novo hiato, e Marizinha reaparece em retrospecto, ao encontro do novo amor, o jovem Janjão. E, ao final, a cena do hotel se completa. O desfecho é o flagrante do adultério: “quando se deparam (Mariazinha e Janjão) com os olhos esbugalhados do juiz”.
Em “Conto das águas” diversos episódios se costuram cronologicamente e até iludem o leitor. Melquíades, o protagonista, se mostra em luta com as formigas que invadem a casa. O leitor não entende logo que as inimigas do homem sejam formigas: “elas permaneciam inatingíveis e invulneráveis”, o que acontece na terceira página: “Vêm desde cedo, irmãos siameses, o ódio e a repugnância às formigas.” Não compreende também que o narrador prepara sua atenção para uma longa chuva e que as formigas não terão mais nenhuma importância na obra. E a mudança de foco se dá de forma abrupta: “Foi nesse exato momento, numa dessas noites, que o céu iluminou a cozinha e depois despencou sobre sua cabeça”. Consciente de sua arte, Roberto Amaral não permite ao leitor se dizer enganado: as formigas simplesmente anunciaram a tempestade.
O ficcionista não se limita ao espaço geográfico de uma cidade, imaginária ou real. Os episódios de suas composições transcorrem em pequenas cidades, em Fortaleza, no Rio de Janeiro, em Paris, etc. Em “Você vai morrer” a cidade pequena aparece logo no início da narrativa. O narrador a chama de vila, embora se refira a uma avenida, a um mercado, a uma rua e uma praça. Mais adiante se sabe onde se localiza a tal vila: no Nordeste brasileiro, pela referência a “anos de seca” e penitentes. Na sequência da narração, o leitor percebe com mais nitidez onde vivem os personagens: no Ceará, pela menção de alguns topônimos (Canindé, Quixadá, Joazeiro (sic) do Norte, Guaramiranga) e nomes históricos (padre Cícero, beata Maria de Araújo). “Pessach” tem como espaço geográfico o Rio de Janeiro. E não são meras citações de nomes de logradouros e bairros. O personagem percorre as ruas e o narrador descreve o espaço como se filmasse. Em “Amor” o escritor volta ao Ceará. Narrações/descrições do centro da cidade conduzem o leitor pela mão, em passeio saudosista, sem deixar de lado a citação de nomes de velhos logradouros e prédios históricos. O mesmo se vê em “Feliz Natal”, com as referências ao tradicional diário O Povo e à Livraria do Edésio. E em “Conto das águas”, quando diz que a “estreita Domingos Olímpio estava alagada”. Hoje a avenida é larga, mas ainda se alaga quando chove. O alagamento da cidade de Fortaleza é descrito com perfeição.
Os longos períodos de seca têm inspirado ficcionistas nordestinos, desde o século XIX, a criar romances e contos de retirantes. Por outro lado, essa mesma escassez de água tem induzido escritores do Nordeste a “inventar” chuvas, aguaceiros, muitas águas – o que também sucede, é claro, mas nunca como em outras regiões do país. Assim, Caio Porfírio Carneiro escreveu a coleção Chuva, os dez cavaleiros, em que todas as histórias têm como pano de fundo a chuva. Roberto Amaral não escapou desse sonho de nordestino: algumas de suas histórias estão repletas de água. O próprio título de um deles – “Conto das águas” – bastaria para ilustrar este argumento. Uma frase – “quando se viu chover tanto assim no Ceará?” – mostra o “horror” vivido pela população cearense naquele ano de tanta chuva, quando todos os açudes do Estado estiveram cheios “e o Orós pegou sua lâmina mais alta, desde que a barragem foi construída”. Como se descrevesse o dilúvio, o narrador encerra a história assim: “As águas continuaram subindo.”
Os personagens de Roberto Amaral são quase sempre trágicos ou lembram os heróis e as heroínas dos romances realistas europeus do século XIX, de Shakespeare, dos gregos. O clima de tragédia percorre todas as linhas de “Você vai morrer!”. Há mesmo um quê de helenismo nesta peça, como no nome de uma personagem, Helena, inconsolada, com a morte do marido, desde moça até a velhice. A epígrafe de “Sentença” – “A vida é uma triste armadilha”, Tchekhov – referenda este raciocínio.
