sexta-feira, 12 de março de 2021

Estante de Livros (A Intrusa, de Júlia Lopes de Almeida)


Artigo Júlia Lopes de Almeida: O Discurso do Outro, de Elódia Xavier (UFRJ)


O tema da sucessora, isto é, da mulher que substitui a primeira esposa falecida, foi introduzido na literatura brasileira por José de Alencar, em 1877, sob o título sugestivo de “Encarnação”. Trata-se do último romance do painel alencarino e reflete, até certo ponto, as  precárias condições de saúde do autor, que morreria pouco  depois.

Tem, porém, o mérito de revelar um Alencar  "psicólogo", preocupado com o mundo mental de seus personagens. Hermano, o protagonista, é um caso patológico: seu amor por Julieta, a primeira esposa, chega às raias da obsessão e contra isso, Amália, a heroína, empreende uma luta sem tréguas, onde entra, em grande dose, a perspicácia das personagens femininas de Alencar. Amália encarna, para conquistar o marido, os atributos físicos de Julieta, chegando a confundi-lo e acaba salvando-o do incêndio que destrói o passado, tornando possível a plena realização  seu casamento. Alencar, fiel ao princípio romântico do primeiro e único amor, "encarna" Julieta em Amália e, como garantia de fidelidade, dá à filha do novo casal o nome de Julieta.

Carolina Nabuco, em 1934, vai trabalhar este mesmo tema em “A sucessora”, solucionando o conflito entre Marina, a segunda esposa, e Alice, a inesquecível, através da maternidade. A presença atuante de Alice, representada por um retrato pintado a óleo, ameaça a relação de Roberto e Marina, que só se salva graças à gravidez desta; a procriação que a torna superior à outra, mascada pela esterilidade. Carolina Nabuco reduplicou, aqui, os valores dominantes, enaltecendo a mulher pela sua função procriadora, promovida, assim, à "rainha do lar".

Júlia Lopes de Almeida também se ocupou deste tema e o fez bem antes de Carolina Nabuco, com “A intrusa”. É uma obra instigante, porque se presta a mais de uma leitura, como teremos oportunidade de ver; e, embora escrita em 1908 (foi publicada em folhetim no Jornal do Comércio em 1905), pertence ainda ao século XIX, pela visão de mundo apresentada.

Trata-se da história de Argemiro, viúvo, que contrata uma governanta para cuidar da casa e fazer companhia à filha, quando vier visitá-lo, pois a menina Maria mora com os avós numa chácara afastada da cidade. O protagonista conserva-se fiel à primeira esposa, a quem jurou amor eterno no leito de morte. Com a chegada da governanta, conseguida através de um anúncio no jornal, cria-se o conflito, pois a sogra, guardiã da promessa do genro, considera Alice uma ameaça perigosa e entra num processo alucinatório, imaginando sua filha traída e a situação doméstica desestabilizada pela presença da intrusa. Para evitar desastre, muda-se com o marido e a neta, para a casa do genro e, aproveitando a ausência deste, expulsa Alice.

Quando Argemiro retorna, ansioso por usufruir as benesses de sua casa, agora bem administrada pela governanta, que ele não conhece e nem faz questão de conhecer, mas que aprecia através dos benefícios que sua presença lhe proporciona, encontra a situação em pé de guerra. Alice está para partir expulsa pela Baronesa e Feliciano, remanescente da escravidão, pronto a reassumir suas funções, de que fora destituído com a chegada da governanta.

Na trama, destaca-se, ainda, o padre Assunção - é ele que desvela o passado de Alice pondo em evidência todas as suas virtudes - como também pelo segredo que ele esconde - seu amor pela primeira esposa de Argemiro, razão de ser da opção pela batina. Como era de se esperar, a entrevista de Argemiro com Alice para o acerto de contas é o momento decisivo para o desenlace feliz. É a primeira vez que o patrão vê, de fato, a governanta e, estando já cativado pelos serviços prestados, acaba se casando com ela, para alegria da filha e infelicidade da sogra.

