terça-feira, 30 de março de 2021

Rubem Braga (Dois escritores no quarto andar)

A última crônica de meu livro Um pé de milho é sobre a Rue Hamelin, de Paris, “onde morreu Proust”, faço notar doutamente, e onde vivi eu. Ao escrever aquela crônica eu ouvira cantar o galo, mas não sabia onde. Digo ali que “onde Proust morreu vive hoje um sindicato”. Era o que eu pensava na ocasião.

Eu vivia no quarto andar do número 44 e no segundo habitava meu amigo, o escritor gaúcho dom Carlos de Reverbel. Juntos fomos procurar o tal número onde morreu Proust e demos com o tal sindicato. Mas acontece que procurávamos um número errado. O verdadeiro — descobrimos depois — era o nosso 44 mesmo...

Não quero fazer pouco de dom Carlos de Reverbel, mas eu sou um proustiano mais íntimo do que ele. É verdade que meus inimigos assoalham que eu jamais li, no duro mesmo, todos aqueles volumes, embora, em conversa de salão eu seja capaz de discretear sobre Swan, descrever Combray ou Balbec, falar de Albertina ou da senhora duquesa de Guermantes. “O Braga tem suas lantejoulas, mas não sabe as coisas” — murmuram os invejosos.

Pois que se mordam de inveja: Proust morreu exatamente no apartamento do quarto andar, de número 44, onde eu vivi. Dom Carlos morava, eu já disse, no segundo; pode alegar a seu favor que várias vezes foi ao quarto me visitar, o que o classifica, sem dúvida alguma, como o segundo proustiano do Brasil.

Leon Pierre-Quint conta que Marcel Proust alugou todo o quarto andar do edifício que então devia ser novo; ali morreu em 1922, ano em que pela primeira vez eu vinha ao Rio de Janeiro, vestido de marinheiro do Encouraçado S. Paulo, trazido pela minha irmã para ver a Exposição do Centenário. Eu tinha 9 anos de idade, nunca ouvira falar de Proust e estava longe de supor que 25 anos depois iria dormir na cama em que ele morria aquele ano. Mais pobre do que Marcel, aluguei apenas o grande quarto de frente com uma entradinha e um banheiro, o que me custava 6 mil francos em 1947; não era caro, levando-se em conta que nesse tempo eu era casado.

Conta Leon Pierre-Quint que Proust escolheu um quarto muito frio (não diz qual) temendo que a calefação central fizesse mal à sua asma. Não posso afirmar, mas devia ser o meu quarto; era friíssimo. Imagino quantas vezes ele não se quedou, como eu, a olhar a rua lá embaixo, pela vidraça encardida, a esfregar as mãos de frio. Ah, bem que me parecia suspeita aquela velha cama, bem que notei certos estremecimentos nas cortinas e pressenti, no tapete desbotado, o rastro de antigos pés que o pisaram em noites de insônia, e vagas nódoas de remédio. Posso informar com a maior segurança que, pelo menos nos últimos anos de sua vida, Proust não tomava banho de chuveiro. Não havia chuveiro na casa. Encontrei uma banheira com manchas de sujos imemoriais; mandei lavá-la, esfregá-la, flambá-la com álcool, mas nem assim me animei a tomar um banho nela; preferi comprar um chuveirinho de borracha que adaptamos à pia. Eu não podia adivinhar que era a banheira de Proust...

Às vezes, pela madrugada — conta o biógrafo — Proust despachava Odilon em um táxi para procurar algum amigo que viesse conversar com ele. Imagino-o perfeitamente à espera, escutando o ruído agônico do pequeno elevador que, no quarto andar, para perigosamente entre dois degraus da escada, uma velha escada sempre às escuras em que os passos reboam absurdamente alto. O amigo o encontrava na cama, com um lenço no pescoço, todo vestido sob os cobertores, com luvas de algodão, vários pares de meias e o plastron branco sobre a camisa amarrotada, no quarto fechado cheirando a remédios, a asma, a fumegações, a Proust.

Eu positivamente ainda recolhi ali um pouco desse cheiro, dentro do qual foi escrito o último volume de Sodoma e Gomorra; homem bárbaro de um país semibárbaro, me lembro de que muitas vezes combati esse cheiro abrindo de par em par as portas que dão para a sacada e a que dá para o corredor, formando corrente de ar para grande pânico da arrumadeira. Ah, se eu soubesse aproveitar bem aquele cheiro, que coisas sutis não haveria escrito no lugar das croniquinhas triviais que eu mandava para O Globo!

Proust cochilava três dias à custa de veronal, depois ficava três dias desperto à custa de cafeína, falando de literatura, de pintura (esses jovens: Giraudoux, Picasso...), recitando Anatole ou Baudelaire, discutindo finanças e mundanismo, falando em mandar vir seus livros, seus móveis, suas coisas, o que nunca chegou a fazer.

Também tive minhas noites de insônia na Rue Hamelin; não terá ficado dentro de mim um pouco da angústia proustiana? Seria distintíssimo, mas receio que não; três copos de Beaujolais me punham facilmente em forma.

De qualquer modo, os jovens intelectuais que quiserem escrever sobre Proust devem me consultar para “fazer ambiente”. Posso, por exemplo, descrever o cubículo em que a concierge lá embaixo (uma velha, positivamente a mesma da era proustiana) está sempre fazendo contas, passando roupa a ferro ou espichando o nariz para ver quem entra, quando não atende ao telefone com sua voz chorosa:

— Passy, soixante-et-un deux fois...*

Tomem nota, rapazes: Passy 61-61; é o antigo telefone do Proust e do Braga...

Rio, maio, 1958.
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* soixante-et-un deux fois: do francês, sessenta e um duas vezes.

Fonte:
Rubem Braga. Ai de ti, Copacabana. Publicado em 1960.

Alvitres do Prof. Renato Alves – 3

20.
O rio vem correndo tranquilamente... De repente, acelera, agita-se, e nos oferece o imponente espetáculo visual da queda d’água. Logo adiante, retoma a calma e continua seu curso...

Vejam como a sensibilidade do poeta nos conta isso através de uma linda trova!

Vestem-se as águas de prata,
saltam no espaço vazio.
Findo o show da catarata,
sereno refaz-se o rio...
( A. A. de Assis)


21.
No poema “A um poeta”, Olavo Bilac retrata o trabalho exaustivo que é escrever.

Ressalta, porém, que, pronta a obra, este trabalho não deve ser percebido pelo leitor (“...que na forma se disfarce o emprego do esforço...”). A mesma ideia parece estar presente na trova de Adelmar: “tão fácil, depois de feita, / tão difícil de fazer...”.

Certamente é também a este esforço que se refere a expressão “dura prova” na trova de Jotagê.

Ao ler uma bela trova
depois que pronta ficou,
quem calcula a dura prova
por que o poeta passou?
(J. G. de Araújo Jorge)


22.
Diz-se que “o Perdão traz mais bem-estar espiritual a quem perdoa do que a quem é perdoado”...

O perdão ilumina e fortalece o coração do perdoador, capacitando-o a continuar perdoando e, portanto, aprimorando-se espiritualmente, numa espécie de círculo virtuoso. Veja como o trovador conseguiu traduzir com simplicidade esta ideia, com base nos pares: perdão/luz, ilumina/eleva, eleva/perdoa.

O perdão é luz na treva
do coração da pessoa.
Quem se ilumina se eleva
e quem se eleva, perdoa!
(Alfredo de Castro)


23.
Na trova humorística é mais que conhecida a preferência pela temática da “sogra”, que sofre avassaladora e sistemática gozação. No entanto, nesta primorosa trova de Sérgio Ferreira da Silva, a sogra levou a melhor...

A minha sogra me deu
um troféu e uma medalha...
e, no diploma, escreveu:
“VENCEDOR – TEMA: CANALHA”
(Sérgio Ferreira da Silva)


24.
Às vezes, a repetição (reiteração) pode valorizar muito uma trova. Veja como o uso deste recurso foi fundamental para a ideia central e o efeito humorístico das trovas abaixo:

Ao por-lhe a esmola no prato
pergunta ao surdo, baixinho:
– És mesmo surdo de fato?
E ele: – ”Surdinho, surdinho!”
(Vasques Filho)

Nunca vi almas! – diz rindo.
E o cara na sua frente,
foi sumindo, foi sumindo,
transparente, transparente...
(José Maria M. de Araújo)


25.
Na mesma linha camoniana do “fogo que arde e não se vê / ferida que dói e não se sente”, eis, na trova ao lado, uma bela aplicação da “antítese”, figura de linguagem tão adequada para definir a natureza
contraditória do amor.

O amor é sorriso... ou pranto.
O amor é nuvem... ou sol.
O amor é lágrima... ou canto.
O amor é treva... ou farol.
(Maria Thereza Cavalheiro)


26.
Além do escorreito português dos verbos em 2ª pessoa do plural (rireis, saberdes, pousais), esta trova apresenta um interessante emprego da palavra “verde” com carga semântica dupla: verde = cor e verde = jovem, em oposição aos maduros olhos do poeta.

Rireis talvez ao saberdes
como eu me sinto em apuros
se pousais os olhos verdes
nos meus olhos já maduros!
(José Fabiano)


27.
Na literatura, o efêmero, o passageiro, o transitório sempre esteve representado pela metáfora do “nome escrito na areia” que o mar vem e logo apaga. Veja que belo aproveitamento desta imagem na trova ao lado.

