quinta-feira, 20 de fevereiro de 2014

Jangada de Versos do Ceará (10) – Márcia Theóphilo

Márcia Theóphilo
Fortaleza/CE, 1940


A NOITE

No princípio havia noite
não se sabia o que era noite
havia somente luz e era tão intensa, nos trópicos
que se tinha a sensação de passar períodos de azul
de vermelho, de verde
era tão forte a luz que as pessoas tinham
a sensação de flutuar
dentro das cores
dentro das plantas
tudo o que hoje não fala, falava
intercomunicava-se entre si
as árvores falavam
e estimulavam o pensamento com suas flores
não se sabia o que era negro
existiam somente as cores que emanavam da luz
e distribuíam energia-pensamento
mas não se dormia
porque a música nasceu com o silêncio e com a noite
a música nasceu com a consciência dos primeiros ritmos
e com a noite nasceu o primeiro canto.

OS COQUEIROS

 O rosto daquela mulher
impressionou-me muito
éramos cinco
um morreu pelo caminho
e os outros
será que estão vivos?:

—olha o puxa-puxa criançada  olha o puxa-puxa!—

outro dia viajei
por terras desconhecidas
nos contornos das praias
os coqueiros

—água de coco gela água de coco gelada!—

as porções de açúcar estão crescendo
o fôlego
estou perdendo fôlego

está havendo aumento de terra
não existe mais água.

AS VITÓRIAS RÉGIAS

Eram estrelas que caiam no rio, eram estrelas:
as vitórias régias. Eu sei, Yanoá pensa,
não só os animais, tudo da natureza têm uma alma
uma alma alada que deixa o mundo quando sonha.
E ela sempre sonha lugares desconhecidos.
«Yanoá, Yanoá desperta
que os pássaros podem te levar em suas asas
os sonhos podem te destruir».
Acordava espantada de seus gritos.
«Os pássaros querem levar minha alma,
eu não quero ficar sozinha com meus pensamentos».
Seu rosto se ilumina e os cabelos espessos e lisos escorriam
pelo rosto enrugado, antigo, esculpido dos sonhos e do sol.
Um dia Yanoá, andará com seus sonhos, junto com Yara
ao fundos das águas. Yanoá,
vem brincar comigo, protege-me
dos peixes que dominam as águas e as plantas
crescidas no fundo do mar.»
O dia inteiro os peixes vão e vêem
entre teus longos cabelos.

FLORESTA MEU DICIONÁRIO

Louca risada a tua
ressoa afiada
mandioca brava, tua risada
tuas caricias, teu prazer agudo.
Kupahúba vive, anda, e volta
até o sol desaparecer, no dia
entre folhas e ervas,insetos, apodrecidas
matérias vegetais; nos multiplicaremos
o movimento não é deserto, é rio
rouba, saqueia, bebe o que quiseres
é abundante este rio, não para continua
para cantar o som das palavras
Açana, Yana, Nacaira
Caja, Pacaba, Maçaranduba
cada palavra um ser, palavras que escrevo
eu vejo um ar cheio de palavras
a floresta é meu dicionário
palavras, vivas e machucadas
ásperas de caminhos percorridos
Acana, Tapajura, Igarapé
cada palavra um ser, ressoando afiada.
Kupahúba abriu os olhos e aprendeu a ler.

FESTA DA LUA NOVA

Não escutas as músicas que se expandem no alto?
Todos cantam e bailam sem parar.
Invocam a lua nova.
Por quatro dias dançando
com corpo pintado de um vermelho vivo.
Para a festa da lua
os dançarinos vão à casa das máscaras.
Vestem-se de animais e troncos de arvores.
Depois, na praça da aldeia,
todos cantam e contam: seus ódios, seus amores.

MUNGUBA

Alguém olhando-me
mede meu esplendoroso corpo
mas eu, Munguba frondosa
sou mais ampla
grandes são minhas flores
brancas, amarelas, rosadas
um olhar não basta para me conter
luzes e sombras, alargam-me, diluem-me
no grande rio, em terrenos alagadiços
embriões de luzes
fertilizo cores irredutíveis
semente e fruto corpos em transmutação
ferruginoso - avermelhado
congrego as energias
em minhas vísceras
atraio o apetite, o desejo voraz
de cutias, onças, macacos.
No hálito quente das águas tropicais
em meus ramos, milhares
de penas e plumas, arco-íris de pássaros
cantam seus sonhos de sedução

Fontes:
Antonio Miranda 
– Revista Eletrônica do Instituto de Humanidades. Unigranrio. Volume II, Número VIII - Jan-Mar 2004
– http://www.marciatheophilo.it/index.php/category/poesie/?lang=pt

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