Outros personagens do escritor parecem menos trágicos, como os de “Pessach”, judeus brasileiros. Entretanto, o principal tema da obra é a solidão, a velhice, a proximidade da morte, tão presente em Abrão, apegado ao comércio, aos livros, aos sonhos, às preocupações. Chegado aos 60 anos, sentia que a vida era “uma pequena solidão que caminha para a solidão absoluta”. Mariazinha, de “Amor”, tem muito daquelas mulheres dos romances realistas franceses. No enigmático “Feliz Natal” também é explorado o tema da solidão e da morte. Estranhamente, o protagonista é chamado apenas de Advogado, como se este fosse seu nome. Melquíades, de “Conto das águas”, não chega a ser trágico. Talvez patético, primeiro em sua luta desesperada com as formigas, depois com a chuva que não pára. Sua impotência, sua fraqueza, ele que sempre fora tão correto, tão civilizado, tão cumpridor dos deveres.
Construídas nos moldes das narrativas tradicionais, as composições ficcionais de Roberto Amaral têm certo ímã, ainda mais porque sua linguagem não se alimenta de modismos, malabarismos e outros “ismos”. Entretanto, o ensaísta (ele é autor de 16 livros de ensaios) ainda não se distanciou totalmente do contista. Alguns contos poderiam ser mais enxutos, menos informativos, menos recheados de sociologia. Mas, mesmo assim, os limites da prosa ficcional de Roberto Amaral são largos.
Fonte:
MACIEL, Nilto. Contistas do Ceará: D’A Quinzena ao Caos Portátil. Fortaleza/CE: Imprece, 2008.
Há muito se preconiza que a falta de tempo para leitura tem levado os escritores a escreverem poemas e contos curtos. E, em razão disso, o romance seria gênero do passado. Entretanto, publicam-se todo ano milhares de romances no mundo. E a maioria dos contistas não se deixou seduzir pela fórmula do chamado miniconto. Roberto Amaral é um deles. Algumas de suas narrativas chegam a mais de vinte páginas. Esse fôlego de atleta empurra o ficcionista para caminhos mais largos e longos, que aproximam suas composições de pequenas novelas. Assim, nele o tempo é sempre dilatado. Não se contenta com flashes, flagrantes, um só episódio. “Pessach” subdivide-se em três momentos. Essa “mudança de foco” ocorre em outras peças. Em “Amor” primeiro se vê Mariazinha num quarto de hotel. No meio da história surge “o velho Praxedes”, pai da moça citada, e Dr. Santana, futuro marido dela. Novo hiato, e Marizinha reaparece em retrospecto, ao encontro do novo amor, o jovem Janjão. E, ao final, a cena do hotel se completa. O desfecho é o flagrante do adultério: “quando se deparam (Mariazinha e Janjão) com os olhos esbugalhados do juiz”.
Em “Conto das águas” diversos episódios se costuram cronologicamente e até iludem o leitor. Melquíades, o protagonista, se mostra em luta com as formigas que invadem a casa. O leitor não entende logo que as inimigas do homem sejam formigas: “elas permaneciam inatingíveis e invulneráveis”, o que acontece na terceira página: “Vêm desde cedo, irmãos siameses, o ódio e a repugnância às formigas.” Não compreende também que o narrador prepara sua atenção para uma longa chuva e que as formigas não terão mais nenhuma importância na obra. E a mudança de foco se dá de forma abrupta: “Foi nesse exato momento, numa dessas noites, que o céu iluminou a cozinha e depois despencou sobre sua cabeça”. Consciente de sua arte, Roberto Amaral não permite ao leitor se dizer enganado: as formigas simplesmente anunciaram a tempestade.
