Conta o doutor este exemplo e diz que um cavaleiro, familiar dum rei, conhecia um homem velho que não tinha filhos e era já muito velho e sem títulos, mas era muito rico, estava sempre fora e era oficial de Del-Rey, que havia curado seus cavaleiros.
Este cavaleiro lhe tinha grande inveja, porque era rico, e buscava cada dia maneira em como lhe tomar o que tinha; e foi-se a El-Rey e acusou-o dizendo que quanto ele tinha, tudo furtara a El-Rey, e que do furto era assim rico, dizendo do muito mal, e que era ladrão e homem de má fé: e que este lhe queria provar em um campo com a espada na mão.
El-Rey fez chamar o velho, e mandou-lhe que esse escusasse ou entrasse em campo com ele; e se com ele não se atrevesse de combater, que buscasse outrem que esse com ele combatesse em seu nome.
O cavaleiro era muito valente em armas, e o velho receava de se combater com ele, como o cavaleiro era muito mancebo, e ele era muito velho e sem títulos: e andava rogando parentes e amigos a quem ele já fizera muitas boas obras, e não podia achar quem quisesse tomar a aventura por ele, pois temiam o cavaleiro. Este velho meditava e dizia:
— Muitos ajudei no tempo de suas necessidades, a parentes como amigos, e agora não acho parente, nem amigo! Quando a fortuna é contra o homem, todo os parentes fogem dele, como agora fazem comigo!
E este velho tinha um pastor que lhe guardava seu gado. E o pastor vendo seu senhor andar tão triste, ficou com piedade dele, e perguntou-lhe[5] porque andava com tanta tristeza. O velho lhe contou todo o ocorrido. O pastor, que fica-lhe com dó, lhe disse:
— Meu senhor, eu quero tomar esta aventura em vosso nome.
O velho lhe deu muitos agradecimentos.
No outro dia, do combate, mandou este pastor bem armado ao campo a combater-se com este cavaleiro. Quando o cavaleiro viu este vaqueiro, disse que a ele seria grande vergonha se muito andasse combatendo com este vaqueiro, mas que logo o haveria de vencer: e começou dar com sua espada grandes golpes no vaqueiro. O vaqueiro cobria-se e deixava-o cansar, e algumas vezes esquivava dos golpes do cavaleiro: isto fazia ele bem cansado. O cavaleiro imaginava que o vaqueiro não podia defender-se, e cada vez o desprezava mais. O cavaleiro tomou um lenço, e enxugou o rosto, porque suava. O vaqueiro se achegou a ele, e deu-lhe um golpe no cotovelo do braço direito, que o cavaleiro perdeu a força do braço, e arredou-se para trás; e o vaqueiro outrossim se destacou no campo. O vaqueiro disse ao cavaleiro que se levantasse; o cavaleiro disse que não queria. O vaqueiro, vendo que o cavaleiro não ia se levantar, passou a se mostrar no campo.
Ao combate estava pressente El-Rey com outros muitos barões para o ver; e vendo ambos parados, toda a gente começou a escarnecer. El-Rey mandou-lhes dizer que se combatessem. O mensageiro disse ao vaqueiro que se combatesse ou se desse por vencido; o vaqueiro disse:
— Eu não me dou por vencido, mas eu sou o vencedor, mas não vou atacar o homem que está caído; mas se o cavaleiro quiser levantar-se, eu estou prestes a combater com ele.
Os presentes debochavam. O vaqueiro foi ao cavaleiro e disse muitos impropérios, porque esse não queria levantar; o cavaleiro rogou ao pastor que lhe perdoasse, e que se fosse com Deus, pois ele se dava por vencido.
O vaqueiro partiu do campo com grande honra, e com grande prazer; o velho abraçou-o muito, e o fez herdeiro de todos seus bens. E não foi mais vaqueiro.
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O poeta diz neste exemplo que não se deve acusar nem fazer mal a outrem sem razão, porque quando confiam vencer alguma batalha, confiando mais no seu poder que no poder de Deus, perde, porque só Deus é juiz de direito e defensor da razão, e poucas vezes pode o homem impedir a razão; muitas vezes acontece nas batalhas que poucos vençam muitos quando combatem com razão. Ainda diz que nas prosperidades não se conhecem os amigos, mas conhecem-se nas adversidades; e tais como estes não são amigos, mas são lobos ferozes. E porém diz Sêneca: Illa est vera amicicia que nom querit ex rrebus amicy nisy sollam benyvolemçiam.*
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* Tradução do latim: A verdadeira amizade é aquela que não quer dos amigos nada a não ser a bondade.