Malgrado a graça suprema
que o nosso olhar incendeia,
a juventude é poema
que a vida escreve na areia.
(Élen de Novaes Félix)


28.
Está no jogo de palavras, na inteligente manipulação das variantes semânticas do vocábulo “pena”, a beleza do achado desta primorosa trova do mestre Izo Goldman.

Que pena que as minhas penas
não te causem pena alguma,
e, sem pena, eu seja apenas,
entre as penas... só mais uma!
(Izo Goldman)


29.
A maioria dos concursos exige a menção da palavra-tema na trova. Muito já se discutiu sobre tal obrigatoriedade e as opiniões são bem divergentes. Mas veja aqui uma bela trova, premiada em Nova Friburgo em que a ausência da palavra não prejudicou em nada a ideia de “Presença”, o tema proposto

O livro, o cigarro ao lado,
o rádio, o abajur antigo...
Eu deixo tudo arrumado
fingindo que estás comigo...
(Maria Tereza Noronha)

9º Concurso Cidade de Gravatal de Literatura Conto e Poesia Abraão Aspis (Prazo: 31 de Maio)


A Academia Gravatalense de Letras (AGL) com o objetivo de homenagear o senhor Abrão Aspis, escritor e fundador da AGL, promove o 9º Concurso Cidade de Gravatal de Literatura.

Regulamento:

1. Os candidatos podem concorrer nas modalidades de Conto e Poesia, com até (3) três trabalhos por modalidade.

2. Os textos deverão ser originais, isto é, nunca terem sido anteriormente publicados em jornal, revista ou livro.

3. Os trabalhos deverão ser escritos em português, com tema livre, digitados.

4. As poesias não têm limitação mínima ou máxima de extensão. Os contos terão limite máximo de (5) cinco páginas; fonte: Arial; tamanho 12; espaçamento entre linhas 1.5.

5. Cada trabalho deverá ser identificado apenas pelo titulo e pelo pseudônimo, não podendo constar nada que identifique o nome do autor. Caso participe com até com três textos, estes deverão estar contidos em um só e-mail, e com um mesmo pseudônimo. Os textos serão organizados pela AGL e enviados com a indicação da modalidade a que concorre e o pseudônimo do (a) autor (a) a comissão julgadora.

6. No e-mail enviado a AGL deverá constar o nome do arquivo: nome do concorrente, pseudônimo, título(s) do(s) trabalho(s), endereço completo, com telefone e e-mail.

7. Caso o concorrente desejar participar das duas modalidades -- conto e poesia - deverá enviar dois e-mail distintos, um para cada categoria.

8. Os trabalhos devem ser enviados até o dia 31 de maio de 2021 através do e-mail:

academiadeletrasgravatal@gmail.com

9. A Comissão Organizadora do concurso poderá, a seu critério, editar ou não uma coletânea com os trabalhos premiados. Para tanto, os concorrentes, ao enviarem seus textos, concordam em ceder seus direitos para a referida edição.

10. O julgamento dos textos será realizado por uma comissão de três pessoas, de diferentes áreas da literatura, indicada pela AGL.

11. O resultado do concurso será divulgado nos meios de comunicação produzidos pela AGL e por e-mail, até o mês de agosto.

Aparecido Raimundo de Souza (Coriscando 14) Overdose

A MARIA DA GLÓRIA acabara de sair da UTI. Sofrera um parto de alto risco e, em consequência dele, precisou ser socorrida por uma equipe médica praticamente às carreiras. Não sabia do que ocorrera durante o procedimento, apenas que tudo havia terminado às mil maravilhas. Levada para o quarto particular e, após confortavelmente instalada, pintou no pedaço a Rosimeire, a enfermeira que esteve o tempo todo ao lado dela (antes do parto e após) e, assim que a viu, desejou um bom e agradável dia à nova mamãe do pedaço:

— Oi, Maria da Glória, bom dia. Tudo bem?

— Espero que sim...

— Eu sou a enfermeira chefe que ficou ao seu lado desde que deu entrada aqui na nossa Unidade.

— Legal. Como é seu nome?

— Rosimeire.

— E o meu bebê? É homem, ou mulher?

— Está preparada?

— Sim. Por favor, estou ansiosa.

— Parabéns. Você teve quadrigêmeos. Um menino e três meninas.

Com esta notícia, à queima roupa, a Maria da Glória quase desmaiou. Ficou branca feito uma vela. Pior, alva como uma folha de papel saída de uma resma de quinhentas folhas.

— Minha nossa! Quadrigêmeos?

— Sim, minha amiga e todos com a saúde perfeita. Logo eu os trarei para que os veja e dê de mamar aos pequenos. Carecerá fazer um revezamento... Não vai ser fácil...

— Tudo bem... Se é a vontade de Deus... Ele, com certeza, proverá. Só nos resta tocar em frente.

Rosimeire aproveitou a situação e falou do marido dela:

— Seu esposo, o mais novo papai, coitado!... Quase teve um probleminha, porém, agora, está fora de perigo. Foi mais, como eu diria, uma estupefação momentânea emocional, quando lhe demos a notícia...

— Meu pai do céu, o que houve com o Leo?

— Pois então, Maria da Glória... Quando ele soube... Quando ele soube dos quatro nascimentos...

— Fale de uma vez, Rosimeire! O que aconteceu ao meu Leo?

— Seu marido, amiga Maria da Glória, seu marido Leo...

— Pelo amor de Deus, desembucha de uma vez...

— Calma. Lembra que você ainda está em recuperação de suas forças. Foram quatro bebês. Respire fundo...

— Pronto, respirei...

— Mais uma vez...

— Vou ver o Senhor da Glória mais cedo, se você não cantar logo a pedra. Meu Leo, o que houve com o meu Leo?!

— Seu marido Leo... Ficou... Seu marido Leo ficou...

— Ficou o que, infeliz? Vomita logo e acaba com o meu martírio. Como é que ficou o meu Leo, ou como está o meu Leo?

E Rosimeire, alegre, saltitando de felicidade pelo dever cumprido e, sobretudo, por ter corrido tudo e nos conformes, em seu plantão, rindo, pois, de um canto a outro da boca, completou, eufórica, zombeteira:

— O seu Leo, minha amiga, o seu Leo…pardo!

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

segunda-feira, 29 de março de 2021

Arquivo Spina 34: Edith Vargas

 

Silmar Böhrer (Croniquinha) 20

Sete horas de uma manhã amalgamada de cores, luz, vida. Os passarinhos na sinfonia matinal. O canarinho bem cantante na primeira alva do arrebol. Enchendo a ampulheta do tempo com substância de vida.

Diz a letra da música: "Sopram ventos desgarrados . . . ". Os ventos sempre sopram desgarrados, eternos viandantes pelos caminhos do mundo. Ideias também desgarram constantemente em conversas e nos escritos. E têm mão dupla - ideias que vão e ideias que vêm.

E se tiramos proveito dos ventos que surgem de todas as direções, o mesmo façamos com as ideias. Dizem que ideias movem o mundo, o que me é verdadeiro.

Usemos os bons ventos para semear ideias produtivas que brotem e floresçam em todos os solos - os áridos, os secos, os pantanosos. Ideias que fecundem o mundo com sementes de bom-senso, de paz, de  ternura e compreensão. Ventos que levem esperança pelos sendeiros da vida. Ideias que espalhem constantes grânulos de felicidade nos sentimentos do ser humano.

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

Professor Garcia (Mourão em sete pés) – 2


Obs: PG = Professor Garcia
ZL = José Lucas de Barros (Zé Lucas)

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1
 
ZL - Saudade, engenho parado
no coração nordestino.

PG - E um sonho sacrificado
no mais triste desatino.

ZL - São lembranças imortais
de tempos que não vêm mais,
nem que eu volte a ser menino!
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2

 PG - Parece que o meu destino
é de um feliz sonhador.

ZL - Há tempo eu também me afino
nesse agradável labor.

PG — Por isso é que sou feliz,
sonhar foi tudo que fiz
nesse mundo enganador!
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3

ZL — Como esperto viajor,
sigo o destino do vento.

PG - Eu também sou defensor
das ordens do pensamento.

ZL - Aprecio a linha reta,
mas faço, como poeta,
as curvas do Firmamento.
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4

PG - Eu comparo a voz do vento
com o murmúrio da cascata.

ZL — As folhas, em movimento,
sentem a brisa da mata.

PG — E os galhos vão se esfregando,
pouco a pouco vão cantando
a mais linda serenata!
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No início do mês de março de 2014, consultei o saudoso tio e magnífico poeta Zé Lucas sobre a possibilidade de uma peleja ente nós dois, ao ritmo do mourão em sete pés agalopado. Logo questionamos se esse estilo existia na nossa literatura cordeliana portuguesa ou mesmo se era, cantado pelos nossos geniais repentistas. Para surpresa nossa, após profunda pesquisa, não se identificou nenhum registro sobre o assunto.

Conclusão: Salve o melhor juízo, ou prova em contrário, acrescenta-se a nossa literatura, mais um gênero poético, sugerido por mim com a aprovação e o aval do saudoso Zé Lucas. Uma amostra dessa peleja entre nós, com estrofes- esparsas:

5

ZL - Até hoje, que eu saiba, ninguém fez
um só verso em mourão agalopado.

PG— Isto eu posso afirmar com sensatez
que está certo esse seu enunciado.

ZL — Tem de haver, para tudo, a vez primeira,
e, pra nós, não será de outra maneira,
porque o passo primeiro há de ser dado.
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6

PG - Se o primeiro ficou bem acabado
o segundo, começa sem defeito.

ZL - Cada remo trabalha do seu lado
para o barco nadar do melhor jeito.

