sexta-feira, 6 de outubro de 2023

Adega de Versos 113: Francisco Neves de Macedo

 

Mensagem na Garrafa – 4 –


José Feldman

(Maringá/PR)

MEU ADEUS


Quando minha vida extinguir,
não importa como morri,
pois se alguém te inquirir,
conte apenas como eu vivi.

Conte dos amores que tive,
dos amigos que deixei,
do pranto que não contive
e do tanto quanto penei.

Conte o abraço incontido,
da felicidade em viver,
de meu mundo colorido
e do meu reerguer.

Conte os sonhos que eu sonhava
e o tanto que por eles batalhei,
do desânimo que me derrubava
e como dele me levantei.

Conte sobre nossos momentos juntos,
e o tanto de filmes que assistimos,
da enorme quantidade de assuntos
que nunca nós reprimimos.

Conte sobre minhas palhaçadas
e o quanto que nós gargalhamos,
tornando nossas vidas animadas,
e o quanto nos deleitamos.

Conte sobre os gatos que amava,
cuja saudade nunca extinguiu,
do tanto que eu os idolatrava
e do carinho que por eles persistiu.

Conte como eu os tratava,
como minha vida por eles dediquei,
cada um que eu abraçava,
cada um que eu amei.

Conte sobre as cadelas de minha vida,
e o tanto de amor que sempre lhes ofereci,
de como minha alma lhes era agradecida
e quando de suas partidas, o quanto morri.

Mas acima de tudo…

Conte que eu era meio tosco,
mas que tinha um grande amor
por todos que viveram conosco
e todos que vivi cada momento de dor.

Conte que eu não era perfeito,
nem rico nem doutor.
Conte que apesar de todo defeito
eu sempre acreditei no amor.

Humberto de Campos (O tropeiro)

O casamento do Sr. Antônio Moreira, comerciante e fazendeiro em S. Bernardo das Russas, cidade cearense a duzentos e quarenta quilômetros de Fortaleza, estava anunciado para a véspera de Natal, que distava apenas oito dias. Há um mês, quase, não se falava em outra coisa. A festa devia ser estrondosa, com banda de música e danças por uma semana, e o que era mais, com uma abundância de comidas e bebidas como não havia notícia de outra na redondeza. Antegozando o sucesso daquele acontecimento, o Sr. Antônio chamou, uma tarde, um antigo tropeiro, e ordenou:

- João, você vai amanhã à capital. Daqui lá são quarenta léguas das grandes. Você ponha a cangalha na burra preta; escanche em cima o jogo de malas e, chegando à cidade, receba na casa da modista para quem vai esta carta o vestido da noiva.

E olhando o tropeiro, significativamente: – Mas, olhe: você deve estar aqui no sábado, à tarde. Se não, já sabe!

O caboclo correu ao cercado, pôs a cangalha na burra, atirou-lhe por cima o jogo das malas de couro e partiu. Chegando em Fortaleza, recebeu a encomenda, e para estar em S. Bernardo no dia determinado, retrocedeu na mesma hora.

O prazo que o Sr. Moreira lhe havia dado para a viagem era francamente curto. O caminho não era bom, a burra era velha, e sexta-feira, à tardinha, faltando ainda dezoito léguas, estava completamente estropiada. Debalde o caboclo, sacudindo o cabresto, lhe metia o relho, rogando-lhe pragas: a alimária reunia as forças, tentava um choro manhoso, e voltava ao mesmo passo triste, lento, fatigado.

De repente, surgiu na margem da estrada uma palhoça de lavrador. João bateu:

- Ôi, de casa!

- Ôi, de fora!

E apareceu na porta de esteira um sertanejo cobreado, dando as "boas-tardes".

O tropeiro, que era mais ou menos conhecido por ali, perguntou interessado, se não havia um cavalo, um burro, um jumento, que lhe pudessem alugar. O dono da casa foi franco: animais, não tinha; informado, porém, do compromisso do viajante, lembrou-lhe experiente um remédio:

- Homem, você quer um conselho?

E ensinou:

- Olhe, ali atrás da casa tem uma pimenteira. Está encarnada de pimenta. Você apanha uma porção delas, machuca num caco, faz uma bolota de pano, e... e... passa!

O João aceitou a receita: machucou as pimentas, enrolou alguns molambos à ponta de um pau, ensopou-os no molho, e passou.

Passou e despediu-se.

Daí a pouco, a burra começou a aumentar a marcha. Momentos depois, principiou a trotar; e, finalmente, largou de malas às costas numa carreira brutal, furiosa, desabalada, caminho a fora.

Seguro na ponta do cabresto, o caboclo, a principio, acompanhou o quadrúpede. Quando, porém, este abalou na correria desbragada pela estrada silenciosa, não houve mais recurso: estava, ele também, cansado, fatigado, estropiado. Mas, recordando-se que tinha prometido estar com o animal em São Bernardo das Russas, e este se podia transviar com a roupa da noiva, reuniu num supremo esforço todas as suas energias de inteligência e de músculos, arrancou num movimento rápido o cinturão de couro, e fazendo em si mesmo o que havia feito com a burra, largou-se também pelo caminho soturno, numa carreira desenfreada!

No dia seguinte, pela manhã, oito horas antes da que lhe fora marcada, atravessavam os dois, o tropeiro e a burra em disparada as últimas ruas de São Bernardo das Russas.

Fonte: Humberto de Campos. A Serpente de Bronze. Publicado originalmente em 1925. 
Disponível em Domínio Público.

