Quando o gajeiro gritou do alto das vergas — Terra! — toda a gente que vinha a bordo da galera Terrível sentiu uma grande e indefinida alegria.
Subiram uns para o tombadilho, outros deixaram-se ficar no convés, e os passageiros da proa, os mais pobres, encarapitaram-se na amurada; começaram todos a olhar com uma ansiedade febril para a faixa escura que pouco a pouco avultava no horizonte.
A viagem tinha sido longa; a galera levara cinquenta dias para chegar do Rio de Janeiro.
Mas, todas essas penas, todo esse aborrecimento que assaltam o viajante que durante dias e dias não vê mais que o céu e o mar, desaparecem como que por encanto ante essa palavra mágica, solta pelo gajeiro — Terra!
Os passageiros eram, na maior parte, gente de baixa condição e de ambições modestas: tinham sido no Brasil carroceiros, feitores de roça, carpinteiros e pedreiros. Vinham com pouco dinheiro, mas traziam grande abundância de saudades; tinham sofrido, padecido longe da pátria, mas como ela os ia compensar de todas essas amarguras! A alegria bailava em todos os olhos.
Ah! o capitão Navarro, apesar de ter feito aquela viagem cinquenta vezes, também vinha contente e esfregava as mãos, tomado de um júbilo desmedido.
Quando o piloto se correspondia com o castelo da barra, o capitão impaciente, mas sem perder o seu aspecto risonho e benévolo, perguntava:
— Deixam-nos ou não nos deixam entrar a barra?
— Estão agora a perguntar-me se morreu alguém a bordo.
— Ora essa! Morto estou eu por me ver em Massarelos. Querem ver que ainda temos que ir dar com os ossos em Vigo? Com mil bombas! Era o que me faltava agora!
Mas não aconteceu o que o capitão receava: do castelo fizeram sinal que a galera podia entrar, e foi com uma voz vibrante de entusiasmo e de um prazer intenso que o capitão comandou a manobra.
A galera como um cavalo que obedece facilmente à pericia de um ótimo cavaleiro, projetou a barra em meio das exclamações dos impacientes e saudosos passageiros.
A galera fundeou defronte de Massarellos.
No dia seguinte, já não havia ali senão parte da tripulação e um ou outro marinheiro que não tinha família e que olhava para o cais com repugnância e com desdém.
As capoeiras em redor do tombadilho estavam despovoadas, a roda do leme reluzia ao sol, parada, sem movimento, as tampas enceradas da meia laranja abriam-se como as asas de uma enorme borboleta em repouso, e as mangueiras de linho cheias, retesadas, levavam o ar à cabine e ao porão.
Um belo dia de agosto!
O capitão Navarro assistia ao descarregar sentado em uma barrica de farinha de mandioca; o contra-mestre no portaló* olhava mais lentamente para o Douro como quem procura enxergar uma coisa desejada e cobiçada.
— Ainda nada? – perguntou o capitão.
— Admira, capitão! Das outras vezes pouco se deixa esperar essa visita.
E com a mão em quebra-luz continuava a observar o movimento dos botes e das catraias.
De repente, a Cigana, uma cadela de fila que era o ídolo de toda a tripulação do navio, deu um salto, subiu as escadas do portaló, e alongando o pescoço, meneou festivamente a cauda e ladrou de contente...
Era um latir alegre e de boa feição, o latir que ouvimos aos cães das nossas casas, quando recolhemos depois de longa ausência.
— Espera! – disse o contra-mestre – a Cigana tem faro. Aí vem a sua gente, capitão!
Navarro ergueu-se, olhou e viu um barco que, à força de remos, se dirigia para a galera.
— Até que enfim! – disse o capitão, e desceu cheio de contentamento as escadas do portaló...
A cadela, vendo descer o dono, acompanhou-o e saltou ao mesmo tempo que ele para o interior do barco.
O contra-mestre olhava de cima aquele quadro e murmurava entre alegre e melancólico:
— Parece que é bom ter família e ter uma pequerrucha bonita como a do capitão que nos venha dar um abraço quando vimos de longe...
— Assim será, meu contra-mestre, mas quando essa filha vem de luto, devendo vir vestida de cores alegres; quando ela nos vem dizer com a voz abafada em lágrimas e soluços — A mamãe morreu! — não me parece que seja muito para invejar, meu rude celibatário, que não tens outro afeto senão pela tua galera e pelo mar, a quem confiaste a tua mocidade e a quem confiarás um dia o repouso do teu corpo!
De sorte que aquele momento tão apetecido pelo capitão foi-lhe amargurado pela notícia da morte da mulher que ele estremecia deveras.