PG - Navegando na vida, eu nada temo,
sou jangada que nada sem ter remo
sobre as ondas do mar, berço e meu leito.
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7

ZL - Não me queixo jamais de luta inglória,
porque tenho demais para o que fiz.

PG - Desse jeito, construo a minha história;
tendo pouco sou muito mais feliz.

ZL - Eu caminho em demanda de um lugar,
que é distante, mas sei que vou chegar,
não sei quando... Quem sabe não me diz.

Fonte:
Professor Garcia. Poemas do meu cantar. Natal/RN: Trairy, 2020.
Livro enviado pelo autor.

A. A. de Assis (Maringá Gota a Gota) Altoé, um senhor professor

Geraldo Altoé nasceu capixaba no dia 12 de novembro de 1926, em Venda Nova do Imigrante, um lugarzinho muito bonito pertinho do céu. Sonhou ser padre; no entanto, já quase formado, descobriu que seria outro o seu apostolado – nascera professor, e professor seria por toda a vida, excelente sempre. Em 1950, deixou o célebre Colégio Dom Bosco (seminário salesiano de Cachoeira do Campo) e passou a lecionar em escolas de primeiro e segundo graus.

Em 1951, seu pai, Ernesto Altoé, veio conhecer Maringá. Geraldo veio junto. O pai gostou tanto que comprou uma data na cidade, na zona 2, e uma gleba em Água Boa, onde de pronto iniciou a plantação de café. Nessa ocasião Geraldo tentou conseguir emprego aqui, mas a única escola já existente era o Grupo Escolar do Maringá Velho. Voltou para Venda Nova. Em 1952 casou-se com Dona Anna Teresa. No ano seguinte, 1953, veio de novo para Maringá.

Dessa vez, porém, Geraldo já chegou com emprego garantido, no recém-inaugurado Ginásio Maringá, construído na Avenida Tiradentes pela Companhia Melhoramentos e arrendado ao professor Antero Alfredo Santos. Devido à escassez de professores na cidade, ele lecionava diversas disciplinas: latim, português, história, geografia, música.

Pouco depois, o prefeito Villa Nova Júnior criou o Ginásio Municipal, instalando-o no local onde está hoje o Instituto Estadual de Educação. O Ginásio Municipal passou mais tarde a se chamar Ginásio Estadual de Maringá e, a partir de 1959, Colégio Estadual Gastão Vidigal.

Em 1954, a Mitra de Jacarezinho, através de Dom Geraldo Sigaud, assumira o Ginásio Maringá, entregando a direção ao padre Cleto. Em 1957, com a chegada de Dom Jaime Luiz Coelho, ex-aluno marista, o educandário foi transferido para os irmãos maristas.

Nos dois colégios Geraldo trabalhou por longos anos, como professor e em funções administrativas. E mais: além de dar conta de tão movimentada agenda, ainda encontrava tempo e fôlego para atividades artísticas: dava aulas particulares de música (foi ele quem comprou o primeiro piano vendido na cidade, na Hermes Macedo), regia o coral da Catedral e ainda (junto com Ary de Lima) foi um dos fundadores de nossa primeira banda musical.

O pioneiríssimo Altoé teve também participação direta na criação e instalação do nosso primeiro curso superior. Foi ele quem elaborou o minucioso relatório que, encaminhado ao Ministério da Educação, viabilizou a criação da Faculdade Estadual de Ciências Econômicas de Maringá, ponto de partida para a formação da UEM. Na UEM, começou a lecionar como professor de História em 1973, ali permanecendo até a aposentadoria.

Mestre em História Social da América Latina, autor do livro “O rádio em Maringá”, cidadão benemérito do município, o queridíssimo professor Geraldo Altoé será sempre carinhosamente lembrado como personagem fundamental na história do ensino nesta cidade.

Mudou para o céu no dia 26 de outubro de 2016, após 90 anos de uma vida singularmente bonita e exemplar a serviço da comunidade. Tê-lo tido como amigo foi uma honra imensa.
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(Crônica publicada no Jornal do Povo – Maringá – 04-02-2021)

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

domingo, 28 de março de 2021

Varal de Trovas 489

 


Carolina Ramos (Poemas Escolhidos) 10

PROFECIA

Elo partido... 1970

Muitas vezes te disse - tens lembrança?:
– Muda! por nossos filhos! - E, também,
que a renúncia constante anula, cansa,
quando improfícua… e só de um lado vem.

Lembrei-te (quantas vezes!) é a confiança
base que o templo conjugal sustém.
E estremecia a última esperança
de envelhecermos juntos... mal ou bem!

Cumpriu-se a profecia! O eco ressoa!
Cai o arruinado templo! Embora doa,
nossos elos partiram-se! Defuntos,

os sonhos se perderam no caminho!
Tanta mentira e ausência de carinho,
que ao fim da estrada, não chegamos juntos!
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VERDADE

Todos pensavam que a felicidade
era a bandeira azul que eu conduzia...
Todos pensavam, sim, mas a Verdade,
além mim, somente Deus sabia.

Ninguém sonhava a triste realidade
que em meio à multidão me perseguia;
nem que o sorriso meigo de humildade
era regado em pranto, noite e dia!

Quem poderia crer que a tais extremos
eu chegasse, partindo os frágeis remos
de um destino cruel! Ninguém supunha

que um oceano de lama, tormentoso,
eu banisse de mim... e, em céu calmoso,
fosse viver os sonhos que eu compunha!
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MOMENTO SUPREMO

O amor, esse eterno tema,
nossos sonhos enlaçou
e fez de nós um poema
que a própria vida rimou!

Vem... esquece os receios nos meus braços...
que a vida é curta e o amanhã é incerto!
Deixa que minha mão apague os traços
de angústia, dos teus olhos. Vês? - Bem perto,

escondida entre nuvens, há uma aurora
à espera do momento benfazejo!
Que o céu se expanda... e o sol rebrilhe, agora,
no infinito esplendor do nosso beijo!
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PRESENÇA

Tão feminina e triste, minha amiga,
não queiras, com teu jeito amargo e doce,
instilar-nos no sangue o fel da intriga:
- basta o suplício que este adeus nos trouxe!

Nosso amor é tão grande... não periga!
Ao teste da distância, confirmou-se.
Deixa que a vida sua estrada siga...
Nossa estrada, por ora, bifurcou-se.

Terna, dizes que beijas seus cabelos...
Eu asseguro que não tenho zelos
por estares, fiel, sempre ao seu lado:

- Ora, saudade, não me fazes ciúmes!
- Ao lado dele, minha forma assumes
e, junto a mim, tens o seu rosto amado!
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DISTÂNCIA

Dois corações vazios, sem compasso,
pulsando apenas para não morrer!
Em meio à névoa... o encontro e o brilho escasso,
num milagre de amor a resplender!

Esquecemos de tudo, quando o espaço
nos arrancou da terra, a surpreender!
E, arrebatados por um terno laço,
entre os astros nos fomos esconder!

A girar sob um eixo de amargura,
frente a frente, abraçamos a ventura,
num eclipse total! E o adeus, depois...

Da angústia agora és rei! Sou a rainha!
Eu sou a tua luz!... Tu és a minha...
mas a saudade é sombra entre nós dois!
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VIAGEM DE ESPERANÇA

Peregrino do sonho, o Poeta é um ser errante
no encalço da Verdade. Em eterna procura,
a criar o que não tem, vai seguindo adiante,
sob o impulso do ideal, que abraça com ternura!

Asa aberta à Esperança! Em cada porto, o instante
de anseio e da beleza, onde nada o segura!
Quando tange-lhe a alma um apelo cantante,
ele parte outra vez... em festa, ou em amargura.

O farnel? - Ilusões! O passaporte? - A rima!
As vestes? - Fantasia... e muito Amor por cima!
Embora preso à terra, a um destino tristonho,

O Poeta é livre sempre! É livre de alma inteira!
- É dono do Universo e não teme fronteira,
quem tem o espaço aberto à Nave Azul do Sonho!

Fonte:
Carolina Ramos. Destino: poesias. 
São Paulo: EditorAção, 2011.
Livro enviado pela poetisa.

Miguel de Cervantes (O Casamento enganoso)

 
Saía do Hospital da Ressurreição, que fica em Valladolid, depois da Porta do Campo, um soldado que, por usar a espada como cajado, pela magreza de suas pernas e pela palidez de seu rosto, demonstrava claramente - embora não estivesse fazendo muito calor - que deveria ter transpirado em vinte dias tudo o que, com toda certeza, adquirira numa hora. Caminhava cambaleando, tropeçando a todo momento, como um convalescente e, ao transpor a porta da cidade, percebeu vindo em sua direção um amigo que não via fazia mais de seis meses. Este, benzendo-se como se tivesse visto alguma assombração, aproximou-se e lhe disse:

- Que aconteceu, senhor alferes Campuzano? É possível que esteja nesta terra? Eu o imaginava em Flandres, empunhando a lança, e não por estes lados, arrastando a espada. Que palidez, que fraqueza é essa?

Campuzano respondeu:

- Se estou ou não nesta terra, senhor licenciado Peralta, minha presença pode lhe dizer. Quanto às outras perguntas, nada tenho a responder, a não ser que estou saindo do hospital, onde suportei quarenta suadouros, por causa de uma mulher que escolhi para esposa, coisa que jamais deveria ter feito.

- Vossa mercê se casou? - perguntou Peralta.

- Sim, senhor - respondeu Campuzano.