Baú de Trovas LXIX


Eu tenho fé nas pessoas,
em todas, sem exceção,
que todas elas são boas,
quando lhes damos a mão.
A. A. de Assis
Maringá/PR
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Sempre que a felicidade
passa no meu coração,
é como sobre um presidio
a sombra de um avião!
Adelmar Tavares +
Recife/PE, 1888 – 1963, Rio de Janeiro/RJ
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Encerra muitos encantos
um conceito de verdade;
uns morrem livres e quantos
morrem pela liberdade.
Alcides Vasques +
Pindamonhangaba/SP
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Cultivar ressentimentos!
Atividade infeliz!
É querer que o ferimento
dure mais que a cicatriz!
Altair F.de Carvalho
Pindamonhangaba/SP
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Conheço alguns imbecis,
todos cheios de "Excelência",
que devíamos saudar:
— Como está Vossa Jumência?
Amândio Naia
Lisboa/Portugal
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Todos corações no mundo
na solidão e nos medos,
perdidos, levam, no fundo,
guardados, os seus segredos...
Ana Maria Jório Marcondes
Pindamonhangaba/SP
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Fora meu anjo da guarda,
pois cada um tem o seu,
- dona do meu coração:
é mais um que Deus me deu!
Antonio Spanemberg
Cruz Alta/RS
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Na saleta bem escura
trata-se o pobre noivado.
— Fundo respeito à feiúra
da noiva e do namorado.
Arlindo Barbosa
Matias Barbosa/MG
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Em política, de ordinário,
sem encontrar outro leito,
fica o sujeito sujeito
a muito tipo precário...
Augusto Linhares +
Rio de Janeiro/RJ
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Todos os sonhos quebrados
no seu passado carente
poderão ser completados
nas ações do seu presente.
Aurora Mendes +
Pindamonhangaba/SP
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Eu vi minha mãe rezando
Aos pés da Virgem Maria,
Era uma Santa escutando
O que a outra Santa dizia...
Barreto Coutinho +
Limoeiro/PE, 1893 – 1975, Curitiba/PR
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Fui moço, cheio de viço,
amei, ri, pintei o sete!
Hoje estou mais fora disso
do que umbigo de vedete...
Calixto de Magalhães +
Barra do Piraí/RJ
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De despedidas, apenas,
compõe-se, afinal, a vida:
— mil despedidas pequenas
e uma Grande Despedida!
Carlos Guimarães +
Rio de Janeiro/RJ, 1915 – 1997
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Mulher, ser deusa ou megera,
só um ponto de vista;
alguém ama, alguém tolera,
mas, não há quem lhe resista...
Carmen S. M. Galvão +
Pindamonhangaba/SP
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Quantas vezes, sem maldade,
dizemos que estamos sós...
E é quando Deus, na verdade,
está mais perto de nós!
Carolina Azevedo de Castro +
Recife/PE, 1909 - ????, Curitiba/PR
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Eu sentado na beirada,
ela junto da janela.
— Graças às curvas da estrada,
vou sentindo as curvas dela...
Colbert Rangel Coelho +
Pitangui/MG, 1925 - 1975, Rio de Janeiro/RJ
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Eu saúdo a natureza,
eu saúdo o novo dia.
Nunca vi tanta beleza
quando o dia principia!
Dalvina Fagundes Ebling +
Cruz Alta/RS
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Janela, a bem da verdade,
teu ranger, este chiado.
são gemidos da saudade
na voz rouca do passado,
Ernesto Tavares de Souza +
Pindamonhangaba/SP
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A Bondade é tão formosa
que, para dar-lhe um brasão,
eu pintaria uma rosa
pousada num coração.
Fernando Burlamaqui +
Recife/PE, 1898 – ????
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Natureza! Amanhecer!
Não há cenário mais lindo!
Eu me sinto renascer,
nessa luz que vem surgindo!
Gislaine Canales +
Herval/RS, 1938 – 2018, Porto Alegre/RS
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No tribunal da consciência
quando o debate seduz
as trevas pedem clemência
ante a vitória da luz.
Gonçalo Toledo +
Pindamonhangaba/SP
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No fim da vida a esperança
é uma rua tão comprida,
mas tão comprida que alcança
o lado oposto da vida!
Hegel Pontes +
Juiz de Fora/MG, 1932 – 2012
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Todos os anjos que cantam
da natureza, a beleza,
são trovadores que plantam
sementes de realeza!
Ivan Soares Schettert
Cruz Alta/RS
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João de Barro, o construtor
usa a terra com nobreza;
o que faz, faz por amor,
não agride a natureza.
José Guarany Rodrigues
Pindamonhangaba/SP
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Se o altar cruza, displicente,
sem a mínima atenção,
caso não seja um descrente,
é, por certo, o sacristão.
José Augusto Rittes +
São Vicente/SP
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Quando vejo uma criança
brincando ao léu, algo faz
que um sorriso de esperança
me mostre a face da paz.
José Morgado +
Pindamonhangaba/SP
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Duas culpas, um pecado
e um remorso a nos doer:
você - que escolheu errado
eu - que não pude escolher!
José Ouverney
Pindamonhangaba/SP
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Devido à minha fraqueza
vi meu sonho se esfumar
na espuma da correnteza
que eu não pude represar.
José Raul Vinci +
Pindamonhangaba/SP
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Partiu, deixando seu traço
no meu caminho dos sós...
- A saudade é esse espaço
que sempre existe entre nós...
José Valdez de Castro Moura
Pindamonhangaba/SP
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Desde o Amazonas ao Prata
- num pensamento, a certeza:
Defender a nossa mata
e salvar a natureza!
José Westphalen Corrêa
Cruz Alta/RS
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Por mais pobre e pequenina,
toda casa é nobre e rica,
sempre que o amor a ilumina
e a virtude a santifica.
Lilinha Fernandes +
Rio de Janeiro/RJ, 1891 – 1981
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Não faça mal a ninguém,
mesmo sendo seu rival.
Está na força do bem
toda fraqueza do mal.
Luiz Carlos C. Júnior
Pindamonhangaba/SP
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A discórdia é dor que afeta
sem dó e sem compaixão;
é veneno de uma seta
que atravessa o coração.
Maria Aparecida S. Vasques  +
Pindamonhangaba/SP
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Se não existisse a treva
eu jamais perceberia
a beleza que me enleva
ao nascer de um novo dia!
Maria de Lourdes Ouverney
Pindamonhangaba/SP
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Quem sabe, neste natal,
os homens possam sentir
aquele amor fraternal
que não sabem dividir!
Maria Norma Marcondes +
Pindamonhangaba/SP
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Vi sorriso na vitória,
vi nas lágrimas a dor,
vi lembranças na memória
e vi nos pais muito amor!
Maria Theresa Soares Schettert
Cruz Alta/RS
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Sigo em frente, enfrento as dores
que me afrontam costumeiras...
Só quem vence os dissabores
é capaz de abrir fronteiras!
Maurício Cavalheiro
Pindamonhangaba/SP
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Toda lembrança que eu trago
da distante mocidade
é, para mim, como afago
que o tempo faz na saudade
Nélio Bessant
Pindamonhangaba/SP
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A tranquila natureza
sussurrante nesta mata
entrega toda a beleza
para aquele que desmata.
Olga Corssetti
Cruz Alta/RS
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É marido de talento,
que conhece o seu mister,
quem se faz de ciumento
para enganar a mulher...
Orlando Brito +
Niterói/RJ, 1927 – 2010, São Luís/MA
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Há mulheres que dão tudo
e, entretanto, nada pedem.
Mas só Deus sabe, contudo,
quanto custa o que concedem...
Othon Costa +
Rio de Janeiro/RJ
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Se Deus ao rogo profundo
atendesse toda asneira,
não havia neste mundo
nenhuma mulher solteira.
Paluma Filho +
São Gonçalo/RJ
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Serras... Torres de granito
rompendo o celeste véu...
-São escadas do infinito,
degraus da porta do Céu!
Paulo Tarcísio da S. Marcondes
Pindamonhangaba/SP
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"Meu bem, se foste enganado,
que Deus me cegue sem dó.
— E ele, agora, está casado
com mulher de um olho só!
P. de Petrus +
São Paulo/SP, 1920-1999
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Visitas, meu camarada,
sempre dão prazer à vida:
não sendo quando à chegada,
será, por certo, à saída..,
Pedro Uzzo +
Santos/SP
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A ventura é uma quimera
que estranhos caprichos tem,
pois vem quando não se espera,
quando se espera não vem...
Petrarca Maranhão
Manaus/AM, 1913 – 1985, Petrópolis/RJ
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Curso da reserva armada
terminou o rapagão.
— Já tenho visto às de espada,
mas burro de espada, não!
Pylades Gama +
Rio de Janeiro/RJ
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Se a água tivesse vida,
imagine a minha mágoa!
Você, no banho, despida,
entregue ao sabor da água!...
Renato Caldas +
Assú/RN
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Parece tanto comigo
aquele ser inocente,
que, por Deus, eu não consigo
olhar a mãe frente a frente...
Renato Goulart da Silveira +
Magé/RJ
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Depois da festa acabada,
um consolo ainda nos resta
é a esperança de que nada
nos fará. dar outra festa...
Roberto Damasceno +
Rio de Janeiro/RJ
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Disse-lhe, em tom amorável,
ardendo como um vulcão:
— Se tu fores razoável,
eu vou perder a razão!
Roberto Francisco
Petrópolis/RJ
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Natureza! Verde puro,
tantas árvores frondosas!
Cuidemos com mais apuro
dessas dádivas preciosas!
Sophia Irene Canalles +
Cruz Alta/RS
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Um sorriso de criança
mostra um momento profundo,
onde vigora a esperança
de ressurgir novo mundo!
Taciana Canales da Trindade
Cruz Alta/RS
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Num velório prolongado,
houve grande confusão,
quando o defunto, chateado,
levantou-se do caixão!
Walderedo Pereira de Oliveira
São Paulo/SP
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Dizes ter cravo em teu rosto,
mas que mentira maldosa;
onde se viu cravo exposto
sobre a face de uma rosa?
Walter Leme
Pindamonhangaba/SP
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Os netos são esperança,
são momentos de alegria,
lembrando sempre a criança
que já fomos algum dia!
Zuleika T. Ribeiro Edler
Cruz Alta/RS

A. A. de Assis (Artes de meninos)

Todos fazem suas artes, eu também já fiz as minhas. Porém primeiro preciso falar do Seu Lino, o olhador, vigiador, cuidador dos meninos arteiros de São Fidélis lá pelos anos 1940. Para começar, ele só aparecia em público vestido de terno e gravata, em respeito ao cargo que exercia. “Nobless oblige” (a nobreza da função exige indumentária adequada), ele explicava, enfatizando a lição que lhe ensinara o professor Expedito.

Um homem doce de coração, contudo rigoroso no cumprimento das suas responsabilidades. Recebia um salário para tomar conta da meninada durante oito horas por dia, mas quem disse que ele olhava para o relógio? Lá estava cedinho na porta das escolas. Lá estava de noite na porta do cinema ou do circo. Onde pudesse haver crianças, lá estava Seu Lino de terno e gravata, zelosamente cuidante para que não cometessem nenhuma travessura grave.

Vai daí que numa certa manhã um passarinho dedo-duro lhe indicou a direção da beira-rio. Lá foi ele. Atrás do Grupo Escolar havia um arvoredo, atrás do qual o rio formava uma enseada. Seu Lino caminhou passo a passo no meio das árvores, chegou bem pertinho e deu a ordem: “Fiquem todos onde estão”.

Estávamos nadando, meia dúzia de garotos, na maior farra, eu no meio deles. E o mais dramático: pelados, nuzinhos-nuzinhos. Tínhamos gazeado as aulas para curtir o banho de rio. Seu Lino, provavelmente rindo por dentro, catou nossos uniformes escolares deixados na grama e levou ao gabinete da diretora do Grupo.