Se a trama privilegia o personagem Argemiro e, até certo ponto, o padre Assunção, gira o tempo todo em torno da mulher; é ela que está em questão. A cena inicial apresenta uma reunião semanal em casa de Argemiro: quatro amigos jogam, conversam e, diante da decisão do dono da casa de contratar uma governanta, surgem opiniões diversas sobre a mulher, todas enfatizando o perigo que ela representa. "Feia ou bonita, a mulher é sempre perigosa" diz um dos amigos.

A alta burguesia, aliada a remanescentes aristocráticos, ocupa o espaço social do universo romanesco. Feliciano, criado pela família da Baronesa, é o empregado revoltado com sua condição social e Alice, embora dependa do trabalho para viver, pertence à média burguesia de formação liberal. Os conceitos sobre a mulher fazem parte, portanto, da ideologia dominante, uma vez que Feliciano pouco fala e Alice se resume no tema das conversas, no motivo do conflito. É enaltecida por Argemiro, que usufrui dos serviços prestados, pela menina Maria, que aproveita suas lições, pelo padre Assunção, que conhece sua história e abominada pela Baronesa, que tem ciúmes de seus poderes.

O narrador, frequentemente, se posiciona diante da condição feminina, aceitando e recusando, ao mesmo tempo, os valores vigentes. Pertence à classe dominante uma personagem feminina - a Pedrosa, cuja característica é a determinação com que manipula as pessoas para atingir seus objetivos. Dirige a carreira do marido fazendo-o de deputado, senador e, finalmente ministro. Quando o narrador diz - "Vingava-se do Destino a ter feito mulher" -, revela uma certa revolta pela inferioridade da condição feminina, mas encara esta situação como uma fatalidade. A mulher, como não pode atuar diretamente sobre a realidade, usa estratagemas e pessoas para atingir seus objetivos.

Fica tudo muito ambíguo, pois a personagem é negativa, forçando as pessoas a fazerem o que não querem. De fato, o que predomina é o status quo, onde o "destino de mulher" (para usar uma expressão de Simone de Beauvoir incorporada por Clarice Lispector no conto "Amor") é limitado pelas paredes do lar. A Pedrosa é hospitalizada pelos seus estratagemas e Alice é valorizada pelas virtudes domésticas.

A educação da mulher é outro aspecto abordado pela narrativa, através da formação da menina Maria. Entregue aos descuidados dos avós, morando na chácara, tem uma vida livre e natural, sem as repressões do processo de domesticação. O resultado é uma menina "selvagem" sem instrução; mas, sobretudo, sem o aprendizado das convenções que farão dela uma mulher. Argemiro, preocupado com a formação da filha, concorda com a Baronesa: "A avó tem razão; minha filha já está muito crescida para aqueles modos de rapaz..." (p.28) Ao final da narrativa, domesticada por Alice, a menina Maria terá não só uma boa dicção francesa, mas caberá preparar arranjos florais, fazer crochê e outras prendas consideradas, então, importantes na formação da mulher. Aliás, a narrativa está toda pontuada por preconceitos relativos à condição feminina. O sogro de Argemiro, homem cordato e pacífico, tentando controlar o ciúme doentio da mulher, lhe diz: "Mas és mulher, e vives mais do sentimento que da razão", repetindo um lugar comum da ideologia dominante. Argemiro também incorre neste tipo de preconceito, quando se surpreende diante das contas feitas por Alice: "Os seus cadernos estão numa ordem admirável. Realmente eu nunca imaginei que uma senhora  desse tanto de contas... é um guarda-livros! (p.298)

Concluindo: a partir desta leitura de “A Intrusa”, o que é ser mulher? O modelo a ser tomado é Alice, que aceita passivamente as regras do jogo (anulando-se como pessoa, pois não deve ser vista pelo patrão), zelando pela casa e pela menina Maria quando em visita ao pai. O resultado do seu trabalho torna-se logo evidente criando uma atmosfera acolhedora, que envolve Argemiro e o seduz inapelavelmente.

Como se trata de um viúvo, preso à falecida por uma promessa de amor eterno, o casamento com Alice, ao final, tem um significado especial: representa o prêmio por tantos cuidados. Alice ganha um marido pelos serviços prestados, pois ele mal a conhece; desempenhando a contento o papel de governante, ela se tornou dona da casa e viveram felizes para sempre! Será?