- Se foi por amor - disse Peralta, acrescentando - tais casamentos trazem sempre junto o arrependimento.

- Não saberei dizer se foi ou não por amor - respondeu o alferes -, embora possa garantir que foi por amargor, pois do meu casamento, ou cansamento, carrego tais coisas no corpo e na alma que as do corpo, para curá-las, me custaram quarenta suadouros, mas para as da alma não encontro um remédio que possa aliviá-las. Mas vossa mercê vai me perdoar: eu não posso manter conversas longas na rua. Em outro dia, mais comodamente, lhe contarei minhas aventuras, as mais diferentes e originais que vossa mercê já terá ouvido em todos seus longos dias.

- Não há de ser assim - disse o licenciado -, pois desejo que venha até minha morada; ali comeremos à vontade. Além disso, tenho comida própria para convalescentes, preparada para dois. Meu criado se contentará com um pastel. Se a sua convalescença permitir, umas fatias de presunto cordobês servirão para nos abrir o apetite. E ofereço isso de boa vontade, agora e todas as vezes que vossa mercê desejar.

Campuzano agradeceu-lhe, aceitou o convite e os oferecimentos. Foram ambos até San Llorente, onde assistiram à missa. Depois, Peralta levou o amigo até sua casa, dando-lhe o prometido e insistindo para que repetisse. Tendo ele acabado de comer, Peralta lhe pediu para narrar os acontecimentos que tanto o haviam mortificado. Campuzano não se fez de rogado e começou a falar:

- Vossa mercê deve se lembrar, senhor licenciado Peralta, como fui, nesta cidade, amigo do capitão Pedro de Herrera, que agora está em Flandres.

- Lembro bem - respondeu Peralta.

- Pois um dia - prosseguiu Campuzano -, quando mal terminávamos a refeição na pousada da Solana, onde vivíamos, entraram duas mulheres de elegante aspecto, acompanhadas por duas criadas; uma delas logo se pôs a falar com o capitão, ambos encostados num canto da janela; a outra sentou-se numa cadeira junto à minha, cobrindo-se com o xale até o pescoço, não deixando ver do seu rosto mais do que a transparência do xale permitia. Embora eu lhe solicitasse gentilmente que se descobrisse, nada consegui.

“Para completar a história, seja de propósito ou por acaso, ela exibiu uma mão muito branca, coberta de magníficas joias. Eu me sentia importantíssimo com aquela grande corrente que vossa mercê talvez tenha conhecido, com meu chapéu de plumas e cordões, com o traje de cores e a arrogância de um soldado, tão imponente diante de minha própria vaidade que me sentia flutuar. Com tudo isso, roguei-lhe que se descobrisse, ao que ela respondeu:

- Não seja importuno. Tenho minha casa. Faça com que um pajem me siga, pois, embora eu seja mais honrada do que faz achar esta resposta, quero ver se sua discrição corresponde a sua galhardia; permitirei que me veja.    

“Beijei-lhe as mãos pelo grande favor que me fazia e em troca lhe prometi montes de ouro. O capitão concluiu a sua conversa e elas se foram seguidas por meu criado. O capitão me disse que a dama lhe pedira para levar cartas a outro capitão, em Flandres. Dizia que eram para um primo, mas ele sabia que eram para seu amante. Eu fiquei abrasado pela mão de neve que havia visto e ansioso pelo rosto que desejava ver. Assim, no dià seguinte, guiado por meu pajem, fui visitá-la. Encontrei uma bela residência e uma mulher de quase trinta anos, a quem reconheci pelas mãos. Não era excepcionalmente bela, mas podia prender pelo trato, com conversa familiar, pois possuía um tom de voz tão suave e penetrante que chegava até a alma. Mantivemos longos e amorosos colóquios; alardeei, garganteei, prometi; dei enfim todas as demonstrações que me pareceram necessárias para tornar-me querido, mas ela parecia ter sido feita para ouvir maiores oferecimentos e razões. Ouvia, mas parecia não me acreditar. Para concluir, nossos colóquios passaram-se em banalidades durante quatro dias.

“Continuei a visitá-la, sem chegar, porém, a colher o fruto desejado.   Nos momentos em que a visitei, sempre encontrei a casa livre; jamais notei traço de parentes fingidos ou amigos verdadeiros. Servia-a uma moça mais astuta do que ingênua.       

“Tratando meus amores como soldado em vésperas de partida, apressei, finalmente, a senhora dona Estefânia de Caicedo - pois esse é o nome de quem me deixou assim -, que respondeu:

- Seria ingenuidade, alferes Campuzano, se eu quisesse vender-me a vossa mercê como santa; tenho sido pecadora e ainda sou, embora não dê motivos para que os vizinhos murmurem e os empregados comentem. Nem herdei coisa alguma de meus parentes, mas apesar disso o que tenho aqui em casa vale, bem contados, 2500 escudos; e isso em coisas que, vendidas, haverão de se converter em bom dinheiro. Com essa fortuna, procuro marido para me entregar, para obedecer e a quem, juntamente com o vínculo de minha vida, entregarei uma enorme solicitude em agradar e servir. Príncipe nenhum terá cozinheiro mais cuidadoso ou que melhor saiba acertar nos guisados.

"Sei ser um bom mordomo, um ótimo cozinheiro e melhor senhora na sala; na verdade, sei mandar e sei fazer com que me obedeçam. Nada desperdiço e economizo muito. O dinheiro não vale menos e sim mais quando é gasto sob minha orientação. A roupa branca que tenho, que é muita e da melhor qualidade, não foi adquirida em lojas ou com vendedores ambulantes; foi feita com estes dedos e com os das minhas criadas e, se fosse possível tecê-la em casa, assim o teríamos feito. Digo essas coisas sem modéstia, pois não há mal algum quando a necessidade nos obriga a dizê-las. Acrescento, finalmente, que procuro marido que me ampare, dirija e honre, e não amante que se aproveite e depois me injurie. Se vossa mercê souber apreciar, neste momento, a prenda que lhe é oferecida, estou a sua disposição, sujeita a tudo quanto vossa mercê obrigar, e isso sem colocar-me à venda, que é a mesma coisa que andar na língua dos casamenteiros. Não há nada melhor para se chegar a um acordo do que uma conversa entre as próprias partes.

"Eu, que estava com o juízo não na cabeça, mas sim nos  calcanhares, julgando a felicidade ainda maior do que a imaginação me pintava, e sendo-me oferecida tamanha quantidade de bens - eu já os contemplava convertidos em dinheiro -, sem fazer mais comentários do que aqueles a que dava lugar a ventura, que me enfraquecia o raciocínio, respondi que me sentia muito alegre e afortunado por ter o céu me dado, quase que por milagre, tal companheira para fazê-ia senhora de minha vontade e dos meus bens, não tão poucos que não valessem junto com aquela corrente que usava no peito e outras pequenas jóias que estavam em casa, além das minhas galas de soldado, mais de dois mil ducados, que com os 2500 dela, somavam quantia mais do que suficiente para vivermos na aldeia onde nasci e onde possuía alguma terra; tais haveres, convertidos em dinheiro, renderiam seus frutos com o tempo, permitindo-nos uma vida alegre e descansada. Em suma, naquela noite acertamos o casamento e nos despedimos de nossas vidas de solteiros; nos três dias de festas que vieram na Páscoa fizeram-se as declarações e no quarto dia nos casamos, estando presentes dois amigos meus e um rapaz que dizia ser primo dela. Tratei-o como a um parente, com palavras amáveis, como o foram as que ele dirigira a minha nova esposa; mas ele falava com intenção tão falsa e hipócrita que eu prefiro calar, porque, embora esteja dizendo somente verdades, não são verdades de confessionário, dessas que não podem deixar de ser ditas.

"O criado levou meu baú da minha morada para a casa de minha mulher. Encerrei ali, diante dela, a minha esplêndida corrente, mostrando-lhe outras três ou quatro, não do mesmo tamanho, porém da melhor qualidade, assim como três ou quatro cintos de diversos tipos. Mostrei-lhe também as roupas e os chapéus, entregando-lhe, para as despesas da casa, os quatrocentos reais que possuía. Seis dias desfrutei calmamente a lua-de-mel, feito genro pobre em casa de sogro rico. Pisei caros tapetes, dormi sobre colchas de holanda, estive à luz de candelabros de prata.

"Almoçava na cama, levantando-me às onze horas, comendo de novo às doze e fazendo a sesta às duas. Dona Estefânia e sua criada excediam-se em cuidados e agrados. Meu criado, que até então fora lerdo e preguiçoso, se transformou num cervo.

"Nos momentos em que dona Estefânia não estava ao meu lado, era fácil achá-la na cozinha, solícita em preparar guisados que me despertassem o gosto e avivassem o apetite. Minhas camisas, colarinhos e lenços, pelo perfume que exalavam, pareciam um novo jardim de Aranjuez, banhados como eram em água perfumada por flor de laranjeira.

"Esses dias passaram voando como passam os anos sob o império do tempo. Por ver-me tão regalado e bem servido, se transformara em boa a má intenção com que iniciara aquela história. No fim deles, certa manhã, quando ainda estava no leito com dona Estefânia, bateram fortemente à porta. A criada surgiu à janela e disse:

- Oh! Seja bem-vinda! Veio antes do que esperávamos!

- Quem é que chegou, criatura? - perguntei.

- Quem? - ela respondeu.  - Minha senhora, dona Clementa Bueso, acompanhada pelo senhor Lope Meléndez de Almendárez, dois criados e a ama Hortigosa.

