segunda-feira, 18 de janeiro de 2016

Olivaldo Júnior (Coisa de amigo)

No bar aonde nunca vou, um amigo me espera. Tem olhos que me entendem como eu sou, mãos que apertam como se deve as minhas. Esse bar é muito longe de onde moro. Não sei sequer onde fica. Fico de olho nas ruas onde passo de ônibus. Não fica lá. Longe, deve estar mais perto do céu que da terra onde estamos.

Conta coisas meio bobas, passadas há muito, quando nem nos conhecíamos. Logo que enche o bar, felizes por estarmos bem, paramos tudo e cantamos alto as canções mais belas daqui, onde canta o sabiá. Se eu fosse um passarinho, voava para perto desse bar, que se esconde numa nuvem qualquer, "às barbas" de Noé.

De vez em quando, se essa vida fica feia, chora baixo, em frente a mim, que o reconforto com palavras de esperança, como um velho missionário, sem saber que sou aquele que professa a própria fé: coisa de amigo. Minha fé, como todo credo, nasce das lágrimas de Deus, das páginas dos homens, das máximas de mim, que sou autor de minha história (mesmo que até a página dois...). Depois, mais firme, com um sorriso em seus olhos, fala de tanta coisa de que se havia esquecido, tanta coisa importante que deixara de lado, com propósito, sendo adulto, de voltar a menino.

Na poeira de meus tênis surrados, de meus olhos cansados, de meus lábios silentes, tem um pouco da poeira do chão, dos móveis e da eterna despensa daquele bar aonde nunca vou. Nele, um amigo, o amigo me espera. Falamos de versos, de Bossa e de Vinicius, sem vontade de sair de lá, de deixar que esse pó nos cubra e nos descubra como seres que se afinam nos acordes da memória, que, falha, fura a fila da existência e bebe um pouco desse álcool, desse etílico da amnésia. Esquecer, muitas vezes, é o único remédio: coisa de amigo. Amigo, anônimo, num bar, meu lar.

Fontes:
O Autor
Imagem = http://paposdebar.blogspot.com.br/

Jorge Luis Borges (Sereias)

Ao longo do tempo, as sereias mudam de forma. Seu primeiro historiador, o rapsódio do décimo segundo livro da Odisséia, não nos diz como eram; para Ovídio, são aves de plumagem avermelhada e rosto de virgem; para Apolônio de Rodes, da metade do corpo para cima são mulheres e, para baixo, aves marinhas; para o mestre Tirso de Molina (e para a heráldica) "metade mulheres, metade peixes". Não menos discutível é sua categoria; o dicionário clássico de Lemprière entende que são ninfas, o de Quicherat que são monstros e o de Grimal que são demônios. Moram numa ilha do poente, perto da ilha de Circe, mas o cadáver de uma delas, Partênope, foi encontrado em Campânia, e deu seu nome à famosa cidade que agora se chama Nápoles, e o geógrafo Estrabão viu sua tumba e presenciou os jogos ginásticos que periodicamente eram celebrados para honrar sua memória.

A Odisséia conta que as sereias atraíam e faziam naufragar os navegantes e que Ulisses, para ouvir seu canto e não perecer, tapou com cera os ouvidos dos remadores e ordenou que o amarrassem ao mastro. Para tentá-lo, as sereias lhe ofereceram o conhecimento de todas as coisas do mundo:

Jamais alguém por aqui passou, em nau escura, que não escutasse a melíflua voz que sai de nossas bocas; mas só partiu, depois de se ter deleitado com ela e de ficar a saber mais coisas, pois conhecemos tudo quanto, por vontade dos deuses, Aegivos e Troianos sofreram na vasta Tróia, bem como o que sucede na terra fecunda.
____________
(Odisséia, XII)*

Uma tradição recolhida pelo mitólogo Apolodoro, em seu Biblioteca, conta que Orfeu, da nave dos argonautas, cantou com mais doçura que as sereias e que estas se precipitaram ao mar e se transformaram em rochas, porque sua lei era morrer quando alguém não sentisse seu feitiço. Também a esfinge se precipitou do alto quando decifraram seu enigma.