O ficcionista não se limita ao espaço geográfico de uma cidade, imaginária ou real. Os episódios de suas composições transcorrem em pequenas cidades, em Fortaleza, no Rio de Janeiro, em Paris, etc. Em “Você vai morrer” a cidade pequena aparece logo no início da narrativa. O narrador a chama de vila, embora se refira a uma avenida, a um mercado, a uma rua e uma praça. Mais adiante se sabe onde se localiza a tal vila: no Nordeste brasileiro, pela referência a “anos de seca” e penitentes. Na sequência da narração, o leitor percebe com mais nitidez onde vivem os personagens: no Ceará, pela menção de alguns topônimos (Canindé, Quixadá, Joazeiro (sic) do Norte, Guaramiranga) e nomes históricos (padre Cícero, beata Maria de Araújo). “Pessach” tem como espaço geográfico o Rio de Janeiro. E não são meras citações de nomes de logradouros e bairros. O personagem percorre as ruas e o narrador descreve o espaço como se filmasse. Em “Amor” o escritor volta ao Ceará. Narrações/descrições do centro da cidade conduzem o leitor pela mão, em passeio saudosista, sem deixar de lado a citação de nomes de velhos logradouros e prédios históricos. O mesmo se vê em “Feliz Natal”, com as referências ao tradicional diário O Povo e à Livraria do Edésio. E em “Conto das águas”, quando diz que a “estreita Domingos Olímpio estava alagada”. Hoje a avenida é larga, mas ainda se alaga quando chove. O alagamento da cidade de Fortaleza é descrito com perfeição.
Os longos períodos de seca têm inspirado ficcionistas nordestinos, desde o século XIX, a criar romances e contos de retirantes. Por outro lado, essa mesma escassez de água tem induzido escritores do Nordeste a “inventar” chuvas, aguaceiros, muitas águas – o que também sucede, é claro, mas nunca como em outras regiões do país. Assim, Caio Porfírio Carneiro escreveu a coleção Chuva, os dez cavaleiros, em que todas as histórias têm como pano de fundo a chuva. Roberto Amaral não escapou desse sonho de nordestino: algumas de suas histórias estão repletas de água. O próprio título de um deles – “Conto das águas” – bastaria para ilustrar este argumento. Uma frase – “quando se viu chover tanto assim no Ceará?” – mostra o “horror” vivido pela população cearense naquele ano de tanta chuva, quando todos os açudes do Estado estiveram cheios “e o Orós pegou sua lâmina mais alta, desde que a barragem foi construída”. Como se descrevesse o dilúvio, o narrador encerra a história assim: “As águas continuaram subindo.”
Os personagens de Roberto Amaral são quase sempre trágicos ou lembram os heróis e as heroínas dos romances realistas europeus do século XIX, de Shakespeare, dos gregos. O clima de tragédia percorre todas as linhas de “Você vai morrer!”. Há mesmo um quê de helenismo nesta peça, como no nome de uma personagem, Helena, inconsolada, com a morte do marido, desde moça até a velhice. A epígrafe de “Sentença” – “A vida é uma triste armadilha”, Tchekhov – referenda este raciocínio.
Outros personagens do escritor parecem menos trágicos, como os de “Pessach”, judeus brasileiros. Entretanto, o principal tema da obra é a solidão, a velhice, a proximidade da morte, tão presente em Abrão, apegado ao comércio, aos livros, aos sonhos, às preocupações. Chegado aos 60 anos, sentia que a vida era “uma pequena solidão que caminha para a solidão absoluta”. Mariazinha, de “Amor”, tem muito daquelas mulheres dos romances realistas franceses. No enigmático “Feliz Natal” também é explorado o tema da solidão e da morte. Estranhamente, o protagonista é chamado apenas de Advogado, como se este fosse seu nome. Melquíades, de “Conto das águas”, não chega a ser trágico. Talvez patético, primeiro em sua luta desesperada com as formigas, depois com a chuva que não pára. Sua impotência, sua fraqueza, ele que sempre fora tão correto, tão civilizado, tão cumpridor dos deveres.
Construídas nos moldes das narrativas tradicionais, as composições ficcionais de Roberto Amaral têm certo ímã, ainda mais porque sua linguagem não se alimenta de modismos, malabarismos e outros “ismos”. Entretanto, o ensaísta (ele é autor de 16 livros de ensaios) ainda não se distanciou totalmente do contista. Alguns contos poderiam ser mais enxutos, menos informativos, menos recheados de sociologia. Mas, mesmo assim, os limites da prosa ficcional de Roberto Amaral são largos.
Fonte:
MACIEL, Nilto. Contistas do Ceará: D’A Quinzena ao Caos Portátil. Fortaleza/CE: Imprece, 2008.
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