- Corra, mulher, abra a porta, que já vou! - disse dona Estefânia à criada. - E você, meu senhor, pelo amor que tem por mim, não se assuste e nem responda em meu lugar a coisa alguma que ouvir contra mim.

- Mas quem é que vai se atrever a ofendê-la em minha presença? Diga que gente é essa que lhe causa tanta perturbação!

- Não tenho tempo para lhe responder - disse dona Estefânia. - Saiba apenas que tudo o que acontecer é fingimento e visa a certo objetivo, o qual saberá depois.

"Eu quis replicar, mas a senhora dona Clementa Bueso não permitiu, pois entrou no quarto arrastando a cauda do longo vestido verde todo enfeitado com cordões de ouro, capinha da mesma espécie, chapéu de plumas verdes, brancas e vermelhas e rico cinto de ouro. Metade do seu rosto estava oculto por um leve véu. Em sua companhia entrou o senhor Lope Meléndez de Almendárez, não menos elegante nem menos ricamente vestido.

"Dona Hortigosa, que foi a primeira a falar, exclamou:

- Jesus! Que é isto? Ocupando o leito da senhora Clementa e além do mais com um homem? Que milagres vejo nesta casa! Não há dúvida de que dona Estefânia trocou os pés pelas mãos, abusando da amizade de minha senhora.

- Tem razão, dona Hortigosa, mas a culpa é minha. Que nunca mais eu me aborreça novamente por arranjar amigas que só sabem ser amigas quando precisam!

"A tudo isso, dona Estefânia respondeu:

- Não se aborreça, dona Clementa Bueso, e acredite que não é sem mistério que a senhora vê estas coisas em sua casa; quando souber da verdade, sei que serei desculpada e vossa mercê não terá motivo nenhum para queixa.

"A essa altura eu já havia vestido a calça e a camisa. Dona Estefânia, pegando-me pelo braço, levou-me a outro quarto e ali me disse que aquela sua amiga desejava enganar o senhor Lope, com o qual pretendia se casar, e que precisava fazer com que ele acreditasse que aquela casa e tudo o que havia nela lhe pertencia, pois ela pretendia fazer disso o seu dote. Depois do casamento realizado, pouco importava que descobrissem a artimanha, pois dona Clementa confiava no grande amor que lhe tinha o senhor Lope.

- Logo ela vai me devolver tudo. Não se deve levá-la a mal e nem a qualquer outra mulher que procure marido honrado, ainda que por meio de um ardil.

"Eu lhe respondi que era prova de uma grande amizade o que desejava fazer e que primeiro pensasse bem, porque depois poderia precisar, sem ter necessidade, recorrer à justiça para reaver seus bens. Ela, porém, respondeu com tantas e tais razões, mostrando quantas coisas a obrigavam a servir a dona Clementa, coisas de pouca importância na verdade, que, embora de má vontade e com remorso, concordei com seu desejo. Ela me garantiu que o plano duraria somente oito dias, durante os quais ficaríamos em casa de outra amiga sua. Acabamos de nos vestir e ela, despedindo-se de dona Clementa Bueso e do senhor Lope Meléndez de Almendárez, disse ao meu criado que carregasse o baú e a seguisse. Eu também a segui, sem me despedir de ninguém.

"Dona Estefânia parou em casa de uma amiga e, antes que entrássemos, passou lá dentro um bom tempo falando com ela. Depois apareceu uma criada mandando que entrássemos, eu e o criado. Ela nos levou a um pequeno aposento, onde havia duas camas tão juntas que pareciam ser uma só; não havia espaço para separá-las e as cobertas pareciam beijar-se. Ali ficamos por seis dias e em todos eles não houve uma única hora em que não tivéssemos alguma discussão. Eu lhe falava da loucura que fizera em ter deixado a casa e seus bens, ainda que fosse para sua própria mãe. Durante as discussões, eu ia e vinha pelo quarto, tanto que a dona da casa, num dia em que dona Estefânia fora ver como andavam as coisas, quis saber qual era a razão que me levava a discutir tanto com ela e por que tanto a ofendia ao lhe dizer que o que fizera era mais idiotice do que amizade perfeita. Eu lhe contei toda a história, falei que havia me casado com dona Estefânia e falei do dote que ela trouxera.

"Quando lhe falei da grande bobagem de deixar a casa para dona Clementa, embora fosse com a intenção de conseguir um marido da importância do senhor Lope, ela começou a se benzer e a persignar-se com rapidez e com tantos "ai, Jesus!, que mulher!" que eu não pude deixar de ficar muito preocupado. Ela então me disse:   

- Senhor alferes, não sei se vou contra minha consciência ao lhe contar o que também me pesaria se ficasse calada. Mas, por Deus e pelo destino, seja lá o que for, que viva a verdade e morra a mentira! E a verdade é que dona Clementa Bueso é a verdadeira dona da casa e dos bens que lhe deram como dote; e mentira foi tudo o que lhe contou dona Estefânia. Ela não possuía casa, nem bens, nem outro vestido a não ser aquele que carrega no corpo. E, para tornar viável tudo isso, dona Clementa resolveu visitar um parente em Plasencia e dali foi fazer uma novena para Nossa Senhora de Guadalupe. Nesse espaço de tempo deixou dona Estefânia cuidando de sua casa, pois elas são realmente boas amigas.

"Claro que não se deve culpar a pobre mulher, pois afinal soube arranjar como marido uma pessoa como o senhor alferes.

"Aqui terminou a conversa dela e começou meu desespero. E, sem dúvida, ele teria se prolongado se meu anjo da guarda não acorresse dizendo-me para não esquecer que era cristão e que o maior pecado dos homens era o desespero, por ser pecado dos demônios. Essa boa inspiração me confortou um pouco, mas não impediu que apanhasse a capa e a espada e saísse à procura de dona Estefânia, com intenção de lhe dar um exemplar castigo; mas o acaso, que não saberei dizer se piora ou melhora as coisas, quis que eu não a encontrasse em lugar nenhum onde pensava encontrá-la.

"Fui a San Llorente e encomendei-me à Nossa Senhora; sentei num banco e o desgosto me fez cair num sono tão pesado que não despertaria dele tão cedo se não me sacudissem. Fui cheio de pensamentos e de aflição à casa de dona Clementa; encontrei-a tão à vontade como senhora que era de sua casa, e não ousei dizer-lhe nada porque o senhor Lope estava presente. Voltei à casa de minha hospedeira, que me disse haver contado a dona Estefânia como eu já sabia de toda a sua falsidade e que ela lhe havia perguntado que cara eu fizera com a notícia. A criada havia lhe respondido que uma cara muito má e que, ao que lhe parecia, eu saíra para procurá-la com péssimas intenções. Disse, finalmente, que dona Estefânia levara tudo o que estava no baú, sem deixar nele uma só peça de roupa.  

"Aí é que foram elas! Deus me tinha outra vez em suas mãos. Fui ver o baú e achei-o aberto, como um túmulo à espera de um cadáver, que poderia muito bem ter sido o meu se não tivesse calma para sentir e ponderar tamanha desgraça.  

- Foi bem esperta - disse nesse momento o licenciado Peralta -, por ter levado tantos cintos e correntes, pois como se diz, todas as dores são dores... etc., etc.

- Não me importei com isso - respondeu o alferes -, pois também poderei dizer: "Senhor Simueque pensou que me enganava com sua filha vesga, mas pela vontade de Deus eu sou coxo".

- Não sei por que vossa mercê está dizendo isso - respondeu Peralta.

- Acontece - disse o alferes - que aquele embrulho, aquele conjunto de correntes, cintos e brincos poderia valer quando muito dez ou doze escudos.  

- Isso não é possível - exclamou o licenciado -, só a corrente que o senhor usava no pescoço parecia valer mais de duzentos ducados.

- Assim seria - respondeu o alferes -, se a verdade correspondesse à aparência; porém, como nem tudo o que reluz é ouro, as correntes, os cintos, os brincos e outras joias eram apenas imitações. Estavam tão bem-feitas que somente o toque ou o fogo poderiam revelar sua qualidade.

- Dessa forma - disse o licenciado -, houve empate nesse jogo entre vossa mercê e a senhora dona Estefânia?

- E de tal maneira - respondeu o alferes -, que poderia voltar a baralhar as cartas. Mas o principal problema, senhor licenciado, é que ela poderá se desfazer de minhas joias e eu não poderei sair do laço em que cai, pois, embora me pese muito, ela é minha mulher.

- Dê graças a Deus, Campuzano - disse Peralta -, pois ela foi embora pela própria vontade e vossa mercê não tem a obrigação de ir buscá-la.

- Verdade - respondeu o alferes -, mas com tudo isso, embora não a procure, a tenho sempre no pensamento, e onde quer que eu vá, a afronta vai estar presente.

- Não sei o que responder - disse Peralta -, a não ser trazer a sua memória dois  versos de Petrarca, que dizem:

Che chi prende diletto di  far frode,
non s'ha di lamentar s'altro I'inganna.  

O que em nossa língua quer dizer: "Aquele que tem o costume e gosto de enganar os outros não deve se queixar quando é enganado".  