No século Vl, uma sereia foi capturada e batizada no norte de Cales, e figurou como uma santa em certos almanaques antigos, sob o nome de Murgen. Outra, em 1403, passou por uma brecha de um dique e viveu em Haarlem até ao dia de sua morte. Ninguém a compreendia, porém ensinaram-na a fiar e venerava como por instinto a cruz. Um cronista do século XVI argumentou que não era um peixe porque sabia fiar, e que não era uma mulher porque podia viver na água.

O idioma inglês distingue a sereia clássica (siren) das que têm cauda de peixe (mermaids). Na formação desta última imagem teriam influído por analogia os tritões, divindades do cortejo de Posêidon.

No décimo livro da República, oito sereias presidem a revolução dos oito céus concêntricos.

Sereia: suposto animal marinho, lemos num dicionário brutal.

Fonte:
Pequena Antologia para se Ler Jorge Luis Borges. Digital Source.

Silvana da Rosa (A mulher escritora e personagem nos contos de fadas) Parte XX

É sabido que a feminista Simone de Beauvoir, com a obra Le deuxième sexe (O segundo sexo), escrita em 1949, já se mostrava a “nova mulher”, uma vez que silenciou o mundo para que ouvissem que essa ideia de dominação patriarcal devia ser abolida da sociedade. Além disso, o seu apelo se estendeu pela abolição do mito do “eterno feminino”, assim como ela o denominava. Assim como Beauvoir, Angela Carter também aderiu ao Movimento Feminista, e suas ideias eram bastante transparentes em suas obras. De acordo com Vivian Wyler, Carter explicava a sua adesão ao movimento desta forma:

Se o louco persiste em sua loucura, ele se torna sábio. Eu imagino que seja desta maneira que eu tenha alcançado o feminismo, ao analisar a sensação de que sempre havia algo que ficava do lado de fora do quadro, e descobrir que era uma coisa bem importante, afinal, porque todo o tempo que eu pensara que as coisas estavam indo muito bem, estava sendo considerada uma cidadã de segunda classe. (CARTER apud WYLER, 1999, p. xiii)
                     
Carter não só se desfez do tradicional início dos contos de fadas, como também relativizou o “sempre”, em “eles viveram felizes para sempre”,  comprovando o contrário, pois nem sempre os casamentos são duradouros, nem sempre se vive feliz em um único relacionamento e nem sempre a mulher tem que assumir o papel de eterna vítima em uma união, ou sofrer calada nas mãos de um algoz. De certo modo, Murat já havia questionado, não o início como Carter, mas a frase final dos contos de fadas, ainda no século XVII.

Em A Bela e a Fera, como já foi visto, Beaumont também mostrava indignação pela mulher ter que seguir um roteiro pré-estabelecido para sua vida, uma vez que esse não permitia outras escolhas à mulher, além do casamento e da maternidade. Beaumont ainda também se mostrava contrária a casamentos escolhidos e impostos pela família dos noivos, sendo que os familiares geralmente visavam o somatório de bens financeiros. Tratava-se de negócios e não de relacionamentos amorosos.

Ao longo do conto, percebe-se que a personagem de Carter em momento algum deixou transparecer ingenuidade ao narrar os momentos íntimos que teve com seu marido. De forma realista, consciente percebeu que aqueles momentos vividos, para ela não apresentavam nada de magicidade. Ironicamente, evidenciava-se a dura realidade, ou seja, o seu casamento era um negócio, onde ela era a mercadoria e o Barba-Azul, o comprador.

Além disso, o casamento, para a personagem, em O quarto de Barba-Azul, não significava amarrá-la ao monstro para sempre ou por toda vida. A autora mostra que a mulher não se atrela única e exclusivamente àquele homem específico por ter tido relacionamentos íntimos com o mesmo. Percebe-se ainda nesse conto que a personagem, herdeira de medos e culpas do passado, está soltando as suas amarras. Desse modo, a protagonista de Carter é a nova personagem que também retrata a nova mulher na esfera social, ou seja, é uma mulher autêntica, bem informada, inteligente, de personalidade forte assim como a mãe. É aquela que mostra a sua intelectualidade e é capaz de, senão conduzir na medida certa o seu sentimentalismo, saber muito bem que a excitação pode ser sentida sem estar acompanhada de amor.