Eram quatro os afetos do capitão: a mulher, a filha, a Cigana e a sua bonita e garbosa galera.
O primeiro afeto desaparecera, restavam-lhe ainda os três; não tinha muito que se queixar do destino: a galera ali estava capaz ainda de arrostar com sessenta viagens, a filha dependurava-se-lhe do peito amplo e largo, cheia de viço e de adorável meiguice, e aos pés de ambos, arrojava-se latindo baixo a Cigana, acariciando-os com os olhos onde havia o indefinido das vagas, e como que um lampejo umedecido de uma ternura doce e humana.
A filha de Navarro, depois de haver chorado no peito do pai, abaixou-se e passou a mão pela cabeça da cadela.
— Quando partir de novo, papá, deixe-me a Cigana, sim? A mamãe era tão amiga dela!
A Cigana, parecendo compreender aquelas palavras, endireitou-se, e pousando as patas no colo da menina, beijou-lhe carinhosamente as mãos...
Quando Navarro chegava do Brasil e ia passar algum tempo em Lessa com a família, levava sempre em sua companhia o seu querido animal! Imagine-se como este seria mimado, festejado e cheio de afagos quando souberam que uma vez no alto mar...
Não sei quantas milhas devorava nesse momento a galera. Era meio-dia, fazia um sol de rachar, os marinheiros à proa comiam o rancho, e na tolda não estava senão o capitão, a Cigana, e o homem do leme. O piloto fora buscar em seu beliche um mapa que o capitão lhe pedira, e demorara-se mais que o tempo necessário. Navarro ergueu-se do banco de vime e encostou se às grades da ré.
Como foi aquilo? Vertigem? Congestão cerebral?
Foi ele encostar-se à grade, estar ali coisa de dois ou três minutos, e de súbito borcar-se-lhe o corpo nas ondas...
O homem do leme viu aquilo, e aflitivamente exclamou:
— Jesus! Acudam!
E quando os passageiros correram ao tombadilho e a tripulação veio saber o que sucedera, o piloto, pálido e assustado, mandou recolher todo o pano; podia ver-se ao longe em meio das águas, que faiscavam e transluziam os raios do sol, um ponto negro e que pouco a pouco parecia afastar-se, afastar-se...
Os dois escaleres da ré foram descidos ao mar, e dentro deles os mais robustos dos tripulantes.
— Parecia que ele não estava bom! – disse o homem do leme. – Que eu só reparei nele quando o vi no ar...
— Deitem-lhe a boia! – gritou o contra-mestre.
Naquele momento de ansiedade, procurou-se a boia e não se encontrou.
O contra-mestre estava desesperado, as pragas mais violentas saiam-lhe em borbotões por entre os dentes, que apertavam estreitamente o tubo fumoso do cachimbo.
O navio afrouxara a sua marcha, contudo os escaleres ainda iam bastante longe do ponto negro que todos julgavam ser o capitão.
— Lá bom nadador é ele, – dizia o contra-mestre - mas se ha tubarões assim! – e reunia os dedos em pinha. Estendia os braços, dependurava-se da grade da popa, e com gestos ansiosos tentava animar os marinheiros dos escaleres.
— Força, rapazes!
No rosto de todos os passageiros lia-se um grande terror e uma pena profunda. Era impossível escapar. O capitão apesar de bom nadador já estava velho e cansado, depois os tubarões...
Os marinheiros contavam casos horrendos que haviam presenciado, e em que figuravam esses assanhados tigres do mar.
— Valha-nos o senhor de Matosinhos! – conclamavam num grito lancinante aqueles homens, que tantas vezes tinham lutado heroicamente contra as coléricas sanhas da tempestade, e que adoravam o bondoso velho, o seu capitão.
O ponto negro ia-se distinguindo mais nitidamente: às vezes afundava-se, outras vezes imergia-se; e enquanto os escaleres voavam, o contra-mestre continuava a gritar, posto que as suas vozes já não pudessem ser ouvidas pelos que iam em salvamento de Navarro.
Quando o vulto estava à distância de uma milha, o contra-mestre exclamou, firmando a vista:
— Ou eu me engano, ou o capitão não vem sozinho... esperem! É a Cigana que traz a reboque o patrão!...
Era a Cigana efetivamente. Quando o velho caíra no mar, o animal atirara-se logo atrás, e mergulhando conseguira apertar nos dentes as roupas do capitão, e desde esse instante nunca mais o largara.
Quando os escaleres se aproximaram dos dois, a pobre Cigana estava quase exausta e sem forças. Arrancaram-lhe a custo da boca o seu querido fardo e ela continuou a nadar frouxamente sem poder resistir às ondas que a levavam de chofre de encontro aos escaleres.