- Não me queixo - respondeu o alferes -, apenas me lastimo, pois o culpado não deixa de sentir a pena do castigo somente por reconhecer a culpa. Tentei enganar, bem sei, e fui enganado. Feriram-me com minhas próprias armas, mas não posso evitar que esses sentimentos me assaltem. Finalmente, o que mais importa na minha história, se é que posso chamar assim as minhas aventuras, é ter sabido que dona Estefânia partiu com o primo, o mesmo que se encontrava em nosso casamento e que tempos atrás havia sido seu amigo para qualquer coisa. Eu não quis procurá-la para não completar minha desgraça. Mudei de casa e de cabelo em poucos dias, pois começaram a cair os pelos de minhas sobrancelhas, dos chios e pouco a pouco eles se foram; tornei-me calvo antes do tempo: tive uma doença chamada alopecia, conhecida por outro nome mais claro, que é calvície. Encontrei-me verdadeiramente liso: não possuía cabelos para pentear nem dinheiro para gastar. A doença caminhou ao lado da minha miséria e, como a pobreza atropela a honra e leva uns à forca, outros ao hospital e ainda faz outros bater às portas dos inimigos com súplicas e submissões, o que é uma das maiores desgraças que podem acontecer a um infeliz, e por não ter podido garantir as roupas que me haveriam de proteger e assegurar a saúde, ao chegar o tempo em que se dão os suadouros no Hospital da Ressurreição, me dirigi para lá e tomei quarenta suadouros. Dizem que sararei se me tratar; espada ainda possuo, o resto ficará nas mãos de Deus.


Fonte:
Contos Universais (coleção Para gostar de ler vol. 11). 2005. 
(Tradução de Mustafa Yazbek)

III Concurso PET-Letras UNIFAL de Poesias (Prazo: 20 de Abril)


O PET Conexões de Saberes Letras torna público o concurso, relativo ao ano de 2021, para obras literárias em língua portuguesa, inglês ou espanhol pertencentes ao gênero Poesia.

EDITAL DO CONCURSO

Do Concurso


O terceiro concurso literário terá como gênero a Poesia e como tema:

“Lembranças”

 Os poemas serão inscritos mediante o cumprimento das seguintes exigências:

2.1 – Os candidatos deverão ter a idade mínima de 15 anos;

2.2 – Os concorrentes deverão inscrever 01 (um) poema em Português, ou Espanhol ou Inglês, de autoria própria;

2.3 – O poema deve ser inédito, não sendo divulgado em nenhum meio impresso, digital ou mídias sociais;

2.4 – Será aceito apenas um poema por autor;

2.5 As inscrições se darão pelo envio do poema, juntamente com o formulário disponível em: https://docs.google.com/forms/d/e/1FAIpQLScglKHyWgik6E4Rky1P5UpwFW-vddbqgaM3whTF-QNrDQaD_w/viewform ;

O formulário deverá ser preenchido e enviado, juntamente com o poema, e conter: título do poema (se houver), nome completo do autor, e-mail do autor, telefone para contato, pequena biografia literária contendo obrigatoriamente local de origem, data de nascimento, formação escolar, conforme o seguinte modelo: [Nome completo, … anos, nascido em ….. estudante de ……. na instituição ………….]. Com, no máximo, 180 caracteres;

2.6 – Caso o participante seja menor de 18 anos, deverá enviar, juntamente com o arquivo do poema, uma autorização assinada por seus responsáveis, seguindo o seguinte modelo:https://drive.google.com/file/d/1rWlmQifx5YFEdFInpw4pugzD-UpyiZZA/view?usp=sharing

2.7 – Candidatos acima de 18 anos também deverão enviar, juntamente com o poema, um termo assinado de autorização de publicação de seu poema – caso ele seja um dos aprovados – no e-book. Deve-se seguir este modelo: https://drive.google.com/file/d/1iN6ZyBGuuV7mI5b7PkKh3_2Meol8dyRX/view?usp=sharing

2.8 – No arquivo com o poema deve constar apenas o título (se houver) e o poema (deverá ser enviado em formato Word e PDF);

2.9 – Serão aceitos somente os trabalhos enviados até o dia 20/04/2021, (20 de abril de 2021) para o e-mail: petletrasconcursos@gmail.com;

Outras formas de inscrição que não sejam a oficial serão desclassificadas;

2.10 – Fica assegurada, com o máximo rigor, a confidencialidade dos dados pessoais dos participantes. Os arquivos com os dados pessoais dos candidatos ficarão resguardados, sendo absolutamente desconhecidos dos membros da Comissão Julgadora.

Da formatação

O trabalho deverá apresentar a seguinte formatação:

– folha A4;
– margens – superior e inferior: 2,5cm; esquerda e direita: 2,5cm;
– quantidade máxima de páginas: 2 ;
– fonte: Times New Roman, corpo 12;
– espaço entre as linhas 1,0 (um).

Os trabalhos que não estiverem nos moldes descritos serão excluídos do concurso.

Da avaliação

O julgamento das obras inscritas será feito por Comissão Julgadora, composta por professores da UNIFAL-MG, alunos e escritores.

A comissão julgadora levará em consideração os seguintes critérios:

– impacto do estilo;
– adequação ao gênero e ao tema;
– qualidade;
– inovação;
– clareza e coerência;
– originalidade no texto.

Serão atribuídas a cada trabalho apresentado notas de 0 a 10 pontos.

Da Premiação

Os autores selecionados terão seus poemas publicados em formato de e-book, além de receber certificado de participação pela Universidade Federal de Alfenas.

Fonte:
https://www.unifal-mg.edu.br/petletras/confira-o-edital-do-iii-concurso-literario-lembrancas/

sábado, 27 de março de 2021

Adega de Versos – 7: Nemésio Prata

Imagens obtidas na internet, autoria desconhecida.

 

Marcelo Henrique Marques de Souza (No fundo da estante)

Conheciam-se numa banca de jornal qualquer. Ela, com um Nietzsche nas mãos; ele pensando Ela gosta de Nietzsche... E ela, Quanta consoante...

O dono da banca olhava a cena, lamentando menos uma venda. Ninguém compra essa m...

Lá fora, o barulho do avião. Propaganda de um filme. Quer assistir? Por que não?, enquanto esconde o alemão no fundo da pilha. Não falei?...

Na fila do cinema, a mulher de meia-idade, cachoeira de recordações e ressentimentos febris, sugere a si mesma Mais um coração partido, coitada...

No filme, certa cena, o ritmo da música a diminuir e ele sentiu que era o momento. Depois do beijo, o abraço e mais outro, filme desfeito pela metade. Tudo escuro, trechos, acordes, sonatas, ausência. Chega! Ofegar das narinas a salvarem os corpos da omissão das bocas. Cuidado! E os cabelos, tão lisos...

Ao passar pela banca, na saída do filme, a mulher de meia idade compra um Nietzsche. Não dá pra ver daqui, mas parece A origem da tragédia.

O homem da banca, com o olhar perdido no meio das nádegas da mulher, não percebeu a m… que vendeu. Pensou na ex-mulher, que morrera, ao menos para ele, no meio de um filme, já nem se lembra qual. Confessou-lhe o adultério. Trailer da solidão futura.

Os outros dois, depois do filme, tiveram uma filha. Casaram, sem a comédia dos papeis. E depois de algum tempo, foram engolidos pelo apetite da monotonia.

Enquanto isso, a mulher de meia-idade divagava com os braços do homem da banca, que saíam de dentro de um livro que ela carregava não se lembra qual para tentar atenuar a tristeza momentânea. Sem lamentar, entendeu que fora sonho.

O livro jamais seria removido da estante. Apenas uma capa atraente, numa tarde vazia.

Sentados na mesma noite deserta, o casal colhia as poucas vogais que caíam do passado. Final da vela, os créditos a subirem enquanto a música anunciava a última curva. Novo trailer, novo filme, origem de mais um drama sem culpa.

No dia seguinte, pela manhã, o dono da banca recebe mais um Nietzsche da editora. Mais um traste pra ocupar espaço, ruminava enquanto acompanhava o rebolar da filha do casal, relativamente crescida, mocinha, Que ninguém me veja...

A menina não viu o livro. Não sabia quem era Nietzsche. E sonhava sem culpa com a próxima sessão.

Fonte:
II Prêmio UFES de Literatura. Coletânea de contos & crônicas. 
Vitória/ES: Editora da Universidade Federal do Espírito Santo (EDUFES), 2015.

Daniel Maurício (Devaneios Poéticos) – 7 –

 
 Ah, se o outono
Fosse só o cair de folhas!
Meus olhos
Outonam por você.
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Com a porta entreaberta
Deixei que entrasses
No meu céu.
E no céu da tua boca
A lua procurei.
Mas pra surpresa minha,
Quando estava de olhos fechados,
Estrelas
Tu me fizestes ver.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

Das barras
Dos lençóis do céu
Pingam estrelas
Enfeitando o meu quintal.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

De anjo
Me chamavas.
E a chama do amor
Em nós ardia.
Que pena,
Que era só um apelido!
Se estivesses em Paris
Eu estaria feliz.
Mas hoje,
De que me servem as asas
Se estás além
Do meu alcance?
As lágrimas
Emboloram minhas penas
Ao gotejar constante.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

De azul infinito
O anjo dizia:
Escreva, Maria!
Mas ela não sabia
Que na morenice dos seus olhos
O anjo era ela
Pra quem a sua poesia lia.

* Homenagem à amiga Rocio Vaz
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Ela dizia
Não ser poeta.
Mas quando sorria,
Ah!!!
A poesia já estava completa.
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Lágrimas

Na "maré cheia"
Emocionada,
A alma nada ligeira
Esborrifando gotinhas salgadas
Que até poderiam ser chamadas
De pedacinhos de mar interior.
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O(remos)
     remos
Que impulsionam
O barco da vida.
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O segredo do sol
É que ele nasce
Todos os dias
Sem nunca ter morrido.
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Você nem sabe
Mas às vezes
Pego carona no seu sorriso
E vou tão longe...
É...
Você nem imagina
Mas às vezes
Me escondo no cantinho dos seus olhos
E espero a dor passar.