E comecei a tremer como cavalo antes da corrida, ainda com uma espécie de medo, porque sentia excitação a um tempo estranha e impessoal de amor e repugnância, excitação que eu não era capaz de sufocar, por sua carne branca e pesada [...] (CARTER, 1999, p. 17)

Estava deitada sozinha na cama. E desejava-o e ele repugnava-me. (CARTER, 1999, p. 28)

                     
Já no século XVII, Julie Murat, em Le palais de la vengeance havia defendido sutilmente a ideia de que o amor com o tempo podia se esvair. Evidentemente que, para aquela época, contestar a verdade consagrada do discurso masculino não era tarefa fácil, por isso o que se pensava era escrito implicitamente.

Felizmente, os novos tempos e a coragem de escritoras do passado propiciaram que mulheres como Carter não mandassem recados e, sim, escrevessem sobre a transparência dos sentimentos femininos. Evidentemente que, ao contrário de Perrault, Carter não direcionou as suas obras ao público infantil, pois percebe-se que o erotismo explícito é mostrado constantemente em suas narrativas. Na verdade, Carter retoma a sexualidade feminina, sufocada ainda em um passado não muito distante. Tanto que a escritora descreve a sexualidade à flor da pele, em contrapartida com a decadência do amor.

[...] Senti-me tonta, como à beira do precipício; tive medo, não tanto dele, da sua presença monstruosa, pesada, como se ao nascer lhe tivessem dado o dom de uma gravidade maior que a de todos nós, presença que, mesmo quando eu me sentia mais apaixonada por ele, mesmo quando ela me oprimia sutilmente... Não, eu não tinha medo dele; mas de mim. (CARTER, 1999, p. 25-26)
De outro modo, a personagem-protagonista de Carter queria algo mais em um relacionamento, além de somente ser objeto de desejo sexual. Em O quarto do Barba-Azul, a protagonista, quando se deparou com a partida inesperada do marido, confessou (lamentando o único momento de intimidade que teve com o Barba-Azul): “E tive de me contentar com isso” (CARTER, 1999, p. 23).

Situação semelhante ocorre em A noiva do tigre, uma vez que Bela não consegue entender as atitudes da Fera, visto que ela o deseja sexualmente, no entanto, ele somente quer vê-la nua: “Julguei que a Fera tinha desejado muito pouco perto do que eu estava preparada para lhe oferecer [...]” (CARTER, 1999, p. 108).

É sabido que, em tempos precedentes, jamais se discutia quanto à vontade sexual da mulher, tanto que a virgindade era um fator essencial para que a mesma se casasse e fosse aceita pela sociedade, uma vez que a moça considerada impura era posta fora de seu lar e não mais era aceita no convívio familiar. Tanto que para homens como o Barba-Azul, ignorantes ogros, a castidade feminina era motivo de orgulho. O Barba-Azul, em Carter, comparou sua recente esposa casta às demais, que possuíam vida pública e, com isso, sentiu-se enaltecido em sua virilidade masculina em desposar uma menina nessa situação.

- A criada já deve ter trocado as roupas de cama - ele anunciou. - Não penduramos na janela os lençóis ensanguentados para que toda a Bretanha soubesse que você era virgem, porque isso já não se faz nestes tempos civilizados. Mas devo dizer que teria sido a primeira vez que em meus vários casamentos que poderia ostentar tal bandeira. (CARTER, 1999, p. 23)                     
Em O quarto do Barba-Azul, Carter desnuda a fêmea para mostrar o seu corpo e seus desejos que em nada diferem dos masculinos, como em: “Minha pele arrepiava-se quando ele me tocava” (CARTER, 1999, p. 9). Sendo assim, Carter evidencia que o corpo da mulher possui uma linguagem que deve ser ouvida, tanto que a autora desvincula o amor de sexo, ideal imposto às mulheres. Em relação a isso Vivian Wyler (1999) menciona que o conto do Barba-Azul:

[...] propõe uma mulher que escolhe o lugar certo de colocar seu desejo, que desvincula sexo de amor, que pode até aceitar o sadomasoquismo se esta for uma troca negociada entre os parceiros. No decorrer da década de 8O, Carter seria apelidada de “sacerdotisa da pornografia pós-graduada”. (WYLER, 1999, p. xv)
Angela Carter mostra que hoje a virgindade não é considerada tema em voga para a figura feminina, visto que a mulher se desfez dos espartilhos e de vestimentas físicas e morais que a amordaçam e a escondam dos conturbados olhos masculinos.