Quis subir, galgar a borda de um dos escaleres, e não pôde, resvalou na água, ganindo dolorosamente, sendo preciso que um dos marinheiros a puxasse com força, arrebatando-a assim à morte inevitável.
Da galera, aplaudiram a ação da Cigana, e quando ela e o capitão chegaram, não sei bem qual dos dois foi mais abraçado.
— Bravo, Cigana! – exclamou o contra-mestre - Não há homem que te valha. Dá cá um abraço!
O capitão foi levado por dois marinheiros para a sua cabine, enquanto a Cigana, resfolegando alto, com os olhos embaciados, o corpo escorrendo água e todo trêmulo, tentava arrastar-se para onde lhe levavam o dono.
Ora, aqui está porque a Cigana era tão querida e estimada na pequena e alegre casa do capitão em Lessa, e aqui está a razão por que a filha do velho e bondoso Navarro lhe pedia com tão amável meiguice que deixasse ficar a Cigana quando em outra vez tivesse de fazer viagem.
Quando a galera Terrível partiu, não levava a seu bordo nem o capitão nem a Cigana. Porque?
Se o leitor é pai, diga-me, se no caso do capitão Navarro, teria forças de fazer-se ao largo e deixar sozinha uma filha de quinze anos, graciosa e encantadora.
Não tinha forças para tal, acreditamos.
Ao capitão sucedeu o mesmo. Despediu-se dos seus companheiros, chorou quando viu pela primeira vez a Terrível fazer-se de vela sem ele, mas ficou em terra.
Tinha saudades, isso tinha, do mar, da solidão majestosa das águas, da melancolia das horas da calma, das tempestades que, de quando em quando, o visitavam, mas fitava os olhos azuis da filha e bebia neles consolações que lhe amorteciam essas mágoas.
Às vezes, saia de casa acompanhado pela Cigana, e ficava-se á beira do mar, observando os navios que passavam à distância, absorvendo a plenos pulmões o saudável ar marítimo, regalava-se conversando com os pescadores e com os embarcadiços, e nessas tardes recolhia mais alegre e com o corpo mais direito e rejuvenescido. Outras vezes, ia num bote pelo ameníssimo rio Lessa acima, e nessas excursões levava quase sempre a sua querida Luiza, e quase sempre nesses passeios em que ele contava à filha as peripécias de toda a sua vida trabalhosa, encontrava-se com outro bote em que ia ao leme um moço de vinte anos, elegante e galhardo que o cumprimentava respeitosamente.
Na terceira vez que aquele encontro se deu, o velho disse á filha:
— Não sei se conheço aquele moço! É o filho único de um meu antigo companheiro. O pai está rico, está. Eu também por aquele preço podia estar como ele ou melhor. Que se ele tem muito de seu, a mim me deve. Joaquim Antonio Ferreira, que depois foi feito Conde da Guaratiba, bem queria que eu fosse capitão de uma sua barca, recusei, porém, sempre, e apresentei-lhe um dia Gouvêa, o pai desse rapaz, que afinal de contas depois de seis ou sete viagens felizes à África, deixa a vida do mar e foi um dos que mais lotes de escravos levava aos armazéns de Vallongo... Ser rico à custa de tantas lágrimas não era para o filho de meu pai...
E aqui entrava o capitão a contar a Luiza coisas da sua mocidade, e absorvido nessas recordações não reparava que a filha seguia com a vista ansiosa o barco em que ia o herdeiro do milionário Gouvêa.
Luiza amava, e amava como o primeiro e grande afeto de quinze anos.
Segregada das moças da sua idade, não tinha a quem confiar tantos e tão amantíssimos segredos: embriagada por aquele amor, deixava-se ir deliciosamente pela correnteza, sem medo de encontrar um dia a voragem que a tragasse, o abismo em que se lhe afundasse a honra e a vida.
Nunca tinha falado ao noivo da sua alma; via-o de longe, ora passar a cavalo pela rua em que morava, ora no rio quando o pai a levava aos costumeiros passeios.
Conhecia-o pelas cartas, que lia, relia e decorava, e a todas elas respondera, menos à última cujo conteúdo a trazia surpresa, enlevada, vibrante...
O não responder a essa carta era como que um assentimento a um pedido que nela se fazia.
