terça-feira, 11 de fevereiro de 2014

Machado de Assis (Gazeta de Holanda) N.º 39 – 6 de dezembro de 1887

Peguei da mais rica pena,
Molhei-a na melhor tinta,
E fiz uma cantilena:
“Tinta que repinta e pinta”.

Que haja nisso algum sentido,
Livre-me Deus de escrevê-lo;
Sentido, bem entendido,
No sentido de entendê-lo.

Mas que há nessa linha escura
Uma íntima harmonia
Com tudo o mais que se apura
De tantos casos do dia,

Isso é que não há negá-lo,
Exceto se uma pessoa
Quiser fazer de cavalo,
Assim, sem mais nada, à toa.

Pois não andou toda a gente
Com a imaginação acesa,
Em busca do presidente
Da República Francesa?

Havia apostas. Um era
Ferry, outro — homem de espada,
Outro Freycinet quisera,
Outro — Floquet, outro — nada.

E de tanta gente oposta
Sai um que a ninguém havia
Feito cuidar em aposta,
Se seria ou não seria...

Já sei... Não me explique, amigo;
Não seja de uns desfrutáveis
Que juram sempre consigo
Explicar os explicáveis.

Por exemplo, não me explique
O Ney, nem a delicada
Ação que faz com que fique
Toda a idade pasmada.

Essa jóia, esses quinhentos
Mil réis dados de pronto,
Como quem espalha aos ventos
Palavras leves de um conto,

Ação foi de grande siso;
Ter-se entre duas pilhérias
Ney, o marechal do riso,
Consolador de misérias.

E muitos pasmados ficam,
Por não crer que alguém possua
Cobres que se multiplicam
E os lance estéreis à rua.

Depois disto vem aquilo
Que a nenhum de nós consola,
Nem deixa a ninguém tranqüilo,
Nem traz figura de esmola.

Refiro-me às ameaças
Da Amazônia, que deseja,
Resguardar as suas graças
Do nosso amor, salvo seja.

Tudo porque há um sujeito,
Cardoso, ou cousa que o valha,
Que, não sei por que respeito,
Na tarefa em que trabalha,

Brigou com outra pessoa,
E os dois, que podiam juntos
Fazer muito cousa boa,
Em variados assuntos,

Agora não fazem nada;
Pregam-me até esta peça
De pôr a quadra acabada
Pendente da que começa.

Depois, daquilo, aquil'outro,
Expressão que ficaria,
Não rimando (e mal) com potro,
Sozinha, sem companhia.

Aquil’outro é a abundância
De roubos eclesiásticos,
Feitos com a petulância
Dos grandes dedos elásticos.

Sacrílegas limpaduras
Da casa de Deus — dos ouros,
Das pratas sacras e puras...
Naturalmente, só mouros.

Mouros — sejam da Mourama,
Ou mouros da Cristandade,
Que os há de uma e de outra rama
Por toda essa humanidade.

Não foram seguramente
Os capoeiras da rua
Que matam e francamente
Pela forte gente sua.

Adeus, versos duros, frouxos,
Sem inspiração nem graça,
Obra destes dias coxos,
Furtados e sem chalaça.

Por isso peguei da pena,
Por isso a molhei na tinta,
E fiz esta cantilena:
“Tinta que repinta e pinta!”

Fonte:
Obra Completa de Machado de Assis, Edições Jackson, Rio de Janeiro, 1937.
Publicado originalmente na Gazeta de Noticias, Rio de Janeiro, de 01/11/1886 a 24/02/1888.

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