Em O quarto do Barba-Azul, a escritora criou um personagem cego, o afinador de pianos e, com isso, comprovou aquele antigo ditado popular “cego é aquele que não quer ver”, uma vez que esse personagem enxergou além do que os olhos humanos são capazes de ver, ou seja, ele desvendou o mistério de Barba-Azul com o auxílio da personagem-protagonista.

Possivelmente, a partir dessa situação, enxergar o que os olhos não veem, a escritora quisesse mostrar aos leitores que as características humanas, não somente as femininas, são inatas, uma vez que, por um determinado tempo, essas podem ser escondidas, abafadas, mas, em um certo momento, o inevitável acontece, elas afloram, é uma situação normal à natureza humana. Por exemplo, em contos precedentes, as mães das heroínas assumiam posturas submissas. Enquanto em Branca de neve se tem uma mãe pensativa quanto à cor de cabelo e de pele de seu futuro bebê, em Bela adormecida e Cinderela a figura materna se fez ausente, em O quarto do Barba-Azul, de Carter, a figura materna foi descrita em um cenário digno de filme de faroeste, ou seja, ela vinha cortando os ventos, montada em um cavalo, com a saia erguida até a cintura e trazendo consigo uma pistola. A mãe, neste conto, é uma heroína, que chega velozmente tal qual uma fera para proteger sua amada cria, matando o agressor da mesma. No entanto, a valentia dessa mulher não tomou forma somente neste momento, segundo sua filha, a coragem já há muito acompanhava sua mãe:

Ao completar 18 anos, minha mãe abatera um tigre que estava devorando um homem e que tinha atacado as aldeias montesinas a norte de Hanói. Agora, sem hesitar um momento, levantou a pistola de meu pai, apontando-a e disparou uma única e impecável bala, que atravessou a cabeça de meu marido. (CARTER, 1999, p. 58)                     
Percebe-se que Carter, além de narrar a cena da chegada da mãe da protagonista de forma bem humorada, deseja algo mais, ou seja, as palavras da autora ditam novas ideias que se configuram em atitudes revolucionárias, impressionantes. Na verdade, essa cena recompõe outra cena, a tradicional dos contos de fadas, em que o príncipe chega, montado em seu cavalo, para salvar a princesa.

Além disso, a mãe não era uma personagem ingênua que veio salvar a filha, auxiliada por uma fada madrinha. Nada disso aconteceu, a mãe, mulher decidida, forte e inteligente, trouxe consigo um revólver e, pelo jeito, sabia muito bem usá-lo. E o homem rendeu-se diante do poder desta mulher.

Ironicamente este personagem reconstrói a nova imagem feminina que não inutiliza o velho. A imagem já bem conhecida de que a mulher é mãe e zelosa pelo seu filho permanece, mas a partir daí se propõe uma figura recém-criada, saída do forno, que extrapola os limites impostos para a figura feminina, uma vez que ela se mostra aguerrida, corajosa e dotada de um sentido a mais em relação aos homens, a sensibilidade,    caracterizando a mulher, hoje e sempre. Somando-se a isso, a autora brinca, ironiza com a imagem masculina consagrada em contos passados, ou seja, a mãe resolve o caso com as suas próprias mãos, enquanto o homem que a acompanhou durante o trajeto até o castelo só era um mero espectador, um adorno imóvel que nada acresceu à situação.

continua...

Fonte:
Silvana da Rosa. Do tempo medieval ao contemporâneo: o caminho percorrido pela figura feminina, enquanto escritora e personagem, nos contos de fadas. Dissertação de Mestrado em Letras. Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC), 2009

domingo, 17 de janeiro de 2016

Olivaldo Júnior (Papel de pão)

O presente vinha embrulhado num papel de pão. Ao lado dele, um menino, do alto de seus oito anos, aguardava o pai, que entrou na venda do Nhô Chico, voltar com as compras.

A família de Toquito, o menino ao lado do presente, era pobre e morava num casebre à beira da estrada que ligava Serrania com Adonai, duas cidades vizinhas. Família de respeito.

"Não abre o presente, Toco!", disse o pai ao menino um pouco antes de ir à venda. Ai, a curiosidade infantil lhe comia as pontas dos dedos, que formigavam para abrir o pacote pardo!

Toquito fora sempre um bom menino. Já sabia ler e escrever que era uma coisa! O pai e a mãe, analfabetos, sem letras na mão, mal podiam crer que o filho realmente aprendera a ler.