O velho capitão nessa noite pedira à filha que lhe lesse uns livros de viagem. Luiza lia perfeitamente, com uma entoação harmoniosíssima, e dando com a voz um relevo maravilhoso à narrativa. O capitão, com o corpo reclinado na poltrona, o cachimbo apertado nos dentes, e a cabeça da Cigana nos joelhos, sorria na plena beatitude de um gozo indefinido. De vez em quando, acordava daquela deliciosa sonolência e emendava as incoerências e os enganos do escritor.
— Nada, nada, isso não é assim. Venham cá dizer-me que passei por esse ponto mais de trinta vezes...
Às dez horas serviu-se o chá, a Cigana foi levada para o quintal, e Luiza acompanhou o pai até o limiar do quarto.
— Deus te abençoe, minha filha - disse o velho ao despedir-se, e beijou Luiza na testa.
— Hoje tenho pouco sono, papá, fico ainda a ler um pouquinho na sala, se o papá quiser alguma coisa chame-me, sim? Vou acabar de ler este livro, acho-o muito bonito. Gosto tanto da vida do mar!
— Filho de peixe sabe nadar. – volveu o capitão sorrindo com o divino sorriso dos pais, que se creem únicos senhores dos afetos dos filhos.
Passada meia hora, ouviu-se no quintal o ladrar contínuo, frenético e raivoso da Cigana.
O capitão gritou da cama:
— O que é aquilo, filha? A Cigana está hoje como nunca a vi. Vai sossega-la, se não tens sono, e prende-a. Naturalmente os pescadores saltaram-me à fruta. É o que é. Deixa-los lá, coitados! Estes dias tem havido pouco peixe. Não vá a Cigana fazer alguma das suas... Ora vai, anda, tem paciência... Eu não vou porque me sinto fatigado e esquisito hoje... A Cigana ouvindo-te, sossega...
Luiza desceu ao pátio.
Abriu com mão trêmula a cancela e encostou-se vacilante, agitada e convulsa ao muro. O ladrar da cadela cessara. Adiantou-se. No fundo do jardim sob a lataria, um vulto encostado à parede. A pobre menina levou as mãos ao peito, como para sossegar a doida violência do coração que parecia sufoca-la; quis falar e não pôde. O corpo vergava-se-lhe frouxo, mole, sem forças...
De repente saiu das sombras das árvores a Cigana, que se arrastou para Luiza, ganindo dilacerantemente, movendo com dificuldade a cauda, com a parte posterior do corpo quase paralítica, escorrendo-lhe da boca uma baba espessa, com os olhos dilatados desmedidamente...
Naquele olhar que a claridade da lua deixava distinguir havia um pedido, uma súplica.
— Cigana! – exclamou Luiza.
Ouvindo aquela voz, a cadela, que se sustentava dificilmente nas patas dianteiras, ergueu ainda, por um supremo esforço, a cabeça, e, tomada de uma ânsia aflitiva, convulsionando-se-lhe o corpo num estremecimento instantâneo, soltou um gemido rouco, estrebuchou violentamente, e caiu morta aos pés da filha do capitão.
— A sua Cigana é muito má, mas ainda é mais gulosa,. – disse o vulto que se escondia sob a lataria.
— Que mal lhe fez este animal, sr. Gouvêa? – perguntou repreensivamente Luiza, estrangulando-se-lhe a voz na garganta.
— Boa pergunta! Não subisse eu tão depressa para o muro e estava derrubado a estas horas! O demônio do bicho! Mas vinha prevenido, atirei-lhe uma bola, que lhe derrubou como se fosse manteiga. Ora deixe lá o cão, querida, não se faça piégas...
Luiza interrompeu bruscamente aquelas palavras tolíssimas, e endireitando o corpo, ergueu a voz quebrada pelas lágrimas:
— Saia, saia depressa; se não quer que meu pai venha aqui matar, sem ser tão covardemente como o senhor acaba de matar a minha pobre Cigana.
E enquanto o vulto marinhava pelo muro, a desditosa criatura abraçava a Cigana, e chorava como somente uma vez em vida chorara, quando lhe levaram para fora de casa o corpo de sua mãe.
— Cigana, minha pobre Cigana! – repetia Luiza, fui eu que te matei!
No outro dia murmurava o capitão, fingindo-se sereno e forte para poder consolar a filha:
— Vão lá depois fazer bem... Eu mandava prender a Cigana para que não fizesse mal a ninguém, e pagaram-me desta forma!...
E o velho, para não chorar também, fingia que não reparava nas lágrimas que rolavam como pérolas pelo rosto descolorido e pálido da filha.
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* portaló = Lugar por onde se entra em um navio ou por onde passa a carga.
