domingo, 23 de fevereiro de 2014

Rachel de Queiroz (A Fábula do Homem e seu Garrafão)

Pelo interior do Brasil é comum a presença de um cara que é chamado de "propagandista". Aqui pelo estado do Rio, antes da camelotagem desenfreada, ele era chamado também de "camelô".

Usava roupa vistosa, por exemplo: paletó xadrez vermelho e verde, calças bois de rose, gravata azul-bebê. Em geral fazia propaganda de remédios que curam tudo, todos os males do mundo e até maus pensamentos.

Ouvi que vendia xarope contra sífilis e, referindo-se às doenças "sexualmente transmissíveis", falava poeticamente em "mal de amores".

E foi a propósito de propagandistas que recordávamos ontem, minha irmã e eu, um caso que nosso pai nos contava garantindo que era verdadeiro.

Sucedeu numa cidade cujo nome ele não dava, para "evitar constrangimentos".

O sujeito já desceu do trem vestido a caráter: terno de listras colorido, sapato pampa, camisa roxo-batata, gravata amarela.

Na pensão registrou-se, levou a mala à sua vaga no quarto e, portando um grande rolo de papel debaixo do braço, pediu permissão à dona da casa para expor à sua porta um cartaz, que dizia o seguinte: "Hoje, às 16 horas, venham ver o homem que entra no garrafão!"

Dali, foi à igreja à procura do vigário, solicitando a sua reverência licença para dar uma demonstração estupefata, tendo como palco a escadaria da matriz. O padre ficou meio espantado quando leu o cartaz, mas acedeu. Também queria ver aquilo. Os outros cartazes foram espalhados pelas ruas, saturando todo o lugarejo.

Claro que a curiosidade foi enorme. Fizeram-se apostas, teve gente que rasgava nota de cem em duas, que é a maneira mais popular de registrar apostas sem papel escrito. Quem vai ganhar vai receber do outro a sua metade da nota.

Logo depois do almoço, o nosso homem foi à farmácia, onde negociou o aluguel de um garrafão de vidro, desses que transportam água destilada. Da pensão conseguiu ainda uma mesinha, e assim, pontualmente às quatro da tarde, lá estava ele com seus trajes multicores e os seus apetrechos, pronto para a "demonstração".

A praça pululava de gente. Faziam-se as mais ousadas conjecturas: "O garrafão é de borracha transparente. No que o homem for entrando, ele estica, até caber". Outros acreditavam em hipnotismo. "Ele hipnotiza todo mundo e aí a gente acredita que ele entrou em qualquer coisa." Outros achavam que era só um truque: "Não sei como é, mas tem que ser um truque".

E assim, ele começou a falar sob aplausos e assobios. Delicadamente pediu silêncio à multidão: ia começar o espetáculo.

Tirou o casaco, tirou a gravata, pôs no chão o chapéu de palhinha, mostrou as mãos vazias. Então, lentamente, lentamente, tentou enfiar a mão direita pelo gargalo do garrafão. Não cabia, claro. Estirou o polegar, introduziu o dedo no gargalo - entrou! Mas parou na junta. Ele suspirava, mas, com a mão esquerda, tentou de novo: não entrou. Descalçou os sapatos, experimentou o pé - qual! Não entrou mesmo - era ainda maior que a mão. Tentou o nariz, até que ralou e minou sangue. Não entrou também.

E, diante do silêncio atônito da multidão, o homem abriu os braços de pura impotência e constatou desolado:

- Realmente, foi impossível. Mas vocês bem que viram: eu tentei!

(Correio Braziliense em 07/01/2002)

Fonte:
Academia Brasileira de Letras

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