Ela de imediato mandou chamar os pais. Só nos devolveria a roupa depois de passar um bom sermão na presença dos responsáveis. E a gente lá dentro d’água, sem poder sair devido à peladez.  

Por sorte meu pai não estava em casa na hora, então meu irmão Gomes, dez anos mais velho que eu, foi encarregado de ir me buscar e garantir que eu receberia uma reprimenda à altura e não voltaria a praticar traquinagens de tal monta.

No caminho meu irmão foi me passando uma lição de moral, alertando para a necessidade de criar juízo e coisa e tal. Em casa contou a história pra mãe, porém combinaram de não comentar nada com o pai, receando que ele pudesse exagerar no castigo. A mãe, após o discurso de praxe, proferiu a sentença, aliás bem maneira, considerando a importância da arte: uma semana sem ler gibi e sem jogar futebol de botão.

Aceitei a pena com humildade, todavia quis saber por que estavam levando tão a sério o fato de alguns meninos estarem tomando banho de rio pelados.

“E quem foi que falou de banho pelado?” – disse a mãe, concluindo: “Claro que isso também não é um bom costume, e você já tem idade suficiente para entender que as pessoas não podem ficar por aí exibindo suas intimidades. Mas no caso em foco o pecado não está na nudez; está no ato de matar aulas, ainda mais em vésperas de provas. Entendeu, Pafúncio?

(Crônica publicada em 28 de setembro de 2023, no Jornal do Povo)

quinta-feira, 5 de outubro de 2023

Tertúlia da Saudade 12: Apollo Taborda França

 

Mensagem na Garrafa - 3 -


 
Elisabete Aguiar
(Mangualde/ Portugal)

SABES?

Se estás perdido na bruma,
em nevoeiro e solidão,
sabe que tudo é espuma,
nada passa de ilusão.

Se te afundas na agonia
de uma sombria ansiedade,
sabe que a luz, mesmo esguia,
vem derramar claridade.

Se vacilas no torpor
da dúvida e da incerteza,
sabe que os braços do Amor
te guiam para a Beleza.

Se entontecido mergulhas
em ruidosa e louca orgia,
sabe que rudes agulhas
dilaceram a Alegria.

Se vais ao sabor do vento,
nas velas de uma miragem,
sabe que em cada momento
se recomeça a Viagem.

Se te revoltas na dor
e te alegras no prazer,
sabe que por teu labor
conquistas seu renascer.

Se nas trevas da amargura
anseias por todo o Bem,
sabe que em tua doçura
Ele já morada tem.

Se em teu medonho caminho,
por espinhos encrespado,
sofres na alma em desalinho
e segues dilacerado…

Se essa saudade magoada,
do sonho que mal sonhaste,
estimula a Caminhada
que ainda agora começaste…

Sabe que há sempre uma luz
a estrelar a noite escura,
e o pensamento traduz
para a manhã a brancura.

A Esperança é passaporte
para o reino do amanhã;
sabe que serás mais forte!
Sabe que Ela é tua irmã!

Fonte: enviado pela autora.

Contos do Paraná ("O amor na Fazenda Fortaleza", de Ivo Nalce)


No começo do século passado, José Felix da Silva instala a Fazenda Fortaleza, nos Campos Gerais, perto de onde hoje é Tibagi, então um povoado parado. A região era habitada pelos índios Coroados que atacavam os brancos. José Felix transforma sua fazenda numa verdadeira fortaleza, com muralhas e alguns homens passam a atacar    os índios,  massacrando-os e trazendo os sobreviventes para trabalhar como escravos na fazenda. O governo dá-lhe a patente de coronel e, além dos índios, passa a atacar os garimpeiros clandestinos que faiscavam no Rio Tibagi. As lutas contra os índios prosseguem, mas a segurança da Fazenda Fortaleza atrai agricultores que se instalam na região.

José Felix tinha fama de ser dos homens mais ricos da Província de São Paulo, a que o Paraná pertencia. E também de ser avarento e muito cruel. Quando o sábio francês Auguste de Saint-Hilaire passa pela Fazenda Fortaleza, em 1820, conta que as provisões eram fechadas a sete chaves e, por ser José Felix odiado por seus escravos, somente seu neto de oito anos era que o barbeava. Não tinha confiança de entregar a navalha na mão de ninguém mais.

José Felix se casa com uma moça muito pobre e, dizem muito bela e aí começa um dos casos de amor mais loucos que o Paraná já conheceu. Mulher jovem e bela com marido velho, avarento e ruim não pode dar boa coisa. A mulher contrata dois homens para matarem o marido, Na emboscada, José Felix fica gravemente ferido, mas consegue liquidar com os dois bandidos.

Como todo mundo sabia que fora a mulher quem mandara matar José Felix, ela foi presa na cadeia em Castro, cidade que, segundo Saint-Hilaire, era então habitada por três ou quatro comerciantes, prostitutas e alguns artesãos. Com seu dinheiro, ou poder, José Felix consegue liberar a mulher, o que ela aceita. Traz ela de volta para a Fazenda Fortaleza e tranca-a no quarto do casal, para isso manda gradear as janelas e a única porta. Os escravos passam a comida através das grades. Ninguém entrava na cela.

Ninguém? Todas as noites, José Felix tirava a chave que trazia amarrada no pescoço, abria a cela e ia dormir com ela no seu leito nupcial para cumprir as obrigações matrimoniais de praxe. Como eram as noites de amor do casal, só Deus sabe. Ou, então, Nelson Rodrigues, que também sabe de alguma coisinha da vida como ele é.

Talvez, como as personagens de Nelson Rodrigues, a mulher gostasse de apanhar. Mas de todo jeito parece que não muito, porque um belo dia, ou uma bela noite, consegue despejar goela abaixo de José Felix, um delicioso copo de vinho francês temperado com esses venenos que só os índios da região sabiam preparar. Mas enfim, apesar de morrer com a dose, José Felix, mesmo desconfiado como era, devia estar acostumado e gostar de receber das mãos da mulher um copinho de vinho francês antes de deitarem no leito nupcial para mais uma noite de amor, ou talvez de ódio. Isso, só mesmo o bom Deus sabe.

Fonte: 300 Histórias do Paraná: coletânea. Curitiba: Artes e Textos, 2004.

Professor Garcia (Reflexões em Trovas) LX


A espuma, artesã do mar,
à noite, chega e semeia
versos, à luz do luar,
nas vestes brancas da areia!
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Ao ver que o teu pranto existe
e, o teu consolo é chorar,
meu canto ficou mais triste
que o pranto do teu olhar!
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Ao ver teu rosto uma vez,
vi, pelo olhar indeciso...
Que com tanta timidez,
tu tens um lindo sorriso!
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As filhas são meus tesouros,
meus netinhos são meus guias,
Tornando mais duradouros
os feitiços dos meus dias!
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As mariposas pousando,
nas flores das violetas,
parecem anjos rezando
com asas de borboletas!
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Às vezes, sinto os teus passos,
mesmo em momentos dispersos,
compondo bem, os espaços
que há, nos passos dos meus versos!
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A vida com seus enganos
e os homens com seus engodos,
vão pondo mais desenganos
no mundo de quase todos!
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Em dolentes badaladas,
notas curtas, versos longos,
o sino, em notas cifradas
decifra velhos ditongos!
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Eu trago do meu Nordeste,
nos dedos de cada mão...
As marcas do solo agreste
dos pés secos do sertão!
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Mesmo que o amor se desfaça,
entre alguns desajustados...
Que nunca se acabe a graça
do dia dos namorados!
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Meus olhos te dizem tanto,
que ao vê-los, nos olhos teus...
Se cai gota do teu pranto
cai pranto dos olhos meus!
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Meus versinhos são retalhos
de antigas luzes pagãs,
presas aos versos grisalhos
dos sóis de minhas manhãs!
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Meu verso é fogo sagrado
com chamas de amor e paz!...
Mesmo depois de apagado,
sopra a cinza e se refaz!
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Morre uma estrela tão bela,
da noite, um lindo troféu;
no espaço, essa ausência dela,
vira um fantasma no céu!
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No meu ranchinho de palha,
nada me assusta, meu Deus!...
Nele, é que o amor se agasalha
nas conchas dos braços teus!
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Num pico, sobre as colinas,
há um velho mosteiro, ao longe,
onde as canções mais divinas,
são preces de um velho monge!
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O orgulhoso, é na verdade,
um cego sem ter visão,
que não percebe a humildade
da luz do sol pelo chão!
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O tempo com seus enganos,
cego em silêncio e sem voz,
de repente, muda os planos
dos planos de todos nós!
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Por mais, que se tente a fuga,
ninguém foge do desgosto
de ver que, o tempo sem ruga,
nos deixa rugas no rosto!
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Quando a musa nos alcança,
a infância, não tem fronteira;
o poeta, nasce criança
e é criança a vida inteira!
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Quando o teu olhar me enlaça,
mesmo se amargo, ele fosse,
minha alma, rindo me abraça
e, a vida fica mais doce!...
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Saudade é um trem carregado,
de mágoa, de pranto e dor,
que às vezes, traz do passado
velhas lembranças de amor!...
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Toda vez que uma esperança,
diz adeus e, não se explica,
nunca apaga da lembrança
a dor que na mente fica!
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Tuas mãos, ah... tuas mãos,
que ofertam lírios e cravos,
perfumam meus sonhos vãos
e as mãos dos sonhos escravos!
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Um canto que ainda persiste
na memória de nós dois...
Vem da voz do canto triste
de um velho carro de bois!