Subiram uns para o tombadilho, outros deixaram-se ficar no convés, e os passageiros da proa, os mais pobres, encarapitaram-se na amurada; começaram todos a olhar com uma ansiedade febril para a faixa escura que pouco a pouco avultava no horizonte.
A viagem tinha sido longa; a galera levara cinquenta dias para chegar do Rio de Janeiro.
Mas, todas essas penas, todo esse aborrecimento que assaltam o viajante que durante dias e dias não vê mais que o céu e o mar, desaparecem como que por encanto ante essa palavra mágica, solta pelo gajeiro — Terra!
Os passageiros eram, na maior parte, gente de baixa condição e de ambições modestas: tinham sido no Brasil carroceiros, feitores de roça, carpinteiros e pedreiros. Vinham com pouco dinheiro, mas traziam grande abundância de saudades; tinham sofrido, padecido longe da pátria, mas como ela os ia compensar de todas essas amarguras! A alegria bailava em todos os olhos.
Ah! o capitão Navarro, apesar de ter feito aquela viagem cinquenta vezes, também vinha contente e esfregava as mãos, tomado de um júbilo desmedido.
Quando o piloto se correspondia com o castelo da barra, o capitão impaciente, mas sem perder o seu aspecto risonho e benévolo, perguntava:
— Deixam-nos ou não nos deixam entrar a barra?
— Estão agora a perguntar-me se morreu alguém a bordo.
— Ora essa! Morto estou eu por me ver em Massarelos. Querem ver que ainda temos que ir dar com os ossos em Vigo? Com mil bombas! Era o que me faltava agora!
Mas não aconteceu o que o capitão receava: do castelo fizeram sinal que a galera podia entrar, e foi com uma voz vibrante de entusiasmo e de um prazer intenso que o capitão comandou a manobra.
A galera como um cavalo que obedece facilmente à pericia de um ótimo cavaleiro, projetou a barra em meio das exclamações dos impacientes e saudosos passageiros.
A galera fundeou defronte de Massarellos.
No dia seguinte, já não havia ali senão parte da tripulação e um ou outro marinheiro que não tinha família e que olhava para o cais com repugnância e com desdém.
As capoeiras em redor do tombadilho estavam despovoadas, a roda do leme reluzia ao sol, parada, sem movimento, as tampas enceradas da meia laranja abriam-se como as asas de uma enorme borboleta em repouso, e as mangueiras de linho cheias, retesadas, levavam o ar à cabine e ao porão.
Um belo dia de agosto!
O capitão Navarro assistia ao descarregar sentado em uma barrica de farinha de mandioca; o contra-mestre no portaló* olhava mais lentamente para o Douro como quem procura enxergar uma coisa desejada e cobiçada.
— Ainda nada? – perguntou o capitão.
— Admira, capitão! Das outras vezes pouco se deixa esperar essa visita.
E com a mão em quebra-luz continuava a observar o movimento dos botes e das catraias.
De repente, a Cigana, uma cadela de fila que era o ídolo de toda a tripulação do navio, deu um salto, subiu as escadas do portaló, e alongando o pescoço, meneou festivamente a cauda e ladrou de contente...
Era um latir alegre e de boa feição, o latir que ouvimos aos cães das nossas casas, quando recolhemos depois de longa ausência.
— Espera! – disse o contra-mestre – a Cigana tem faro. Aí vem a sua gente, capitão!
Navarro ergueu-se, olhou e viu um barco que, à força de remos, se dirigia para a galera.
— Até que enfim! – disse o capitão, e desceu cheio de contentamento as escadas do portaló...
A cadela, vendo descer o dono, acompanhou-o e saltou ao mesmo tempo que ele para o interior do barco.
O contra-mestre olhava de cima aquele quadro e murmurava entre alegre e melancólico:
— Parece que é bom ter família e ter uma pequerrucha bonita como a do capitão que nos venha dar um abraço quando vimos de longe...
— Assim será, meu contra-mestre, mas quando essa filha vem de luto, devendo vir vestida de cores alegres; quando ela nos vem dizer com a voz abafada em lágrimas e soluços — A mamãe morreu! — não me parece que seja muito para invejar, meu rude celibatário, que não tens outro afeto senão pela tua galera e pelo mar, a quem confiaste a tua mocidade e a quem confiarás um dia o repouso do teu corpo!
De sorte que aquele momento tão apetecido pelo capitão foi-lhe amargurado pela notícia da morte da mulher que ele estremecia deveras.
Eram quatro os afetos do capitão: a mulher, a filha, a Cigana e a sua bonita e garbosa galera.