Nilto Maciel (A Bicicleta)

Sorveu Nivaldo a cerveja do copo e olhou para a pracinha. Meninos corriam, brincavam. Homens e mulheres, sentados às mesas do bar, falavam alto. Nas paredes, jovens seminus e esbeltos sorriam e mostravam garrafas coloridas. Mocinhas seminuas posavam em praia. Estirou as pernas debaixo da mesinha e virou a cabeça para a rua. Vendedor de picolés empurrava carrinho e gritava. Garotos atenderam o chamado. No tempo de milho verde o melhor talvez não fosse comer pamonha ou canjica. Às vezes a mãe cozinhava e assava espigas. Das palhas fazia petecas. Nivaldo e outros meninos jogavam nas calçadas e dentro de casa. Nas tardes quentes, irmãs e primas se balançavam em redes, cantavam e comiam batata doce. “Índia, teus cabelos nos ombros caídos...” “Meu primeiro amor foi como uma flor que desabrochou e logo morreu”. Dia de festa quando a mãe decidia assar castanhas de caju. Ora no próprio fogão, ora em braseiros no quintal. Das cascas das castanhas manava um líquido quente. Tostadas, eram retiradas do fogo e descascadas. Nivaldo sorria para os meninos na praça. Eles também riam, mas para eles mesmos. O vendedor de picolés gritava de vez em quando e se abanava com chapéu de palha. Nivaldo lambuzava os beiços de cerveja. Carros passavam entre a calçada e a praça. Na Palma do tempo das irmãs e primas a balançarem-se em redes apenas dois carros assustavam meninos, cachorros, jumentos: um jipe e um caminhão. O trem apitava longe e sumia detrás das matas. Nivaldo corria à janela e só avistava a fumaça. No dia da morte de Vargas (ou terá sido de outro personagem?) a cidade parecia silenciosa. Não, não havia silêncio. Rádios tocavam desde cedo música fúnebre. Nenhum menino na rua, nas calçadas. O sol se escondia atrás das nuvens. Mandaram-no à casa de um vizinho. Um velho, sentado numa cadeira de balanço, escarrava e cuspia numa bacia, a todo instante. A música inundava o ar de melancolia, morte. O chão frio, o silêncio, tudo cinzento. O mundo parecia próximo do fim. As portas da igreja-matriz fechadas. Pombos e passarinhos voavam para lá e para cá. À música fúnebre sucedia-se outra.

Nivaldo bebeu mais e mais. Na praça a vida fervilhava. A vida fervilhou ou fervilhava? E o cheiro de batata doce? Ia à janela, espiava a rua, queria sair, brincar. O sol, entretanto, de tão quente, o impelia a zanzar dentro de casa, descalço, nu da cintura para cima. E ouvir irmãs e primas no balanço das redes: “Índia, teus cabelos nos ombros caídos...” Por onde andava a mãe naquelas tardes? Talvez dormisse, sofrida. E os irmãos? Talvez matassem lagartixas no quintal. O pai certamente conversava lorotas na mercearia.

Homem de cabelos brancos arrastou cadeira e se sentou. Garçom dele se aproximou com lepidez. Uma cerveja bem gelada. Sorriram, como se conhecessem há muito. Uma agora, outra depois. Nivaldo sorriu também. E levou aos lábios o copo. Nas paredes, mulheres e homens jovens, bonitos, seminus abriam sorrisos de dentes alvos e perfeitos e mostravam bebidas de variados nomes e marcas. Pela rua passavam carros em disparada. No horizonte, luzes e luzes brilhavam em postes, prédios, casas, em infindável tabuleiro de cores. Nivaldo mirou o perfil do homem de cabelos grisalhos. Talvez o conhecesse. De onde? Desde quando? Colega de faculdade, trinta anos atrás? E o nome? Arnaldo. Não. Cesário. Não. Fagundes. Também não. Mas o conhecia, sim, senhor. O outro o viu a observá-lo e franziu o cenho. Ora, ora! Sair para beber cerveja e ter de aturar um estranho a analisá-lo! Era pedir a conta e se retirar. Nivaldo chamou o garçom, em voz alta, e dirigiu-se ao vizinho: Você é de Palma? O homem quis se fazer de desentendido e virou a cabeça para um lado, a olhar para o interior do bar. Nivaldo insistiu na pergunta e só então o outro fitou os olhos nele. No entanto, Nivaldo queria contemplar a praça e ver os meninos. E quase se assustou ao avistar ao longe, como uma aparição, um corpo estranho em movimento. Vinha de longe para perto, no meio da praça. E era somente uma bicicleta e um garoto a se locomoverem lentamente.
                                                           ***

Nivaldo deu três passos, parou ao lado de Venâncio e encheu de cerveja o copo do conterrâneo. Puxasse cadeira. Agradeceu o convite. Não ia perguntar a idade do outro, mas, pelas aparências, seria uns dez anos mais velho que ele. Venâncio se pôs a falar de Palma e do passado. Quando o pai lhe comprou uma bicicleta, sentiu-se muito importante. Nivaldo sondava os olhos do outro. Semelhantes aos de um rapazinho que um dia apareceu montado numa bicicleta. E nela se deu o seu primeiro passeio na garupa.

Nivaldo pediu licença para se sentar em outra cadeira. Gostava de olhar para a pracinha. Venâncio riu. Também gostava de praças. Sua família o queria padre. A ideia lhe parecia excelente, porque nascido e criado católico, ao lado de uma igreja. Lembrava-se dela? Nivaldo examinava ora a rua, ora os olhos daquele homem que não podia ser outro senão o rapaz de quase meio século atrás. Daquela bicicleta enorme, quase do tamanho de um burro. Coisa nunca vista na cidade. Cheia de adereços, fitinhas, buzina, farol.  Quando crescesse, queria ter uma bicicleta como aquela.

Uma noite avistou de longe o rapaz na calçada, agarrado à bicicleta. Depois o viu montar nela e pedalar até a calçada de sua casa. Queria passear de bicicleta? Talvez estivesse caçoando dele. Queria ou não queria? Num minuto subiu à garupa e saíram pela praça. O jovem pedalava com suavidade, como se flutuasse. E conversava. Não falava da bicicleta. Fez a volta na praça, passou diante da igreja e se dirigiu a uma rua pobre. Acendeu o farol. Meninos corriam. Mulheres sentadas às calçadas. A bicicleta entrava em becos e vielas escuras ou semi-escuras. Com lentidão, como se nunca mais fosse parar. Tomasse cuidado para não aproximar os pés das rodas.
                                                           ***

Venâncio pediu mais cerveja, beberam, conversaram. Nivaldo também chamou o garçom outras vezes. Na pracinha já não se viam os meninos a correr. Casais se agarravam nos bancos. Carros passavam diante do bar em disparada. Venâncio falava sem parar. Após alguns anos no seminário, decidiu seguir outro caminho. Viajou para São Paulo, onde viveu alguns anos. A bicicleta passou aos irmãos mais novos e nunca mais a viu. Os pais morreram velhos. Chamava o garçom, queria beber. Em dado momento, Nivaldo voltou ao sanitário e, ao regressar, não mais viu o outro. Chamou o garçom: Onde andava Venâncio? O rapaz sorriu: Seu Venâncio era assim mesmo; quando se embriagava, saía sem pagar e noutro dia saldava a dívida. Nivaldo permaneceu no bar. Talvez o outro voltasse para completar a história. Se não voltasse, beberia sozinho. Talvez surgisse outro cidadão de Palma. Trouxesse outra cerveja.

Nivaldo olhava para a pracinha. Aonde andavam os meninos? E a bicicleta com o garoto? Talvez dormissem. Sorveu mais uns goles da bebida. Por que Venâncio se tinha retirado, sem uma despedida? Teria se lembrado do passeio de bicicleta? Sentiu no estômago um peso. Não aguentava mais cerveja. Precisava ir para casa. Quis levantar-se, não conseguiu. Uma bicicleta parecia girar ao redor de sua cabeça, ora com sofreguidão, ora muito lentamente.

Fonte:
Nilto Maciel. A Leste da Morte. Porto Alegre: Bestiário, 2006.
Livro enviado pelo autor.

2.ª Edição Prémio Nacional de Conto João de Araújo Correia (Prazo: 30 De Abril)

 
REGULAMENTO

Artigo 1.º
O Prêmio Nacional de Conto João de Araújo Correia é uma organização conjunta da Câmara Municipal do Peso da Régua e da Tertúlia João de Araújo Correia e tem como objetivo incentivar a produção literária em língua portuguesa e, simultaneamente, homenagear João de Araújo Correia, um dos mais destacados contistas do século XX.

Artigo 2.º
Este Prêmio considerará a modalidade Conto, com tema livre.

Artigo 3.º
A este Prêmio poderão concorrer cidadãos nacionais e estrangeiros sem limite de idade.

Artigo 4.º
A Comissão Organizadora nomeará um Júri, constituído por três personalidades de reconhecido mérito, que avaliará os trabalhos apresentados a concurso.

Artigo 5.º
Ao Júri será reservado o direito de não atribuir o prêmio estipulado, não havendo direito a recurso.

Artigo 6.º
Fica reservado à Comissão Organizadora o direito de reproduzir os trabalhos apresentados a concurso para fins de divulgação dos mesmos, excluindo os fins comerciais. Esta iniciativa não dará direito a qualquer compensação aos respectivos autores.

