Eu cá, quando toda a gente
Chora ou treme de assustada,
Tenho um desejo veemente
De dar uma gargalhada.
E a razão, — se há razão nisto,
Não é senão porque é útil
Fazer deste mundo um misto
De terrífico e de fútil.
Outrora o teatro dava,
Ao riso afrouxando a rédea,
Depois de uma peça brava,
Uma farsa, uma comédia.
Acabado o Aristodemo,
Vinha uma ária do Martinho;
Ao fel que chorava o demo,
Ao fel que sucedia o vinho.
Eu não, eu misturo tudo,
De modo que cada grito,
Angustioso ou sanhudo,
Não nos traga um faniquito.
Ou então uso o contrário;
Quando é geral alegria
Solto o verbo funerário
E misturo a noite e o dia.
Para não irmos mais longe,
Ninguém dirá que passamos
Uma existência de monge,
Que rezamos, que choramos.
Antes vejo anunciados
Bailes de vários feitios,
Teatros abarrotados
De cristãos e de gentios.
Malgrado o sol e a poeira,
Corridas de bons cavalos;
Toda uma cidade inteira
Brincando sem intervalos.
Pois é justamente agora
Que eu, por integrar a vida,
Deito a vista para fora,
Desordenada, insofrida.
E, ao ver do lado do norte
Aquele pobre diabo
Que encontrou comprida morte
Onde torce a porca o rabo;
Que foi com rara presteza,
Agarrado, arrebatado,
E com toda a ira acesa,
Crucificado e esfolado;
Vingando a sorte, vingando
Aquela porca mesquinha
Que, em suas roças entrando,
Foi morta e não foi rainha;
E, ao lado do sul, a dama
Que à preta engolir fazia,
Não garoupa sem escama,
Nem doce, nem malvasia;
Mas comidas singulares,
Não feitas por encomenda,
E a beber com tais manjares
Vinho de outra pipa horrenda;
E se a boca recusava
O petisco enjoativo,
Tição aceso lhe dava
Novo e forte aperitivo;
Sem contar a bordoada,
Que as rijas carnes alanha,
E era a música obrigada
Daquela ceiata estranha;
Às pressas trago estas duras
Histórias com que tempero
As folias e aventuras,
E ato ao jovial o fero,
Para que, quando tomarmos
No Pascoal alguma cousa,
Ou algum colar mirarmos
Na loja do V. de Souza.
Digamos: — P’ra lá, menina,
Menina in-oitavo, in-fólio,
Dá cá tua mão divina
Ao teu amador Malvólio.
Fonte:
Obra Completa de Machado de Assis, Edições Jackson, Rio de Janeiro, 1937.
Publicado originalmente na Gazeta de Noticias, Rio de Janeiro, de 01/11/1886 a 24/02/1888.
Chora ou treme de assustada,
Tenho um desejo veemente
De dar uma gargalhada.
E a razão, — se há razão nisto,
Não é senão porque é útil
Fazer deste mundo um misto
De terrífico e de fútil.
Outrora o teatro dava,
Ao riso afrouxando a rédea,
Depois de uma peça brava,
Uma farsa, uma comédia.
Acabado o Aristodemo,
Vinha uma ária do Martinho;
Ao fel que chorava o demo,
Ao fel que sucedia o vinho.
Eu não, eu misturo tudo,
De modo que cada grito,
Angustioso ou sanhudo,
Não nos traga um faniquito.
Ou então uso o contrário;
Quando é geral alegria
Solto o verbo funerário
E misturo a noite e o dia.
Para não irmos mais longe,
Ninguém dirá que passamos
Uma existência de monge,
Que rezamos, que choramos.
Antes vejo anunciados
Bailes de vários feitios,
Teatros abarrotados
De cristãos e de gentios.
Malgrado o sol e a poeira,
Corridas de bons cavalos;
Toda uma cidade inteira
Brincando sem intervalos.
Pois é justamente agora
Que eu, por integrar a vida,
Deito a vista para fora,
Desordenada, insofrida.
E, ao ver do lado do norte
Aquele pobre diabo
Que encontrou comprida morte
Onde torce a porca o rabo;
Que foi com rara presteza,
Agarrado, arrebatado,
E com toda a ira acesa,
Crucificado e esfolado;
Vingando a sorte, vingando
Aquela porca mesquinha
Que, em suas roças entrando,
Foi morta e não foi rainha;
E, ao lado do sul, a dama
Que à preta engolir fazia,
Não garoupa sem escama,
Nem doce, nem malvasia;
Mas comidas singulares,
Não feitas por encomenda,
E a beber com tais manjares
Vinho de outra pipa horrenda;
E se a boca recusava
O petisco enjoativo,
Tição aceso lhe dava
Novo e forte aperitivo;
Sem contar a bordoada,
Que as rijas carnes alanha,
E era a música obrigada
Daquela ceiata estranha;
Às pressas trago estas duras
Histórias com que tempero
As folias e aventuras,
E ato ao jovial o fero,
Para que, quando tomarmos
No Pascoal alguma cousa,
Ou algum colar mirarmos
Na loja do V. de Souza.
Digamos: — P’ra lá, menina,
Menina in-oitavo, in-fólio,
Dá cá tua mão divina
Ao teu amador Malvólio.
Fonte:
Obra Completa de Machado de Assis, Edições Jackson, Rio de Janeiro, 1937.
Publicado originalmente na Gazeta de Noticias, Rio de Janeiro, de 01/11/1886 a 24/02/1888.
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