Hum... E se Toquito espiasse o presente pelas dobras mal feitas do pacote sem técnica de embrulho? Ninguém saberia. Mas seu anjo da guarda, que usava chapéu e tudo, estava lá.

O pai demorava muito. Meu Deus, que presente era aquele? O que seu pai comprara que precisou ser embrulhado em papel de pão? Seria pão mesmo? Mas pão era um presente?

Aquele menino sonhava em ter um mero relógio de pulso. Achava lindo ter as horas no corpo e, fazendo pose, como se tivesse mesmo um relógio, dava as horas para os porcos afinal.

Uma vez, com a caneta que a professora emprestou à turma para a aula de Arte, pintou um relógio no pulso e, na hora do banho, noites e noites, não o lavava bem, para não sair.

Finalmente o pai saiu da venda. Pedindo ajuda para o filho, quase se esquecera do presente devidamente embrulhado em papel de pão. Não lhe daria o presente mais não? Ora!…

Chegando à velha casa, pacote na mesa, o pai pediu, Toquito atendeu. Desembrulhava o presente com afoita avidez, como quem quer a fruta mais doce do galho mais alto e sadio.

Papel de pão já no chão, sem serventia, e, na caixa, o presente: um caderno com pauta, um lápis com ponta e a branca borracha. O pai pediu a ele que escrevesse o que pensou durante toda a tarde sobre o que seria o presente que vinha embrulhado num papel de pão, corriqueiro papel. Oh, escrevinhador!
 
Fontes:
O Autor
Imagem = www.maggnificas.com.br

Contos Populares Portugueses (O Ouriço-Caixeiro)

Era uma vez um rapaz que apanhou uma cobrazinha pequenina. Meteu-a dentro de um tanque e todos os dias lhe ia dar de comer. Assobiava à cobra e ela vinha.

A cobra foi crescendo e o rapaz todos os dias lhe ia sempre dando de comer, de modo que a cobra já estava muito acostumada com ele e não lhe fazia mal.

O rapaz foi crescendo, e veio para a cidade servir. Esteve muitos anos na cidade e um dia foi com uns amigos à terra dele. Quando iam a passar a cavalo por pé do tanque onde estava a cobra, quando ele era criança, disse para os amigos:

- Quando eu era pequeno, tinha aqui uma cobra a quem assobiava, e ela vinha para eu lhe dar de comer. Deixa-me ver se ainda me lembro do assobio e se ela ainda será viva.

E assobiou-lhe. Imediatamente lhe saltou uma cobra muito grande e muito grossa, enrolando-se-lhe à volta do pescoço para o matar.

O rapaz, aflito, queixou-se:

- É esta então a paga que tu me dás de eu te ter tratado tão bem quando era pequeno?

A cobra respondeu:

- Sim! Do bem fazer, mal haver. O rapaz disse-lhe:

- Espera aí! Não me mates sem eu encontrar três animais que digam «por bem fazer, mal haver».

A cobra:

- Pois sim!

Foram andando e daí a bocado encontraram um cavalo muito magro e coxo de uma perna, que mal se podia arrastar. O rapaz voltou-se para ele.

- Ó cavalo, de bem fazer, mal haver?

O cavalo respondeu:

- Sim! O meu amo, enquanto eu pude trabalhar, tratava-me bem. Hoje, que estou velho e aleijado e não posso trabalhar, manda-me para a esfola e já não quer saber de mim.

O rapaz, muito desconsolado, foi andando mais para diante e encontrou um cão encostado a uma parede, quase a morrer. Chegou-se ao pé dele e perguntou-lhe:

- Ó cão, por bem fazer, mal haver? O cão respondeu:

- Sim! O meu dono, enquanto eu ia à caça com ele, tratava-me bem, mesmo muito bem, e agora, que estou velho e já não posso caçar, deixa-me no meio da rua e não quer saber de mim. Morrerei à fome!

O rapaz estava cada vez mais triste porque a cobra já o queria matar, mas observou-lhe que ainda faltava um.

E foram andando mais para diante. Encontraram um ouriço-caixeiro. O rapaz chegou-se ao pé dele e perguntou-lhe:

- Ó ouriço, de bem fazer, mal haver? O ouriço não deu resposta.

O rapaz tornou outra vez: - Ó ouriço, de bem fazer, mal haver? O ouriço, nada, não lhe dava resposta nenhuma. Então o rapaz, zangado, exclamou:

- Ó ouriço, responde, senão esta cobra mata-me! E o ouriço:

- Qual é o tolo de um cavaleiro que espera a resposta do ouriço-caixeiro?