Este cavaleiro lhe tinha grande inveja, porque era rico, e buscava cada dia maneira em como lhe tomar o que tinha; e foi-se a El-Rey e acusou-o dizendo que quanto ele tinha, tudo furtara a El-Rey, e que do furto era assim rico, dizendo do muito mal, e que era ladrão e homem de má fé: e que este lhe queria provar em um campo com a espada na mão.
El-Rey fez chamar o velho, e mandou-lhe que esse escusasse ou entrasse em campo com ele; e se com ele não se atrevesse de combater, que buscasse outrem que esse com ele combatesse em seu nome.
O cavaleiro era muito valente em armas, e o velho receava de se combater com ele, como o cavaleiro era muito mancebo, e ele era muito velho e sem títulos: e andava rogando parentes e amigos a quem ele já fizera muitas boas obras, e não podia achar quem quisesse tomar a aventura por ele, pois temiam o cavaleiro. Este velho meditava e dizia:
— Muitos ajudei no tempo de suas necessidades, a parentes como amigos, e agora não acho parente, nem amigo! Quando a fortuna é contra o homem, todo os parentes fogem dele, como agora fazem comigo!
E este velho tinha um pastor que lhe guardava seu gado. E o pastor vendo seu senhor andar tão triste, ficou com piedade dele, e perguntou-lhe[5] porque andava com tanta tristeza. O velho lhe contou todo o ocorrido. O pastor, que fica-lhe com dó, lhe disse:
— Meu senhor, eu quero tomar esta aventura em vosso nome.
O velho lhe deu muitos agradecimentos.
No outro dia, do combate, mandou este pastor bem armado ao campo a combater-se com este cavaleiro. Quando o cavaleiro viu este vaqueiro, disse que a ele seria grande vergonha se muito andasse combatendo com este vaqueiro, mas que logo o haveria de vencer: e começou dar com sua espada grandes golpes no vaqueiro. O vaqueiro cobria-se e deixava-o cansar, e algumas vezes esquivava dos golpes do cavaleiro: isto fazia ele bem cansado. O cavaleiro imaginava que o vaqueiro não podia defender-se, e cada vez o desprezava mais. O cavaleiro tomou um lenço, e enxugou o rosto, porque suava. O vaqueiro se achegou a ele, e deu-lhe um golpe no cotovelo do braço direito, que o cavaleiro perdeu a força do braço, e arredou-se para trás; e o vaqueiro outrossim se destacou no campo. O vaqueiro disse ao cavaleiro que se levantasse; o cavaleiro disse que não queria. O vaqueiro, vendo que o cavaleiro não ia se levantar, passou a se mostrar no campo.
Ao combate estava pressente El-Rey com outros muitos barões para o ver; e vendo ambos parados, toda a gente começou a escarnecer. El-Rey mandou-lhes dizer que se combatessem. O mensageiro disse ao vaqueiro que se combatesse ou se desse por vencido; o vaqueiro disse:
— Eu não me dou por vencido, mas eu sou o vencedor, mas não vou atacar o homem que está caído; mas se o cavaleiro quiser levantar-se, eu estou prestes a combater com ele.
Os presentes debochavam. O vaqueiro foi ao cavaleiro e disse muitos impropérios, porque esse não queria levantar; o cavaleiro rogou ao pastor que lhe perdoasse, e que se fosse com Deus, pois ele se dava por vencido.
O vaqueiro partiu do campo com grande honra, e com grande prazer; o velho abraçou-o muito, e o fez herdeiro de todos seus bens. E não foi mais vaqueiro.
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O poeta diz neste exemplo que não se deve acusar nem fazer mal a outrem sem razão, porque quando confiam vencer alguma batalha, confiando mais no seu poder que no poder de Deus, perde, porque só Deus é juiz de direito e defensor da razão, e poucas vezes pode o homem impedir a razão; muitas vezes acontece nas batalhas que poucos vençam muitos quando combatem com razão. Ainda diz que nas prosperidades não se conhecem os amigos, mas conhecem-se nas adversidades; e tais como estes não são amigos, mas são lobos ferozes. E porém diz Sêneca: Illa est vera amicicia que nom querit ex rrebus amicy nisy sollam benyvolemçiam.*
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* Tradução do latim: A verdadeira amizade é aquela que não quer dos amigos nada a não ser a bondade.
Fonte:
O Livro de Esopo - Fabulario Português Medieval. Lisboa: Imprensa Nacional, 1906. Publicado conforme a um manuscrito do seculo XV. Disponível em Domínio Público em https://pt.wikisource.org/wiki/O_Livro_de_Esopo
Conversão do português do século XV para o português atual por J. Feldman
O Livro de Esopo - Fabulario Português Medieval. Lisboa: Imprensa Nacional, 1906. Publicado conforme a um manuscrito do seculo XV. Disponível em Domínio Público em https://pt.wikisource.org/wiki/O_Livro_de_Esopo
Conversão do português do século XV para o português atual por J. Feldman
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