Fonte: Professor Garcia. Versos para refletir. Natal/RN: Trairy, 2021.  Enviado pelo trovador.

Aparecido Raimundo de Souza (E o amor se fez saboroso, como pizza de muçarela*, com coca cola)

BASTOU OLHAR para a jovem que parou ao seu lado e João Ninguém se encantou dela. Não só dela, igualmente do seu sorriso, da sua voz macia, da pele cheirando a alfazema. No conjunto da obra, também do rosto, do charme, da simplicidade, da sua altivez. A figura possuía um semblante diferente. Ele jamais havia visto um igual. O sorriso, então, o deixou, de pronto, em estado de êxtase total.  Se tivesse aquela fofura em seus braços... se tivesse aquela deusa ao alcance dos seus carinhos e afagos, certamente seria o homem mais feliz na face da terra. João Ninguém se imaginou, por breves momentos, de braços dados com ela, trocando carícias e afagos. Sonhou acordado, estar andando pelas ruas, indo à missa na igrejinha local, passeando na praça, de mãos dadas, ou ao cinema, para assistir a um filme romântico.

Seus amigos ficariam com uma pontinha de inveja. Uma pontinha, não. A galera entraria em colapso. Todos se veriam à volta num deslumbramento difícil de ser descrito. Talvez até impossível de resumir em palavras. A beldade, do nada, simplesmente parou e sorriu. Se abriu num gracejo destilado de insinuações abertas a fazer com que, de pronto, seu coração conjecturasse devaneios construídos pelo calor de uma emoção que transbordava rebuliços inquietos e "zaragatados". Ele, ao vê-la assim, ao vivo e a cores, saiu do sério. Em contrapartida, ela não deixou margens a dúvidas. Seguiu se centuplicando ainda mais faceira, num inteiro amplificado que subia dos pés à raiz dos cabelos. Tudo assim, num relance inexplicável se recrudesceu exacerbado e envolto numa festa multicolorida de provocações pecaminosas.

João Ninguém, nesse momento, se viu arrancado do chão, como se flutuasse nas nuvens num infinito imarcescível. Se flagrou livre, leve e solto, colhendo estrelas em pleno sol à pino. Como um tresloucado transgressor, bebeu um gole de esperança num cálice imaginário. Um trago apenas bastou para salvar a imensidão da sua euforia adormecida. O bastante, contudo, para se embriagar dos encantos indescritíveis que fluíam como água de nascente de dentro dela, tipo um rio de leito bonançoso, inundando seus sonhos mais eloquentes. Ele, obviamente, não queria apressar seu coração. Não dessa vez. Em face de amores antigos vividos à trancos e barrancos, atrelados a paixões que não vingaram. Ele, num ímpeto forçado, tentou se abster de se enveredar por mais uma aventura.

Apesar dos casos “outrorais” que por uma série de jetaturas (azares) não deram em coisa alguma, o Cupido, a contrário senso, mais uma vez, lhe flechara. E os dardos acertavam seu âmago a ponto de, no minuto seguinte acabar novamente corroído por uma solidão sem fim. Uma solidão dorida, furiosa, sequiosa para maltratar seus pontos mais fracos e, logicamente, no mesmo rol, perturbar de modo assustador, a sua paz interior. João Ninguém tinha a impressão que os batimentos vindos de dentro de seu peito, saiam atropelando o relógio e os ponteiros de sua biografia. Nesse esmagar de emoções borbulhantes, e, em adequação aos encantos daquela deusa, algo inexplicável correu a bel prazer de um deslumbramento completamente fora de controle. Ele, bem sabia, não tinha autoridade diante de seus comandos.

Por assim, num instante inexplicável e indescritível, vinculado a um esgar nervoso e de sensações jamais experimentadas, se perdeu nos próprios passos. Bateu de frente tropeçando com um desconhecido até então nunca aquilatado, ou melhor, saboreado. O amor. O amor, de novo, se via ressurgindo de um simples olhar, de uma simples espiadela. Desse trocar de gestos suaves, desse fitar contemplativo, seu universo se fez mais exuberante e ele sorriu. Se insuflou doidamente como um menino bobo diante de uma coisa que ele não sabia o que era. Apesar de não saber do que se tratava, tinha escondido, dentro de si uma bússola que o norteava a dar de frente com uma convicção perene. Uma certeza robusta e perdurável. Uma estabilidade que faria a sua alma, assim do nada, de repente, não mais que num estalo impulsivo deixasse claro e consequentemente mostrasse às suas dubiedades e descrenças; seus almejos e ansiedades sem manchas.

Finalmente, algo lhe segredava. Encontrara o rosto, o semblante do seu meado faltoso. O núcleo paralelo e irreprimível, que o faria ser o cidadão mais feliz no fértil da terra e de um mundo que ele, até então, desconhecia completamente. Deixando o medo de lado, as dúvidas, retribuiu o alvissareiro do sorriso recebido. A moça batizada Ana Claudia, não esperou segunda ordem. Como se movida por uma força estonteante, se achegou e sem mais delongas se enleou num abraço. Foi um amplexo infantil, mas demorado, acalorado, inesperado. João Ninguém, a envolveu carinhosamente. Ternamente. Daí em diante, o milagre se fez sempiterno. Jubiloso, João Ninguém se abriu aos resplendores do amor. Se fez, exuberante e florescente. Convidou a moça para morar com ele. Assim, numa boa. Do nada. No atropelo. Ana Claudia, de pronto, aceitou. Deu certo. Vingou. Ano seguinte, uma filha engalanou a união de ambos. Por derradeiro, nascia e se perpetuava, por inteiro e sem resquícios, um novo JOÃO. Desta feita, um senhor JOÃO ALGUÉM.
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*Nota de rodapé do autor
A forma “mussarela”, sem dúvida, é a mais usada e já aparece registrada em alguns dicionários, contudo, contraria o nosso sistema ortográfico vigente e não está registrada no “Vocabulário Ortográfico da ABL.”  Assim sendo, oficialmente, devemos grifar a palavra dessa  forma:  MUÇARELA. Lado idêntico, nas palavras estrangeiras (muçarela tem origem italiana, e vem oriunda de mozzarella) que sofreu processo de aportuguesamento. O mesmo se aplica à açaí, paçoca, açúcar e praça.


Fonte:
Texto e nota enviados pelo autor

Jaqueline Machado (Isadora de Pampa e Bahia) – Capitulo 16: Isadora e Madame?

 Mesmo presa a uma situação indesejável, Isadora, sentia-se livre, enamorada. Sua alma, sua mente e seu coração tinham a máxima certeza de que a previsão da Vó Gorda sobre o amor que estava chegando em sua vida, estava certa. Queria dizer isso à querida benzedeira e comemorar a felicidade que estava a sentir junto da amiga. Estava a pé e apressou o passo rumo a Boitatá.

Enila estava a colher jasmins no jardim, para enfeitar a sala, enquanto Vó Gorda apanhava temperos em sua horta para o jantar de logo mais. As duas estavam a metros de distância, mas simultaneamente viram Isadora chegar sorridente e de braços abertos. Primeiro abraçou a amiga, e logo foi ao encontro da cozinheira.

- Vó...

- Não precisa dizer nada em palavras. Seus olhos me contam tudo. O amor aconteceu...

- Sim. A senhora estava certa. Por um lado estou muito feliz, por outro, não sei o que fazer. Estou noiva de um homem estranho ao meu modo de ver e sentir o mundo. Quando o vejo, sinto vontade de fugir para algum lugar qualquer, desde que bem distante daqui. Se meu destino está preso a esta pessoa, por que conheci Genuíno?

- Ah, guria, não pode entender tudo de uma vez só.

- Mas preciso entender. Caso contrário, como poderei encontrar a porta de saída desse inferno?

- “Fia”, queria te entregar essa chave em mãos, mas a missão de encontrar a chave e a porta de saída é tua. Se eu fizer isso por ti, o rumo da tua vida pode seguir por caminhos diferentes. Confia na vida. tenha fé. Agora a “véia” vai pra cozinha lavar esses temperos, preparar um prato bem gostoso. Se quiser, fica pra comer com a gente. Enila vai gostar.  