A cobra, assim que o ouviu dizer isto, desenrolou-se do pescoço do rapaz e saltou contra o ouriço. O rapaz, assim que se viu livre, meteu esporas ao cavalo e fugiu a galope.

O ouriço enrolou-se e a cobra matou-se nos espinhos.

Fonte: Viale Moutinho (org.) . Contos Populares Portugueses. 2.ed. Portugal: Publicações Europa-América.

Silvana da Rosa (A mulher escritora e personagem nos contos de fadas) Parte XIX

Nessas passagens há menções claras, embora parodiadas, da história original que está inserida na obra de Carter. No caso do hipertexto, em O quarto do Barba-Azul, a história original foi alterada, por mais que algumas ações sejam revividas, percebe-se que essas se apresentam com novas perspectivas. Sendo assim, o texto re-elaborado, re-escrito, torna-se um hipertexto, uma vez que a escritora buscou a narrativa primeira e a adaptou, segundo a ótica feminina.

É pertinente salientar que Carter, em O quarto do Barba-Azul, respeita o discurso de Perrault e de Beaumont, da forma como foi elaborado, porém a escritora apresenta um diferencial, ou seja, o discurso de Carter age dentro do discurso já constituído pelos escritores em questão.

O discurso de Carter, inserido em um contexto já existente, apresenta variações em relação ao estilo narrativo, além da abolição da frase inicial e tradicional em contos de fadas, ou seja, a escritora utiliza o narrador autodiegético, uma vez que, no conto O quarto do Barba-Azul, a personagem narradora é a própria protagonista da história e, sendo assim, direciona os rumos da narrativa de acordo com seus anseios.

Lembro que aquela noite eu estava deitada, acordada, no vagão-leito, imersa num suave e delicioso êxtase de excitação, com a face em brasa comprimida na impecável fronha do travesseiro e o bater do coração a imitar o bater dos grandes pistões que incessantemente impeliam o trem que me afastava de Paris, da mocidade, da quietude branca e fechada do apartamento de minha mãe, em direção ao país inimaginável do casamento [...] (CARTER, 1999, p. 3)                     
Quanto à organização do tempo e à manipulação de distância, percebe-se, no exemplo acima, que a narradora-personagem-protagonista vive no tempo presente, mas busca na memória fatos passados, apresentando dessa forma um hiato temporal, característica própria do narrador autodiegético.

Segundo Carlos Reis e Ana Cristina Lopes (1998), narrador autodiegético configura a expressão [...], introduzida nos estudos narratológicos por Genette [...], designa a entidade responsável por uma situação ou atitude narrativa específica: aquela em que o narrador da história relata as suas próprias experiências como personagem central dessa história. Essa atitude narrativa arrasta importantes conseqüências semânticas e pragmáticas, decorrentes do modo como o narrador autodiegético estrutura a perspectiva narrativa, organiza o tempo, manipula diversos tipos de distância, etc. (p.118, grifo dos autores)
                     
Além de os narradores diferirem em Carter, em relação a Perrault e a Beaumont, há também outro desvio no conto de Carter, acima citado, o eu que narra e o eu narrado. Já nos contos de Perrault, Barba-Azul, e de Beaumont, A Bela e a Fera, o papel de narrador não é exercido por nenhuma personagem, uma vez que o narrador relata a história de forma impessoal, alheio aos fatos. Consoante a isso, nos contos de Perrault e de Beaumont, percebe-se a presença do narrador heterodiegético, observado nos exemplos que seguem:
                                                                                  
Era uma vez um homem que possuía belas casas na cidade e no campo, baixelas de ouro e de prata, móveis de madeira lavrada e carruagens douradas. Mas, para sua infelicidade, esse homem tinha a barba azul, e isso o tornava tão feio e tão assustador que não havia nenhuma mulher e nenhuma moça que não fugisse da sua presença [...] (PERRAULT, 1999, p. 189).
Era uma vez um rico negociante que vivia com seus seis filhos, três rapazes e três moças. Sendo um homem inteligente, não poupou despesas na educação dos filhos, dando-lhes excelente instrução. Suas filhas eram muito bonitas, mas a caçula principalmente despertava grande admiração [...] (BEAUMONT apud TATAR, 2004, p. 66).                     
De acordo com Carlos Reis e Ana Cristina Lopes, narrador heterodiegético é a expressão [...], introduzida no domínio da narratologia por Genette [...], designa uma particular relação narrativa: aquela em que o narrador relata uma história à qual é estranho, uma vez que não integra nem integrou, como personagem, o universo diegético em questão [...] (1998, p. 121).
                     