Artigo 7.º
Os trabalhos a concurso deverão ser enviados para o seguinte endereço postal:

Câmara Municipal do Peso da Régua
PRÉMIO NACIONAL DE CONTO JOÃO DE ARAÚJO CORREIA
Praça do Município
5054-003 Peso da Régua - Portugal


Artigo 8.º
Cada participante poderá concorrer apenas com um trabalho, obrigatoriamente original e inédito.

Artigo 9.º
O trabalho a concurso deverá ser assinado com um pseudônimo, o qual deverá constar no canto superior direito da primeira página do trabalho.

Cada trabalho deverá ser acompanhado por envelope fechado, onde conste a identificação do concorrente.

Artigo 10.º
O trabalho a concurso deverá ser apresentado em língua portuguesa, em páginas A4 digitadas de um só lado, com espaçamento 1,5, tipo de letra Times New Roman, tamanho 12, não excedendo as 7 páginas.

O envio do trabalho deverá ser feito em triplicado.

Artigo 11.º

A data limite para apresentação de trabalhos a concurso é 30 de abril de 2021 (data do carimbo dos correios).

Artigo 12.º

A comunicação dos resultados do Prêmio Nacional de Conto João de Araújo Correia será feita nos canais oficiais das entidades organizadoras.

Artigo 13.º
A comunicação dos resultados será efetuada até 120 dias após a data indicada para apresentação de trabalhos a concurso.

Artigo 14.º
Será atribuído um prêmio pecuniário no valor de 1.500,00€ ao primeiro classificado e Menção Honrosa ao segundo e terceiro classificados.

Omissões
As eventuais omissões a este Regulamento serão resolvidas pela Comissão Organizadora.


Fonte:

sexta-feira, 26 de março de 2021

Figueiredo Pimentel (A Casa de maribondo)


Xisto e Tomás eram conterrâneos filhos da mesma aldeia, uma aldeiazinha de Trás-os-Montes, em Portugal. Desde crianças, sendo quase da mesma idade, eram íntimos amigos, e continuaram sempre na mesma intimidade, depois de grandes, casados e pais de filhos, vindo até a serem compadres.

Tão amigos eram, que resolveram embarcar para o Brasil já que na aldeia não tinham esperanças de melhorar de estado, ao passo que ouviam dizer que nos Brasis, floria a Árvore das Patacas*. Era só a gente subir aos galhos, e recolher moedas.

Assim um belo dia embarcaram no mesmo navio. Sofreram iguais privações, juntos compartilharam as mesmas mágoas, as mesmas saudades da Santa Terrinha, que deixaram, e das esposas, os filhos, os amigos, o burro, mais a vaca, dois bezerrinhos, quatro leitões, e mais de dúzia e meia de cabeças de criação.

Aqui, porém, a sorte mudou. Xisto enriqueceu no comércio de escravos, e numa porção de negócios do mesmo gênero. Tomás, no entanto, continuava pobre, e mais pobre se viu, depois que, à imitação do compadre, mandara vir a mulher. A sua vida, por último, era um horror, e vendo que não podia viver mais na cidade, onde tudo estava caríssimo, por preços exorbitantes, resolveu-se a ir pedir ao comendador Xisto, que possuía léguas e léguas de terras abandonadas, de todo incultas, alguns palmos de terreno, onde pudesse construir uma casinha de morada, e cultivar alguns produtos de pequena lavoura, que o sustentassem, mais a família, e que pudesse ir vender à vila.

Xisto, dessa vez mostrou-se compassivo e generoso: cedeu ao seu compadre pobre, a terra que necessitava, e Tomás ali se aboletou, numa choupana coberta de sapé, que edificou por suas próprias mãos.

As duas moradas eram vizinhas. De um lado, via-se a miserável cabana de Tomás da Abadia, e do outro, a soberba e luxuosa vivenda do “honrado comendador Xisto Manuel de Souza e Silva.

Certa vez, Tomás estava cavando a terra, e Xisto se achava perto, gozando o prazer de não trabalhar, e ver o seu íntimo amigo a mourejar como um escravo. De repente, a enxada de Tomás bateu num corpo estranho, duro, resistente. Cavou mais, afundou o buraco, e eis que descobriu uma panela cheia de moedas de ouro.

Como as terras lhe pertenciam, Xisto apressou-se em levar o pote a casa, muito agitado, e não consentiu mais que o compadre pobre trabalhasse em suas terras.

Despediu o pobre Tomás, e chamou a mulher para verem as riquezas que existiam em sua propriedade.

Abriram então a panela, mas encontraram apenas uma casa de maribondos.

Julgando que aquilo era caçoada de Tomás, o milionário ficou possesso de raiva, e protestou que havia de lhe pregar uma peça.

Apanhou a casa, colocou-se com muito jeito num saco, para não alvoroçar os bichos, e dirigiu-se à casa de Tomás.

Assim que o avistou, foi logo gritando:

– Compadre, fecha as portas e deixa somente um lado da janela aberto...

Tomás fez o que lhe dizia o outro.

Xisto chegando perto da janela, jogou para dentro a casa de maribondos, dizendo:

– Fecha agora tudo, compadre, e toma este presente que te trago.

Mas os maribondos assim que bateram no chão, transformaram-se em moedinhas de ouro, e o pobre Tomás chamou a mulher e os filhos para ajuntá-las.

Xisto gritava:

– Ó compadre, abre a porta!

– Deixa-me compadre Xisto, já não posso mais com estes malditos bichos, que me matam de ferroadas, respondia o outro, que compreendeu imediatamente o que havia sucedido, satisfeito por ver que Xisto não conseguira fazer o mal que pretendera.

E o rico ria-se da boa peça que havia pregado ao pobre.

Ficou assim o pobre rico, e o rico pobre, por querer fazer maldade que não conseguiu.
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* Antiga moeda de prata, que valia 320 réis.

Fonte:
Alberto Figueiredo Pimentel. Histórias da Avozinha. 
Publicado em 1896.

Caldeirão Poético XLI

Darly O. Barros

São Paulo/SP

ESTRELA CADENTE


O palco é o céu que a vista descortina
em seu passeio, quando, de repente,
depara-se com bela bailarina,
a deslizar, esguia, reluzente…

A lua, por um palmo de cortina,
também a espia e então, infelizmente,
desaparece a etérea peregrina
que já não baila mais, à minha frente…

Para onde foi? Que fim levou a estrela?
indago de mim mesmo, sem revê-la,
frustrado e, além de tudo, arrependido

por não lhe ter de todo deslumbrado
com ela e a perfeição do seu bailado
feito, naquele instante, o meu pedido…
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

Francisco Neves de Macedo
Natal/RN, 1948 – 2012

…E O AMOR SE FEZ SONETO


Sono esquecido, a acolho, nos meus braços,
ouço o teu respirar, lindo, ofegante,
nos seus carinhos, mil beijos e amassos,
instante lindo, não mais que um instante!

Tomo-te, assim, vasculho teus espaços,
orgasmos loucos, sonhos fascinantes!
Por tudo que fizemos, os cansaços,
se fazem adrenalina nos amantes.

Respiração… A voz que enleva a gente,
agora se faz terna, mas, ardente.
Voz que em louco prazer se faz dueto.

Onde estiver, é certo estar presente,
cada suspiro, que trará na mente,
este momento, que se fez soneto!
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

Hegel Pontes
Juiz de Fora/MG, 1932 – 2012

A ALMA DA PEDRA


Longa pesquisa. E o mestre hindu descobre
que existe uma fadiga nos metais;
que o descanso renova, do ouro ao cobre,
o reino singular dos minerais.

Eu também sinto que a matéria encobre
estranhas vibrações emocionais.
É que a pedra tem alma, simples, nobre,
sonhando evoluções espirituais.

E a alma da pedra imóvel é a energia
que evolui, na ilusória letargia,
entre seres gigantes e pigmeus.

E sonha, nos milênios que a consomem,
ser um cacto que sonha ser um homem,
ser um homem que sonha ser um Deus.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

José Tavares de Lima
Juiz de Fora/MG

DOAÇÃO INFELIZ


Não me censures se não te procuro,
nem tentes entender meu desamor…
Mataram cedo o sentimento puro
que havia no meu peito sonhador!

Este meu jeito indiferente e duro
somente esconde um natural temor,
porque sofri demais; e, te asseguro:
morre a ternura em quem sofreu de amor…

Doei-me inteiro para alguém, um dia;
acreditei nas juras que fazia,
e em paga só colhi desilusão…

Hoje, ferido por tão rude espinho,
acostumei-me tanto a ser sozinho
que até me sinto bem na solidão!
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

Judas Isgorogota
(Agnelo Rodrigues de Melo)
Traipu/AL, 1901 – 1979, São Paulo/SP

O HERÓI

"— Papai, o que é um herói?
Eu pergunto porque tenho grande vontade
De ser herói também ...

Será que posso ser herói sem entrar numa guerra?
Será que posso ser herói sem odiar os homens
E sem matar alguém?"

O homem que já sofrera as mais fundas angústias
E as mais feias misérias
Trabalhando a aridez de uma terra infecunda
Para que não faltasse o pão no pequenino lar;
O homem que as mais humildes ilusões perdera
No seu cotidiano e ingrato labutar;
Aquele homem, ao ouvir a pergunta do filho:
— "Papai, o que é um herói?"
Nada soube dizer, nada pôde explicar...

Tomou de uma peneira
E cantando saiu, outra vez, a semear!

Fontes:
Ademar Macedo. Mensagens Poéticas.