- O que estão cochichando? Não confia mais teus segredos a mim? – perguntou Enila em tom de brincadeira.

- Não se trata de segredos, quer dizer, sim, mas vocês podem saber.

Na sala, Enila ajeita as flores no vaso da mesa de centro e com atenção, ouve as confidências da amiga. Depois da explanação detalhada sobre a aventura amorosa, Isadora recordou algo sobre um tal livro, cujo conteúdo indecente levou o autor a prestar contas com a justiça francesa.

- É um livro que minha mãe e minha tia leram escondidas na biblioteca dos meus avós. Trata-se da história de uma mulher chamada Emma que traía o marido. Algo considerado imperdoável, indecente. Estou noiva e, em vez de beijar o noivo, beijei outro homem. Se o povo descobrir, por certo serei apedrejada, como deve ter sido a personagem.

- Querida, tu não és uma mulher casada. E esquece o que pode ter nesse livro e o que houve com o autor. Não fica impressionada. Agiste pelo impulso do amor. Foste corajosa, não indecente.

- Também penso assim, mas as consequências desse amor são imprevisíveis. Como será depois que eu estiver casada com o Fábio?

- Saberás o que fazer. E, independente da decisão que tomares, eu estarei ao teu lado. No que depender de mim, nunca estarás sozinha.

Entre sorrisos e lágrimas, Isadora e Enila trocaram um longo e apertado abraço.

- A amizade é uma flor divina que nasce dentro de quem tem o coração puro. Desabrocha por meio de sorrisos e alegra, perfuma a vida de quem tem a lealdade como primeira regra da vida – disse baixinho Vó Gorda ao entrar na sala segurando uma bandeja com chás, cafés, bolos, docinhos e biscoitos.  

Após se fartar com os quitutes, Isadora voltou para casa, indagou da mãe onde encontrar o tal livro indecente que ela havia lido quando menina. Dona Ana disse que o livro estava escondido junto de outras obras na dispensa da cozinha.

Que absurdo: livros escondidos na dispensa. Pensou Isadora, um tanto irritada.

Ao pegá-lo, observou a capa e o título: Madame Bovary.

- Muito prazer! - disse ela com um sorrisinho de canto nos lábios.

Debruçada sobre o travesseiro, com o lampião aceso à beira da cama sobre o criado mudo, abriu o livro aleatoriamente e se deparou com o seguinte trecho:
 
"...encontrava-se numa dessas crises em que a alma inteira mostra indistintamente o que encerra como o oceano que, nas tempestades, entreabre-se das algas das praia até a areia dos abismos.“

Depois, foi às primeiras páginas e imergiu na leitura até o raiar do dia.

“É... eu e essa Madame temos nossas diferenças.” pensa, antes de adormecer.
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continua…

Fonte: Texto enviado pela autora

quarta-feira, 4 de outubro de 2023

Dorothy Jansson Moretti (Álbum de Trovas) 31

 

Mensagem na Garrafa - 2 -


Há Momentos
autor desconhecido

Há momentos na vida em que sentimos tanto
a falta de alguém que o que mais queremos
é tirar esta pessoa de nossos sonhos
e abraçá-la.

Sonhe com aquilo que você quiser.
Seja o que você quer ser,
porque você possui apenas uma vida
e nela só se tem uma chance
de fazer aquilo que se quer.

Tenha felicidade bastante para fazê-la doce.
Dificuldades para fazê-la forte.
Tristeza para fazê-la humana.
E esperança suficiente para fazê-la feliz.

As pessoas mais felizes
não têm as melhores coisas.
Elas sabem fazer o melhor
das oportunidades que aparecem
em seus caminhos.

A felicidade aparece para aqueles que choram.
Para aqueles que se machucam.
Para aqueles que buscam e tentam sempre.
E para aqueles que reconhecem
a importância das pessoas que passam por suas vidas.

O futuro mais brilhante
é baseado num passado intensamente vivido.
Você só terá sucesso na vida
quando perdoar os erros
e as decepções do passado.

A vida é curta, mas as emoções que podemos deixar
duram uma eternidade.
A vida não é de se brincar,
porque um belo dia se morre.

Maria Amélia Vaz de Carvalho (A Cigana)

Quando o gajeiro gritou do alto das vergas — Terra! — toda a gente que vinha a bordo da galera Terrível sentiu uma grande e indefinida alegria.

Subiram uns para o tombadilho, outros deixaram-se ficar no convés, e os passageiros da proa, os mais pobres, encarapitaram-se na amurada; começaram todos a olhar com uma ansiedade febril para a faixa escura que pouco a pouco avultava no horizonte.

A viagem tinha sido longa; a galera levara cinquenta dias para chegar do Rio de Janeiro.

Mas, todas essas penas, todo esse aborrecimento que assaltam o viajante que durante dias e dias não vê mais que o céu e o mar, desaparecem como que por encanto ante essa palavra mágica, solta pelo gajeiro — Terra!

Os passageiros eram, na maior parte, gente de baixa condição e de ambições modestas: tinham sido no Brasil carroceiros, feitores de roça, carpinteiros e pedreiros. Vinham com pouco dinheiro, mas traziam grande abundância de saudades; tinham sofrido, padecido longe da pátria, mas como ela os ia compensar de todas essas amarguras! A alegria bailava em todos os olhos.

Ah! o capitão Navarro, apesar de ter feito aquela viagem cinquenta vezes, também vinha contente e esfregava as mãos, tomado de um júbilo desmedido.

Quando o piloto se correspondia com o castelo da barra, o capitão impaciente, mas sem perder o seu aspecto risonho e benévolo, perguntava:

— Deixam-nos ou não nos deixam entrar a barra?

— Estão agora a perguntar-me se morreu alguém a bordo.

— Ora essa! Morto estou eu por me ver em Massarelos. Querem ver que ainda temos que ir dar com os ossos em Vigo? Com mil bombas! Era o que me faltava agora!

Mas não aconteceu o que o capitão receava: do castelo fizeram sinal que a galera podia entrar, e foi com uma voz vibrante de entusiasmo e de um prazer intenso que o capitão comandou a manobra.

A galera como um cavalo que obedece facilmente à pericia de um ótimo cavaleiro, projetou a barra em meio das exclamações dos impacientes e saudosos passageiros.

A galera fundeou defronte de Massarellos.

No dia seguinte, já não havia ali senão parte da tripulação e um ou outro marinheiro que não tinha família e que olhava para o cais com repugnância e com desdém.

As capoeiras em redor do tombadilho estavam despovoadas, a roda do leme reluzia ao sol, parada, sem movimento, as tampas enceradas da meia laranja abriam-se como as asas de uma enorme borboleta em repouso, e as mangueiras de linho cheias, retesadas, levavam o ar à cabine e ao porão.

Um belo dia de agosto!

O capitão Navarro assistia ao descarregar sentado em uma barrica de farinha de mandioca; o contra-mestre no portaló* olhava mais lentamente para o Douro como quem procura enxergar uma coisa desejada e cobiçada.

— Ainda nada? – perguntou o capitão.

— Admira, capitão! Das outras vezes pouco se deixa esperar essa visita.

E com a mão em quebra-luz continuava a observar o movimento dos botes e das catraias.

De repente, a Cigana, uma cadela de fila que era o ídolo de toda a tripulação do navio, deu um salto, subiu as escadas do portaló, e alongando o pescoço, meneou festivamente a cauda e ladrou de contente...

Era um latir alegre e de boa feição, o latir que ouvimos aos cães das nossas casas, quando recolhemos depois de longa ausência.

— Espera! – disse o contra-mestre – a Cigana tem faro. Aí vem a sua gente, capitão!

Navarro ergueu-se, olhou e viu um barco que, à força de remos, se dirigia para a galera.

— Até que enfim! – disse o capitão, e desceu cheio de contentamento as escadas do portaló...

A cadela, vendo descer o dono, acompanhou-o e saltou ao mesmo tempo que ele para o interior do barco.

O contra-mestre olhava de cima aquele quadro e murmurava entre alegre e melancólico:

— Parece que é bom ter família e ter uma pequerrucha bonita como a do capitão que nos venha dar um abraço quando vimos de longe...

— Assim será, meu contra-mestre, mas quando essa filha vem de luto, devendo vir vestida de cores alegres; quando ela nos vem dizer com a voz abafada em lágrimas e soluços — A mamãe morreu! — não me parece que seja muito para invejar, meu rude celibatário, que não tens outro afeto senão pela tua galera e pelo mar, a quem confiaste a tua mocidade e a quem confiarás um dia o repouso do teu corpo!

De sorte que aquele momento tão apetecido pelo capitão foi-lhe amargurado pela notícia da morte da mulher que ele estremecia deveras.