Se esta leitura pela ótica da condição feminina apresenta certas ambiguidades, decorrentes, talvez, do fato de se tratar de uma narrativa de autoria feminina que fala sobre a mulher dentro da perspectiva do século XIX, uma leitura de natureza político-social revela um mundo mais ordenado. Lembrando que a República, decretada há apenas dezesseis anos, ainda vivia uma fase de acertos e desacertos, sobretudo no plano social, pode-se ler A intrusa como uma metáfora deste momento da vida brasileira.

A classe nobre aí representada pela Baronesa e seu marido, muito zelosa de seus poderes já bem desgastados; a Igreja, na figura do padre Assunção, todo bondade e compreensão, além de fiel a seu grande amor pela filha da Baronesa (a aliança nobreza/clero fica patente no final); Feliciano, remanescente do sistema escravocrata, produto espúrio da nobreza, vivendo às custas de um trabalho mal feito e mal pago; Alice, a recém-chegada, representante de uma classe emergente que faz do trabalho serio um instrumento de ascensão social; e, finalmente, Argemiro (de argentum -- prata, metal), o poder econômico, senão cobiçado, pelo menos motivo dos cuidados de todos. Deve se manter fiel á nobreza com quem conviveu durante tanto tempo; mas a incapacidade da Baronesa em educar a menina Maria e a negligência de Feliciano levam o dono da casa a procurar uma governanta, que satisfaça suas necessidades de conforto e tranquilidade. É, portanto, Alice, a "intrusa" sob a ótica da nobreza, quem vai se apossar do poder econômico, pelas virtudes do caráter e do trabalho.

O trabalho é um dado importante dentro da narrativa; e ele que possibilita a ascensão social de Alice  de governanta a dona de casa. No contexto político-social, a República vai favorecer as profissões liberais, valorizando o trabalho ate então restrito às classes desfavorecidas. No contexto feminino, sob a ótica atual, a atividade de Alice é redutora: seu trabalho doméstico a mantém no plano da imanência, não lhe dando possibilidades de transcender. Simone de Beauvoir, no “Segundo Sexo”, aponta para o caráter redutor do trabalho doméstico, sempre voltado para si mesmo. Mas, dentro da perspectiva do século XIX, a realização da mulher estava limitada ao espaço doméstico; por isso, não surpreende que Alice conquiste Argemiro enfeitando a casa, cuidando do jardim e educando sua filha.

A narrativa de Júlia Lopes de Almeida conserva os valores dominantes, apesar de certa consciência feminista latente. Ainda não havia chegado o momento em que a narrativa de autoria feminina se põe a questionar o papel da mulher. Vimos como Carolina Nabuco, em “A sucessora”, soluciona o drama de Marina; ora, nada mais anti-feminista do que valorizar a mulher pela sua capacidade procriadora.

Clarice Lispector, no conto "Uma galinha", aponta, ironicamente, para esta situação, quando a ave fugitiva, após por um ovo', se transforma na "rainha da casa", escapando da panela. De fato, é a obra de Clarice que rompe com o discurso do outro, na narrativa de autoria feminina; ela problematiza o "destino de mulher", evidenciando o que há de convencional e de socialmente condicionado.

Júlia Lopes de Almeida é autora de uma obra rica variada, onde a mulher ocupa sempre o primeiro plano; e “A intrusa” é apenas um exemplo da sua capacidade  criadora, onde a condição feminina é tematizada, respeitando os valores dominantes.

Bibliografia
ALENCAR, José de. Encarnação. In: Romances ilustrados de José de Alencar. v.7. Rio de Janeiro: Jose Olympio; Brasília: INL, 1977.

ALMEIDA, Júlia Lopes de. A intrusa. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1908.

LISPECTOR, Clarice. Uma galinha. In: Laços de família. São Paulo: Francisco Alves, 1960.

NABUCO, Carolina. A sucessora. Rio de Janeiro: Ediouro, s/d.

Fonte:
Periódicos da UFSC.

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