quinta-feira, 13 de fevereiro de 2014

Machado de Assis (Gazeta de Holanda) N.° 40 – 14 de dezembro de 1887

Por Júpiter! Cobre o rosto.
Risonha Hélade amiga,
Cobre-o de pejo e desgosto;
Chora a tua graça antiga.

Lembras-te daqueles tempos,
— Da galante mocidade,
Em que eram teus passatempos
Grave e fina agilidade?

Em que as tuas formas belas
Mostravam-se aos olhos puros,
Tempos quase sem mazelas,
Quase sem dias escuros?

Então floresciam jogos
De toda casta e destino,
E coros cheios de rogos
Ao céu e ao povo divino.

Já não falo dos famosos
Jogos de corridas — quando
Voavam carros briosos
Pelo solo venerando.

Falo (e serve ao que ora trato)
Falo daquelas usanças
Em que vinha o pugilato
Entre cantigas e danças.

Seguramente que havia
Pancada — porém pancada
De valor e bizarria
Por uma cousa sagrada.

Eram modos e maneiras
De lutar de língua e punho,
Traziam tantas canseiras,
Grécia, o teu amável cunho.

E agora, ai, chora pitanga!
Pitanga é fruta moderna,
Mas a qualquer mágoa ou zanga
Qualquer fruta é fruta eterna.

Contudo, se não te agrada,
Chora aquele mel do Himeto,
Que inda agora a abelha amada
Verte ao comum e ao seleto.

Chora o que for, chora, chora...
Vês este grego, chamado
Manuel Rottas, que aqui mora?
Foi há pouco encarcerado.

Que pensas tu que fazia
Este filho tão malandro,
Em cujas veias podia
Correr sangue de Lisandro?

Ouve... fecha os olhos... Cobre
O belo rosto, faceira;
Não há cautela que sobre...
Rotas era capoeira.

Sim, capoeira, repito.
E cometia na praça
Das Marinhas o delito
De dar aos colegas caça.

Chamavam-lhe por gracejo
O grego das ostras, nome
Que em si mesmo não dá pejo,
Antes creio que dá fome.

Grego e capoeira! Ó manes
Dos seus avós acabados!
Ó recordações inanes
De outros tempos e outros lados!

Bem conheço que, assim como
Cada roca tem seu fuso,
Cada macieira seu pomo,
Tem cada terra seu uso.

Nem é o uso que me espanta
Espanta-me esse contraste
Da terra e da sua planta,
Da habitação e do traste.

Bem sei que a Grécia recente
É outra da Grécia antiga,
Mas no coração da gente
És a mesma, Hélade amiga.

E por mais que a razão pura
Mostres que ora estás mudada,
Espanta-me esta figura:
Rasteira, grego e facada.

Fonte:
Obra Completa de Machado de Assis, Edições Jackson, Rio de Janeiro, 1937.
Publicado originalmente na Gazeta de Noticias, Rio de Janeiro, de 01/11/1886 a 24/02/1888.

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