O primeiro afeto desaparecera, restavam-lhe ainda os três; não tinha muito que se queixar do destino: a galera ali estava capaz ainda de arrostar com sessenta viagens, a filha dependurava-se-lhe do peito amplo e largo, cheia de viço e de adorável meiguice, e aos pés de ambos, arrojava-se latindo baixo a Cigana, acariciando-os com os olhos onde havia o indefinido das vagas, e como que um lampejo umedecido de uma ternura doce e humana.
A filha de Navarro, depois de haver chorado no peito do pai, abaixou-se e passou a mão pela cabeça da cadela.
— Quando partir de novo, papá, deixe-me a Cigana, sim? A mamãe era tão amiga dela!
A Cigana, parecendo compreender aquelas palavras, endireitou-se, e pousando as patas no colo da menina, beijou-lhe carinhosamente as mãos...
Quando Navarro chegava do Brasil e ia passar algum tempo em Lessa com a família, levava sempre em sua companhia o seu querido animal! Imagine-se como este seria mimado, festejado e cheio de afagos quando souberam que uma vez no alto mar...
Não sei quantas milhas devorava nesse momento a galera. Era meio-dia, fazia um sol de rachar, os marinheiros à proa comiam o rancho, e na tolda não estava senão o capitão, a Cigana, e o homem do leme. O piloto fora buscar em seu beliche um mapa que o capitão lhe pedira, e demorara-se mais que o tempo necessário. Navarro ergueu-se do banco de vime e encostou se às grades da ré.
Como foi aquilo? Vertigem? Congestão cerebral?
Foi ele encostar-se à grade, estar ali coisa de dois ou três minutos, e de súbito borcar-se-lhe o corpo nas ondas...
O homem do leme viu aquilo, e aflitivamente exclamou:
— Jesus! Acudam!
E quando os passageiros correram ao tombadilho e a tripulação veio saber o que sucedera, o piloto, pálido e assustado, mandou recolher todo o pano; podia ver-se ao longe em meio das águas, que faiscavam e transluziam os raios do sol, um ponto negro e que pouco a pouco parecia afastar-se, afastar-se...
Os dois escaleres da ré foram descidos ao mar, e dentro deles os mais robustos dos tripulantes.
— Parecia que ele não estava bom! – disse o homem do leme. – Que eu só reparei nele quando o vi no ar...
— Deitem-lhe a boia! – gritou o contra-mestre.
Naquele momento de ansiedade, procurou-se a boia e não se encontrou.
O contra-mestre estava desesperado, as pragas mais violentas saiam-lhe em borbotões por entre os dentes, que apertavam estreitamente o tubo fumoso do cachimbo.
O navio afrouxara a sua marcha, contudo os escaleres ainda iam bastante longe do ponto negro que todos julgavam ser o capitão.
— Lá bom nadador é ele, – dizia o contra-mestre - mas se ha tubarões assim! – e reunia os dedos em pinha. Estendia os braços, dependurava-se da grade da popa, e com gestos ansiosos tentava animar os marinheiros dos escaleres.
— Força, rapazes!
No rosto de todos os passageiros lia-se um grande terror e uma pena profunda. Era impossível escapar. O capitão apesar de bom nadador já estava velho e cansado, depois os tubarões...
Os marinheiros contavam casos horrendos que haviam presenciado, e em que figuravam esses assanhados tigres do mar.
— Valha-nos o senhor de Matosinhos! – conclamavam num grito lancinante aqueles homens, que tantas vezes tinham lutado heroicamente contra as coléricas sanhas da tempestade, e que adoravam o bondoso velho, o seu capitão.
O ponto negro ia-se distinguindo mais nitidamente: às vezes afundava-se, outras vezes imergia-se; e enquanto os escaleres voavam, o contra-mestre continuava a gritar, posto que as suas vozes já não pudessem ser ouvidas pelos que iam em salvamento de Navarro.
Quando o vulto estava à distância de uma milha, o contra-mestre exclamou, firmando a vista:
— Ou eu me engano, ou o capitão não vem sozinho... esperem! É a Cigana que traz a reboque o patrão!...
Era a Cigana efetivamente. Quando o velho caíra no mar, o animal atirara-se logo atrás, e mergulhando conseguira apertar nos dentes as roupas do capitão, e desde esse instante nunca mais o largara.
Quando os escaleres se aproximaram dos dois, a pobre Cigana estava quase exausta e sem forças. Arrancaram-lhe a custo da boca o seu querido fardo e ela continuou a nadar frouxamente sem poder resistir às ondas que a levavam de chofre de encontro aos escaleres.
Quis subir, galgar a borda de um dos escaleres, e não pôde, resvalou na água, ganindo dolorosamente, sendo preciso que um dos marinheiros a puxasse com força, arrebatando-a assim à morte inevitável.