Eram quatro os afetos do capitão: a mulher, a filha, a Cigana e a sua bonita e garbosa galera.

O primeiro afeto desaparecera, restavam-lhe ainda os três; não tinha muito que se queixar do destino: a galera ali estava capaz ainda de arrostar com sessenta viagens, a filha dependurava-se-lhe do peito amplo e largo, cheia de viço e de adorável meiguice, e aos pés de ambos, arrojava-se latindo baixo a Cigana, acariciando-os com os olhos onde havia o indefinido das vagas, e como que um lampejo umedecido de uma ternura doce e humana.

A filha de Navarro, depois de haver chorado no peito do pai, abaixou-se e passou a mão pela cabeça da cadela.

— Quando partir de novo, papá, deixe-me a Cigana, sim? A mamãe era tão amiga dela!

A Cigana, parecendo compreender aquelas palavras, endireitou-se, e pousando as patas no colo da menina, beijou-lhe carinhosamente as mãos...

Quando Navarro chegava do Brasil e ia passar algum tempo em Lessa com a família, levava sempre em sua companhia o seu querido animal! Imagine-se como este seria mimado, festejado e cheio de afagos quando souberam que uma vez no alto mar...

Não sei quantas milhas devorava nesse momento a galera. Era meio-dia, fazia um sol de rachar, os marinheiros à proa comiam o rancho, e na tolda não estava senão o capitão, a Cigana, e o homem do leme. O piloto fora buscar em seu beliche um mapa que o capitão lhe pedira, e demorara-se mais que o tempo necessário. Navarro ergueu-se do banco de vime e encostou se às grades da ré.

Como foi aquilo? Vertigem? Congestão cerebral?

Foi ele encostar-se à grade, estar ali coisa de dois ou três minutos, e de súbito borcar-se-lhe o corpo nas ondas...

O homem do leme viu aquilo, e aflitivamente exclamou:

— Jesus! Acudam!

E quando os passageiros correram ao tombadilho e a tripulação veio saber o que sucedera, o piloto, pálido e assustado, mandou recolher todo o pano; podia ver-se ao longe em meio das águas, que faiscavam e transluziam os raios do sol, um ponto negro e que pouco a pouco parecia afastar-se, afastar-se...

Os dois escaleres da ré foram descidos ao mar, e dentro deles os mais robustos dos tripulantes.

— Parecia que ele não estava bom! – disse o homem do leme. – Que eu só reparei nele quando o vi no ar...

— Deitem-lhe a boia! – gritou o contra-mestre.

Naquele momento de ansiedade, procurou-se a boia e não se encontrou.

O contra-mestre estava desesperado, as pragas mais violentas saiam-lhe em borbotões por entre os dentes, que apertavam estreitamente o tubo fumoso do cachimbo.

O navio afrouxara a sua marcha, contudo os escaleres ainda iam bastante longe do ponto negro que todos julgavam ser o capitão.

— Lá bom nadador é ele, – dizia o contra-mestre - mas se ha tubarões assim! – e reunia os dedos em pinha. Estendia os braços, dependurava-se da grade da popa, e com gestos ansiosos tentava animar os marinheiros dos escaleres.

— Força, rapazes!

No rosto de todos os passageiros lia-se um grande terror e uma pena profunda. Era impossível escapar. O capitão apesar de bom nadador já estava velho e cansado, depois os tubarões...

Os marinheiros contavam casos horrendos que haviam presenciado, e em que figuravam esses assanhados tigres do mar.

— Valha-nos o senhor de Matosinhos! – conclamavam num grito lancinante aqueles homens, que tantas vezes tinham lutado heroicamente contra as coléricas sanhas da tempestade, e que adoravam o bondoso velho, o seu capitão.

O ponto negro ia-se distinguindo mais nitidamente: às vezes afundava-se, outras vezes imergia-se; e enquanto os escaleres voavam, o contra-mestre continuava a gritar, posto que as suas vozes já não pudessem ser ouvidas pelos que iam em salvamento de Navarro.

Quando o vulto estava à distância de uma milha, o contra-mestre exclamou, firmando a vista:

— Ou eu me engano, ou o capitão não vem sozinho... esperem! É a Cigana que traz a reboque o patrão!...

Era a Cigana efetivamente. Quando o velho caíra no mar, o animal atirara-se logo atrás, e mergulhando conseguira apertar nos dentes as roupas do capitão, e desde esse instante nunca mais o largara.

Quando os escaleres se aproximaram dos dois, a pobre Cigana estava quase exausta e sem forças. Arrancaram-lhe a custo da boca o seu querido fardo e ela continuou a nadar frouxamente sem poder resistir às ondas que a levavam de chofre de encontro aos escaleres.

Quis subir, galgar a borda de um dos escaleres, e não pôde, resvalou na água, ganindo dolorosamente, sendo preciso que um dos marinheiros a puxasse com força, arrebatando-a assim à morte inevitável.

Da galera, aplaudiram a ação da Cigana, e quando ela e o capitão chegaram, não sei bem qual dos dois foi mais abraçado.

— Bravo, Cigana! – exclamou o contra-mestre - Não há homem que te valha. Dá cá um abraço!

O capitão foi levado por dois marinheiros para a sua cabine, enquanto a Cigana, resfolegando alto, com os olhos embaciados, o corpo escorrendo água e todo trêmulo, tentava arrastar-se para onde lhe levavam o dono.


Ora, aqui está porque a Cigana era tão querida e estimada na pequena e alegre casa do capitão em Lessa, e aqui está a razão por que a filha do velho e bondoso Navarro lhe pedia com tão amável meiguice que deixasse ficar a Cigana quando em outra vez tivesse de fazer viagem.

Quando a galera Terrível partiu, não levava a seu bordo nem o capitão nem a Cigana. Porque?

Se o leitor é pai, diga-me, se no caso do capitão Navarro, teria forças de fazer-se ao largo e deixar sozinha uma filha de quinze anos, graciosa e encantadora.

Não tinha forças para tal, acreditamos.

Ao capitão sucedeu o mesmo. Despediu-se dos seus companheiros, chorou quando viu pela primeira vez a Terrível fazer-se de vela sem ele, mas ficou em terra.

Tinha saudades, isso tinha, do mar, da solidão majestosa das águas, da melancolia das horas da calma, das tempestades que, de quando em quando, o visitavam, mas fitava os olhos azuis da filha e bebia neles consolações que lhe amorteciam essas mágoas.

Às vezes, saia de casa acompanhado pela Cigana, e ficava-se á beira do mar, observando os navios que passavam à distância, absorvendo a plenos pulmões o saudável ar marítimo, regalava-se conversando com os pescadores e com os embarcadiços, e nessas tardes recolhia mais alegre e com o corpo mais direito e rejuvenescido. Outras vezes, ia num bote pelo ameníssimo rio Lessa acima, e nessas excursões levava quase sempre a sua querida Luiza, e quase sempre nesses passeios em que ele contava à filha as peripécias de toda a sua vida trabalhosa, encontrava-se com outro bote em que ia ao leme um moço de vinte anos, elegante e galhardo que o cumprimentava respeitosamente.

Na terceira vez que aquele encontro se deu, o velho disse á filha:

— Não sei se conheço aquele moço! É o filho único de um meu antigo companheiro. O pai está rico, está. Eu também por aquele preço podia estar como ele ou melhor. Que se ele tem muito de seu, a mim me deve. Joaquim Antonio Ferreira, que depois foi feito Conde da Guaratiba, bem queria que eu fosse capitão de uma sua barca, recusei, porém, sempre, e apresentei-lhe um dia Gouvêa, o pai desse rapaz, que afinal de contas depois de seis ou sete viagens felizes à África, deixa a vida do mar e foi um dos que mais lotes de escravos levava aos armazéns de Vallongo... Ser rico à custa de tantas lágrimas não era para o filho de meu pai...

E aqui entrava o capitão a contar a Luiza coisas da sua mocidade, e absorvido nessas recordações não reparava que a filha seguia com a vista ansiosa o barco em que ia o herdeiro do milionário Gouvêa.

Luiza amava, e amava como o primeiro e grande afeto de quinze anos.

Segregada das moças da sua idade, não tinha a quem confiar tantos e tão amantíssimos segredos: embriagada por aquele amor, deixava-se ir deliciosamente pela correnteza, sem medo de encontrar um dia a voragem que a tragasse, o abismo em que se lhe afundasse a honra e a vida.

Nunca tinha falado ao noivo da sua alma; via-o de longe, ora passar a cavalo pela rua em que morava, ora no rio quando o pai a levava aos costumeiros passeios.

Conhecia-o pelas cartas, que lia, relia e decorava, e a todas elas respondera, menos à última cujo conteúdo a trazia surpresa, enlevada, vibrante...