Além de a obra de Carter apresentar diferenças estruturais em sua narrativa em relação às obras originais, percebe-se ainda que, através de sua obra, Carter procurou inserir uma nova mulher em seu contexto. A autora ainda contemplou o universo e os sentidos femininos, utilizando-se “fartamente” de descrições de cheiros, sensações, roupas, jóias, comidas, acompanhadas de metáforas, em O quarto do Barba-Azul.

Ao adequar a figura feminina ao seu real contexto, Carter, na verdade, mostrou a verdadeira face feminina, enquanto mulher, que há muito se escondia atrás de caricaturas rabiscadas por homens. Além disso, Carter descreveu a mulher exatamente como ela é, de cara limpa, ou seja, aquela que, apesar de estar mais independente, procura se encontrar, entender-se, imergindo frequentemente e tão ferozmente em seus conflitos interiores que se mostram impregnados de fragmentos de heranças passadas, como a insegurança, a falta de confiança em si mesma.

Três vezes casado no breve espaço da minha vida com três graças diferentes, convidava-me agora, como para demonstrar o ecletismo do seu gosto, a juntar-me a essa galeria de mulheres bonitas, eu, filha de pobre viúva, eu, de cabelos cor de rato que ainda tinham as marcas das tranças que deixara de usar tão pouco tempo antes, eu, de cadeiras ossudas e nervosos dedos de pianista. (CARTER, 1999, p. 9)                                                                                  
Observando-se o conto A Bela e a Fera (La Belle et la Bete, 1757) (*), de Jeanne-Marie Leprince de Beaumont, a personagem Fera, o noivo de Bela, causava repulsa, aversão à mesma. Já em A noiva do tigre, de Carter, o oposto aconteceu, uma vez que Bela sentiu desejo sexual pela Fera, ainda mais quando essa exalava seu cheiro natural de macho no cio.

Na verdade, na recomposição dos papéis femininos, Carter invadiu os espaços    pertencentes    aos    personagens    masculinos,    visto    que,    quando    a transformação contempla um dos gêneros, conseqüentemente todo o contexto sofre modificações. Com isso, torna-se perceptível que a mitificação do homem-príncipe e rei não tem mais valia numa relação em que a mulher entende o seu papel, o seu espaço, o seu valor, desvendando ou permitindo transparecer as imperfeições masculinas e o desejo destas:

Quando pensava que a partir de então iria compartilhar os lençóis com um homem cuja pele, como a dele ou a dos sapos, continha uma sugestão viscosa e úmida, sentia vaga desolação por haver despertado dentro de mim, agora, que já estava sarada a ferida de mulher, certo anseio repugnante por suas carícias, como o anseio de mulheres grávidas pelo gosto do carvão, da cal ou de comida estragada. (CARTER, 1999, p. 28)                     
A nova mulher (que na verdade não é tão recente assim, mas somente nestas últimas décadas ela pôde se mostrar em sua essência) vê o homem como um ser, dotado de muitas imperfeições, tanto que ela é sutil o bastante para discernir os verdadeiros discursos, não admitindo as falsas promessas masculinas.

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(*) Coincidentemente ou não, Clarice Lispector também re-escreve esse mesmo conto de fadas, denominado A Bela e a Fera ou a Ferida Grande Demais, direcionando a temática para as diferenças sociais e humanas entre as pessoas. A Fera, de Lispector, é um mendigo desdentado que possui uma chaga sangrando em sua perna. Por sua vez, a Bela é uma senhora da alta sociedade que possuía uma vida alienada. Ela, na verdade é uma fera letrada, porém fútil, prostrada em valores consumistas. Para Bela, o ser ainda era um processo latente, algo obscuro para sua compreensão.
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continua...
 
Fonte:
Silvana da Rosa. Do tempo medieval ao contemporâneo: o caminho percorrido pela figura feminina, enquanto escritora e personagem, nos contos de fadas. Dissertação de Mestrado em Letras. Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC), 2009