Da galera, aplaudiram a ação da Cigana, e quando ela e o capitão chegaram, não sei bem qual dos dois foi mais abraçado.
— Bravo, Cigana! – exclamou o contra-mestre - Não há homem que te valha. Dá cá um abraço!
O capitão foi levado por dois marinheiros para a sua cabine, enquanto a Cigana, resfolegando alto, com os olhos embaciados, o corpo escorrendo água e todo trêmulo, tentava arrastar-se para onde lhe levavam o dono.
Ora, aqui está porque a Cigana era tão querida e estimada na pequena e alegre casa do capitão em Lessa, e aqui está a razão por que a filha do velho e bondoso Navarro lhe pedia com tão amável meiguice que deixasse ficar a Cigana quando em outra vez tivesse de fazer viagem.
Quando a galera Terrível partiu, não levava a seu bordo nem o capitão nem a Cigana. Porque?
Se o leitor é pai, diga-me, se no caso do capitão Navarro, teria forças de fazer-se ao largo e deixar sozinha uma filha de quinze anos, graciosa e encantadora.
Não tinha forças para tal, acreditamos.
Ao capitão sucedeu o mesmo. Despediu-se dos seus companheiros, chorou quando viu pela primeira vez a Terrível fazer-se de vela sem ele, mas ficou em terra.
Tinha saudades, isso tinha, do mar, da solidão majestosa das águas, da melancolia das horas da calma, das tempestades que, de quando em quando, o visitavam, mas fitava os olhos azuis da filha e bebia neles consolações que lhe amorteciam essas mágoas.
Às vezes, saia de casa acompanhado pela Cigana, e ficava-se á beira do mar, observando os navios que passavam à distância, absorvendo a plenos pulmões o saudável ar marítimo, regalava-se conversando com os pescadores e com os embarcadiços, e nessas tardes recolhia mais alegre e com o corpo mais direito e rejuvenescido. Outras vezes, ia num bote pelo ameníssimo rio Lessa acima, e nessas excursões levava quase sempre a sua querida Luiza, e quase sempre nesses passeios em que ele contava à filha as peripécias de toda a sua vida trabalhosa, encontrava-se com outro bote em que ia ao leme um moço de vinte anos, elegante e galhardo que o cumprimentava respeitosamente.
Na terceira vez que aquele encontro se deu, o velho disse á filha:
— Não sei se conheço aquele moço! É o filho único de um meu antigo companheiro. O pai está rico, está. Eu também por aquele preço podia estar como ele ou melhor. Que se ele tem muito de seu, a mim me deve. Joaquim Antonio Ferreira, que depois foi feito Conde da Guaratiba, bem queria que eu fosse capitão de uma sua barca, recusei, porém, sempre, e apresentei-lhe um dia Gouvêa, o pai desse rapaz, que afinal de contas depois de seis ou sete viagens felizes à África, deixa a vida do mar e foi um dos que mais lotes de escravos levava aos armazéns de Vallongo... Ser rico à custa de tantas lágrimas não era para o filho de meu pai...
E aqui entrava o capitão a contar a Luiza coisas da sua mocidade, e absorvido nessas recordações não reparava que a filha seguia com a vista ansiosa o barco em que ia o herdeiro do milionário Gouvêa.
Luiza amava, e amava como o primeiro e grande afeto de quinze anos.
Segregada das moças da sua idade, não tinha a quem confiar tantos e tão amantíssimos segredos: embriagada por aquele amor, deixava-se ir deliciosamente pela correnteza, sem medo de encontrar um dia a voragem que a tragasse, o abismo em que se lhe afundasse a honra e a vida.
Nunca tinha falado ao noivo da sua alma; via-o de longe, ora passar a cavalo pela rua em que morava, ora no rio quando o pai a levava aos costumeiros passeios.
Conhecia-o pelas cartas, que lia, relia e decorava, e a todas elas respondera, menos à última cujo conteúdo a trazia surpresa, enlevada, vibrante...
O não responder a essa carta era como que um assentimento a um pedido que nela se fazia.
O velho capitão nessa noite pedira à filha que lhe lesse uns livros de viagem. Luiza lia perfeitamente, com uma entoação harmoniosíssima, e dando com a voz um relevo maravilhoso à narrativa. O capitão, com o corpo reclinado na poltrona, o cachimbo apertado nos dentes, e a cabeça da Cigana nos joelhos, sorria na plena beatitude de um gozo indefinido. De vez em quando, acordava daquela deliciosa sonolência e emendava as incoerências e os enganos do escritor.