O não responder a essa carta era como que um assentimento a um pedido que nela se fazia.

O velho capitão nessa noite pedira à filha que lhe lesse uns livros de viagem. Luiza lia perfeitamente, com uma entoação harmoniosíssima, e dando com a voz um relevo maravilhoso à narrativa. O capitão, com o corpo reclinado na poltrona, o cachimbo apertado nos dentes, e a cabeça da Cigana nos joelhos, sorria na plena beatitude de um gozo indefinido. De vez em quando, acordava daquela deliciosa sonolência e emendava as incoerências e os enganos do escritor.

— Nada, nada, isso não é assim. Venham cá dizer-me  que passei por esse ponto mais de trinta vezes...

Às dez horas serviu-se o chá, a Cigana foi levada para o quintal, e Luiza acompanhou o pai até o limiar do quarto.

— Deus te abençoe, minha filha - disse o velho ao despedir-se, e beijou Luiza na testa.

— Hoje tenho pouco sono, papá, fico ainda a ler um pouquinho na sala, se o papá quiser alguma coisa chame-me, sim? Vou acabar de ler este livro, acho-o muito bonito. Gosto tanto da vida do mar!

— Filho de peixe sabe nadar. –  volveu o capitão sorrindo com o divino sorriso dos pais, que se creem únicos senhores dos afetos dos filhos.

Passada meia hora, ouviu-se no quintal o ladrar contínuo, frenético e raivoso da Cigana.

O capitão gritou da cama:

— O que é aquilo, filha? A Cigana está hoje como nunca a vi. Vai sossega-la, se não tens sono, e prende-a. Naturalmente os pescadores saltaram-me à fruta. É o que é. Deixa-los lá, coitados! Estes dias tem havido pouco peixe. Não vá a Cigana fazer alguma das suas... Ora vai, anda, tem paciência... Eu não vou porque me sinto fatigado e esquisito hoje... A Cigana ouvindo-te, sossega...

Luiza desceu ao pátio.

Abriu com mão trêmula a cancela e encostou-se vacilante, agitada e convulsa ao muro. O ladrar da cadela cessara. Adiantou-se. No fundo do jardim sob a lataria, um vulto encostado à parede. A pobre menina levou as mãos ao peito, como para sossegar a doida violência do coração que parecia sufoca-la; quis falar e não pôde. O corpo vergava-se-lhe frouxo, mole, sem forças...

De repente saiu das sombras das árvores a Cigana, que se arrastou para Luiza, ganindo dilacerantemente, movendo com dificuldade a cauda, com a parte posterior do corpo quase paralítica, escorrendo-lhe da boca uma baba espessa, com os olhos dilatados desmedidamente...

Naquele olhar que a claridade da lua deixava distinguir havia um pedido, uma súplica.

— Cigana! – exclamou Luiza.

Ouvindo aquela voz, a cadela, que se sustentava dificilmente nas patas dianteiras, ergueu ainda, por um supremo esforço, a cabeça, e, tomada de uma ânsia aflitiva, convulsionando-se-lhe o corpo num estremecimento instantâneo, soltou um gemido rouco, estrebuchou violentamente, e caiu morta aos pés da filha do capitão.

— A sua Cigana é muito má, mas ainda é mais gulosa,. – disse o vulto que se escondia sob a lataria.

— Que mal lhe fez este animal, sr. Gouvêa? – perguntou repreensivamente Luiza, estrangulando-se-lhe a voz na garganta.

— Boa pergunta! Não subisse eu tão depressa para o muro e estava derrubado a estas horas! O demônio do bicho! Mas vinha prevenido, atirei-lhe uma bola, que lhe derrubou como se fosse manteiga. Ora deixe lá o cão, querida, não se faça piégas...

Luiza interrompeu bruscamente aquelas palavras tolíssimas, e endireitando o corpo, ergueu a voz quebrada pelas lágrimas:

— Saia, saia depressa; se não quer que meu pai venha aqui matar, sem ser tão covardemente como o senhor acaba de matar a minha pobre Cigana.

E enquanto o vulto marinhava pelo muro, a desditosa criatura abraçava a Cigana, e chorava como somente uma vez em vida chorara, quando lhe levaram para fora de casa o corpo de sua mãe.

— Cigana, minha pobre Cigana! – repetia Luiza, fui eu que te matei!

No outro dia murmurava o capitão, fingindo-se sereno e forte para poder consolar a filha:

— Vão lá depois fazer bem... Eu mandava prender a Cigana para que não fizesse mal a ninguém, e pagaram-me desta forma!...

E o velho, para não chorar também, fingia que não reparava nas lágrimas que rolavam como pérolas pelo rosto descolorido e pálido da filha.
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* portaló = Lugar por onde se entra em um navio ou por onde passa a carga.

Fonte:
Disponível em Domínio Público.
Maria Amália Vaz de Carvalho. Contos e Phantasias. Publicado originalmente em Porto, 1880.
Convertido para o português atual por J. Feldman

Benjunior (Benevides Garcia) Poemas Escolhidos 3


CAMPO DE ROSAS

"Ah, se eu pensasse um campo de rosas...
... e tivesse a luz de olhares infinitos
traria a imensidão deste céu
para dentro das minhas limitações...”
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CANTIGA PARA PASSAR O TEMPO

Ah, esse vento que passa
Essa chuva que cai
A manhã que surge
A tarde que morre
A vida que vai...
Às vezes,
O frio
Impiedoso
Esse ar triste,
Saudoso...
Sonhos,
Esperanças,
Lembranças...
E depois esse fogo
Que crepita na alma
Que queima e arde
Numa voraz paixão...
Ah, tudo passa...
Passam as flores na praça
Passa a água do rio
Passam os carnavais
Os felizes natais
E tudo o mais...
Passam os pássaros no céu
O rosto e o véu
Passa o riso
Passa o vento
Passa a chuva
Passa a vida
Passa tudo o que se vê...
E depois...
De certo tempo
Esse lamento
Sem você!…
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CARMIM

Hoje
Não quero nada...
Não quero flores na janela
Nem o olhar da amada
Não quero telas de sangue [das tardes que morrem...]
Não quero cravo na lapela
Nem morrer em filmes de bang-bang...
...
Ah... pensando bem, quero sim...
Quero dos teus lábios o carmim:
Um beijo assim
Levará minha alma ao paraíso...
O que mais será preciso?
Se ando tão indeciso...
É longa a estrada do querer
E depois que encontra o que se quer
Voltar  para quê?…
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O ENTARDECER DA VIDA

E o que farei se
acordar
para a mesma vida
de sempre
minha alma desnuda,
solitária, vazia?...
Ah, comboio invisível
que pouco a pouco
tudo leva, tudo arrasta
para o entardecer da vida!...
Onde terei deixado
meus sonhos do amanhã
se de mãos vazias
esqueci de dar corda
para o meu coração?...
Nada!...,
Não há mais músicas
nos meus ouvidos...
Nada!...,
Nem há lembranças
na minha tristeza...
É tempo de dar risadas
na escuridão
Fugir pelos caminhos inquietos
ser rio, ser barco, ser só
Levar-me cada vez mais longe
Deixar a poesia
meus sonhos,
minha fantasia
para perder-me
na tua ausência…
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PROMESSA

O caminho que seguirei
Está repleto de lembranças
É saudade que não cala
É espera e é chegada...
O caminho por onde irei
Guarda a poesia nas flores
E o silêncio nos espinhos.
No pó dos meus passos
Toda a minha esperança.
Na distância do meu cansaço
A ternura do amanhã...
O caminho que farei
Está delineado nos meus sonhos.
Não é o antes, nem o depois
É o agora que se eterniza
Na paisagem de nós dois…
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SAUDADE

“Disseram que a saudade
esteve por muito tempo à minha procura.
Bateu palmas, fez serenata,
brincou com as crianças que passavam na rua
e depois em silêncio partiu...
Ainda que o sol se ponha
haverá outro dia amanhã.
Mesmo que os sonhos se forem
outros virão certamente.
Não há mal que sempre dure,
nem bem que nunca acabe...”
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TARDE AZUL

Olhando por esta janela antiga
Nem mais sei o que eu sou.
Já não ouço mais meus blues,
Nem tempo tenho
Para ver o sol nascer.
Só restam lamentos
Nas minhas tardes azuis,
Uma tristeza profunda,
Vontade de não mais ser...
Como um espantalho
Levado pelo vento
Vou seguindo a vida,
Enquanto a vela do tempo queima,
Esquecido dos deuses,
Ermo de amores,
Carente de pensamentos,
Distante de tudo,
Crivado de dores...
Sou agora aquele que nunca foi.
Aquele que nunca ousou.
Alguém que nunca amou...

Fonte: Facebook do poeta.