— Nada, nada, isso não é assim. Venham cá dizer-me que passei por esse ponto mais de trinta vezes...
Às dez horas serviu-se o chá, a Cigana foi levada para o quintal, e Luiza acompanhou o pai até o limiar do quarto.
— Deus te abençoe, minha filha - disse o velho ao despedir-se, e beijou Luiza na testa.
— Hoje tenho pouco sono, papá, fico ainda a ler um pouquinho na sala, se o papá quiser alguma coisa chame-me, sim? Vou acabar de ler este livro, acho-o muito bonito. Gosto tanto da vida do mar!
— Filho de peixe sabe nadar. – volveu o capitão sorrindo com o divino sorriso dos pais, que se creem únicos senhores dos afetos dos filhos.
Passada meia hora, ouviu-se no quintal o ladrar contínuo, frenético e raivoso da Cigana.
O capitão gritou da cama:
— O que é aquilo, filha? A Cigana está hoje como nunca a vi. Vai sossega-la, se não tens sono, e prende-a. Naturalmente os pescadores saltaram-me à fruta. É o que é. Deixa-los lá, coitados! Estes dias tem havido pouco peixe. Não vá a Cigana fazer alguma das suas... Ora vai, anda, tem paciência... Eu não vou porque me sinto fatigado e esquisito hoje... A Cigana ouvindo-te, sossega...
Luiza desceu ao pátio.
Abriu com mão trêmula a cancela e encostou-se vacilante, agitada e convulsa ao muro. O ladrar da cadela cessara. Adiantou-se. No fundo do jardim sob a lataria, um vulto encostado à parede. A pobre menina levou as mãos ao peito, como para sossegar a doida violência do coração que parecia sufoca-la; quis falar e não pôde. O corpo vergava-se-lhe frouxo, mole, sem forças...
De repente saiu das sombras das árvores a Cigana, que se arrastou para Luiza, ganindo dilacerantemente, movendo com dificuldade a cauda, com a parte posterior do corpo quase paralítica, escorrendo-lhe da boca uma baba espessa, com os olhos dilatados desmedidamente...
Naquele olhar que a claridade da lua deixava distinguir havia um pedido, uma súplica.
— Cigana! – exclamou Luiza.
Ouvindo aquela voz, a cadela, que se sustentava dificilmente nas patas dianteiras, ergueu ainda, por um supremo esforço, a cabeça, e, tomada de uma ânsia aflitiva, convulsionando-se-lhe o corpo num estremecimento instantâneo, soltou um gemido rouco, estrebuchou violentamente, e caiu morta aos pés da filha do capitão.
— A sua Cigana é muito má, mas ainda é mais gulosa,. – disse o vulto que se escondia sob a lataria.
— Que mal lhe fez este animal, sr. Gouvêa? – perguntou repreensivamente Luiza, estrangulando-se-lhe a voz na garganta.
— Boa pergunta! Não subisse eu tão depressa para o muro e estava derrubado a estas horas! O demônio do bicho! Mas vinha prevenido, atirei-lhe uma bola, que lhe derrubou como se fosse manteiga. Ora deixe lá o cão, querida, não se faça piégas...
Luiza interrompeu bruscamente aquelas palavras tolíssimas, e endireitando o corpo, ergueu a voz quebrada pelas lágrimas:
— Saia, saia depressa; se não quer que meu pai venha aqui matar, sem ser tão covardemente como o senhor acaba de matar a minha pobre Cigana.
E enquanto o vulto marinhava pelo muro, a desditosa criatura abraçava a Cigana, e chorava como somente uma vez em vida chorara, quando lhe levaram para fora de casa o corpo de sua mãe.
— Cigana, minha pobre Cigana! – repetia Luiza, fui eu que te matei!
No outro dia murmurava o capitão, fingindo-se sereno e forte para poder consolar a filha:
— Vão lá depois fazer bem... Eu mandava prender a Cigana para que não fizesse mal a ninguém, e pagaram-me desta forma!...
E o velho, para não chorar também, fingia que não reparava nas lágrimas que rolavam como pérolas pelo rosto descolorido e pálido da filha.
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* portaló = Lugar por onde se entra em um navio ou por onde passa a carga.
Fonte:
Disponível em Domínio Público.
Maria Amália Vaz de Carvalho. Contos e Phantasias. Publicado originalmente em Porto, 1880.
Convertido para o português atual por J. Feldman
Disponível em Domínio Público.
Maria Amália Vaz de Carvalho. Contos e Phantasias. Publicado originalmente em Porto, 1880.
Convertido para o português atual por J. Feldman
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