Estante de Livros (“Uma lágrima de muher”, de Aluísio de Azevedo)


Uma lágrima de mulher (1880), novela de estreia de Aluísio Azevedo, apresenta a faceta romântica desse autor responsável pela introdução do Naturalismo no Brasil.

A narrativa constitui-se com estrutura de folhetim. O leitor acompanhará a desventura amorosa de Miguel, jovem de origem humilde que não mede esforços para unir-se à Rosalina. Com expressiva carga de emotividade e em estilo adjetivado, a ideia de que a infelicidade está associada à soberba e de que o excesso de dinheiro gera a corrupção dos princípios morais firma-se como principal advertência nesse relato que antecipa alguns dos temas explorados no romance realista.

O relacionamento não é bem aceito pelo pai de Rosalina e eles se separam. Parece que o risco da morte e nem mesmo a distância, são obstáculos suficientes para impedir o coração apaixonado de Miguel, em busca de rever sua amada. Mas será que, caso se reencontrem, ainda haverá amor correspondido?

RESUMO
O romance narra a história dos amigos italianos Miguel e Rosalina, que viveram desde a infância em uma pequena comunidade de pescadores chamada Lipari. Rosalina morava com o pai Maffei, a velha Ângela e o cão Castor em uma casinha branca. Miguel era um vagabundo abandonado a sorte, seus pais já tinham partido desta vida e nenhuma fortuna deixou a ou pupilo senão uma rabeca e o dom de tocá-la.

O velho Maffei tendo a filha moça já feita partira em busca de fazer fortuna e a deixara sob os cuidados de Ângela. Mal sabia o desgraçado que a menina tomaria por namorado Miguel, o moço fazia composições à namorada e lhe declarava ao som da rabeca nos finais de tarde. Assim decorreram dois anos de ausência e de namoro, até o retorno do velho pescador que logo fez romper o romance que reprovou assim quando soube. Rosalina rapidamente escreveu ao amado sobre o fim do romance e a partida para Nápoles que se daria em breve, no mesmo papel pedia um encontro para dar-lhe adeus.

Findando a tarde os enamorados se encontraram bem próximos à casinha branca, tomados pelo choro misturados a leves e confusos sorrisos sentiram seus lábio uma atração que somente os que amam sentem e o beijo se fez. Mas logo se desfez com a invasão da luz vermelha da lanterna manobrada por Maffei, este fez o jovem casal o acompanhar até a casinha, Miguel levava a amada nos braços desfalecida e ao chegar a deitou em seus aposentos, em seguida acompanhou o velho para fora da casa e próximo a um penhasco que desabava no mar. Lá travaram uma luta como duas feras lutando por sobrevivência, até que o mais forte viu rolar no precipício o corpo do jovem músico. Após o regresso da luta, raiado o dia o velho partiu com a família deixando pra trás o cão e uma casinha banca agora tomada por fogo e por cinzas.

A jovem saiu do campo e foi apresentada a uma vida de luxo, já não mais vestia, comia e falava como antes. Aprendeu a ser uma senhora, que vivia e se apropriara dos altos salões. Esquecera, durante os quatro anos, que um dia sofreu com a morte do jovem Miguel. Até que um dia saiu atordoada do salão de sua elegante casa e foi para seu aposento, estendendo um lenço de renda na janela e lembrando a figura do tocador de rabeca.

O que sucedeu na noite da batalha viria a perturbar o futuro. Miguel havia sobrevivido ao acidente e logo amanheceu já estava em terra firme, resistira ao mar e se pôs a caminhar até a casinha branca, onde não encontrou muito além de cinzas e o pobre Castor, com quem compartilhou de sua desgraça. O tempo e a necessidade o fizeram mestre de quatro pupilos, meninos que ficaram inconformados com o dia em que Miguel avisou a partida em busca da amada. Soubera que a fidalga estava prometida a um nobre.

Miguel recebeu a parte em dinheiro que lhe era direito por o tempo de serviço e partiu com o pescador Sombra da Noite, o velho conhecia a vida de ostentação que Maffei mantinha, bem como a estrutura da elegante mansão em Nápoles. Partiu com eles o dócil companheiro Castor. Lá chegando logo se dirigiram a tal residência donde no salão os pares bailavam, Miguel fez um caminho indicado pelo seu guia e se dispôs a tocar a rabeca em frete a janela do quarto da amada, até que o músico não correspondido voltou aos navegantes, para o lugar onde estavam hospedados.

Logo recomendou à Sombra da Noite que entregasse um bilhete marcando encontro com Rosalina. A grande noite chegou e o lencinho de renda francesa foi posto à janela como sinalização a entrada do amante. Os dois estremeceram, Rosalina estava mudada e superficial, dizia ser o pai único culpado de sua sorte e Miguel partiu com essa informação e uma idéia a ser materializada.

Um sábado a noite a casa de Maffei estava esplêndida, era aniversário de Rosalina, as portas se escancaravam ao público. O moço tocador de rabeca estava no jardim como um bicho que fareja sua presa e lá estava: o velho fidalgo sentado em um banco se afastara do barulho de salão. Miguel de pronto o surpreendeu, e o sugou a vida roubando-lhe o ar. Ao amanhecer um dos funcionários deu conta do corpo estirado ao jardim…Sucederam dias de pesar e tristeza, logo suplantados pelo casamento da moça com o nobre a que estava destinada, assim teria a manutenção da vida que já tinha se habituado nas altas camadas da sociedade. Quanto ao seu matrimônio, o noivo dava-se por satisfeito por ter acesso a herança, enquanto a esposa se prostituía com os amantes que saltavam sua janela nas noites.

Até que um dia o esperançoso Miguel deu seu salto, agora não tendo mais o velho Maffei a jovem voltaria para seus braços e partiriam para a pacata colônia. Porém não tinha o músico notícias da vida da amada. Rosalina ficou surpresa, mas logo criou lamúrias e falseou a má sorte que a assolara. Não tendo mais o que criar, apontou ao amante um pequeno copo que estava em que quarto e informou que nele não mais havia veneno porque ela mesma o tomou e que em instantes partiria de seu infortúnio. E assim dramatizou, como que dá adeus ao mundo dos vivos. Miguel chorava junto ao corpo da amante até que se pôs junto dela e silenciou. Rosalina, incomodada com a situação e a insistência suscitou a vida e indagou ao amante se ele não partiria, mas o silêncio persistiu. Miguel estava morto. Pela primeira vez rolou uma lágrima pura e feminina, de quem pela primeira vez amava, agora a um cadáver. Foi assim que naquela face escorreu uma lágrima de mulher!

Fontes:
AMAZON
Resumo de ReginaMSChaves

Dicas de Escrita (Como escrever histórias) – 8, final

NÃO HÁ PORQUE TER ERROS


A arte de contar histórias, como toda arte, é subjetiva e ninguém possui a verdade. Não existem grandes filmes ou grandes romances, existem grandes histórias. A diferença está na forma escolhida para transmissão: papel ou celulóide, modulação de frequência ou performance ao vivo.

A ferramenta básica de um contador de histórias é saber olhar, mas a principal virtude tem que ser a paciência. O tempo deve passar entre escrever e reescrever, até que seu trabalho se concretize na forma de livro ou filme, poderá demorar anos. Não se desespere, é uma corrida de longa distância, não um sprint.

Da próxima vez que a inspiração surgir, você terá que estar preparado. Não se pode ser um escritor, mesmo que ruim, sem ser um grande leitor, o mesmo vale para o resto.

Não conheço um roteirista ou diretor de cinema que não assista filmes. Não digamos o teatro. Aproveitado o arrebatamento inicial, vem a parte mais importante e trabalhosa: o reescrever. Quanto mais você persistir, melhores serão as primeiras versões.

Erros não precisam ter. Existem histórias maravilhosas, tanto na literatura como no cinema, que se constroem a partir dessas supostas falhas. Porém, geralmente são obras brilhantes, únicas e irrepetíveis. Seu texto pode ser o próximo Ulisses de Joyce, mas não custa nada refletir sobre esses aspectos.

No mínimo, quando alguém detectar esses erros, você já terá sua defesa preparada. Nunca conte uma história na qual você não trabalhou (a menos que não tenha nada a ver com ela e será a oportunidade da sua vida). Se você trabalhou e reelaborou outras histórias, você terá desenvolvido seus conhecimentos e poderá improvisar melhor e sem que seu interlocutor o perceba.

Se eles pedirem conselhos sobre uma história, comece se colocando no lugar deles. Faça uma crítica construtiva, pense que seu objetivo é ajudar a melhorá-la e não destruí-la.

Analise, não critique.
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Fonte:
Pedro A. Ramos García. Cómo contar historias. in www.mailxmail.com . acesso em 26.11.2020. Tradução do espanhol por J.Feldman