sábado, 14 de outubro de 2023

Márcia Wayna Kambeba (Poemas “Tana Tuiuca*”)

(Tana Tuiuca = “Nossa Terra”, no idioma Kambeba)


Márcia Wayna Kambeba é indígena, do povo Omágua/Kambeba do Alto Solimões (AM). Nasceu na aldeia Belém do Solimões, do povo Tikuna. Mora hoje em Belém (PA) e é mestra em Geografia pela Universidade Federal do Amazonas. Atualmente, está cursando doutorado em Linguística na UFPA. Escritora, poeta, compositora, fotógrafa e ativista. Em sua luta na literatura e na música, aborda, sobretudo, a identidade dos povos indígenas, territorialidade e a questão da mulher nas aldeias. Em 2013, lançou o seu primeiro livro "Ay Kakyri Tama", que reúne textos poéticos e fotografias da vivência do seu povo dentro das cidades.

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ÁRVORE DA VIDA

Vem água, banha nossa alma Kambeba!

No despertar da aurora,
No mito de criação,
Na gota que traz a vida,
De um povo, de uma nação.

Batendo na samaumeira
Caindo feito algodão,
Pro colo do grande rio
Que num sopro de criação,
Dá vida ao “índio” guerreiro,
E a mulher, sua paixão.

Assim para o povo Omágua
A samaumeira tem a função,
De mãe das grandes árvores,
De cura e proteção,
E pelo indígena é cultuada,
Essa gigante, mãe amada,
Na dança nativa, dos povos irmãos.
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AY KAKUYRI TAMA
(Eu Moro na Cidade)


Eu moro na cidade
Esta cidade também é nossa aldeia,
Não apagamos nossa cultura ancestral,
Vem homem branco, vamos dançar nosso ritual.

Nasci na Uka* sagrada,
Na mata por tempos vivi,
Na terra dos povos indígenas,
Sou Wayna, filha da mãe Aracy.

Minha casa era feita de palha,
Simples, na aldeia cresci
Na lembrança que trago agora,
De um lugar que eu nunca esqueci.

Meu canto era bem diferente,
Cantava na língua Tupi,
Hoje, meu canto guerreiro,
Se une aos Kambeba, aos Tembé, aos Guarani.

Hoje, no mundo em que vivo,
Minha selva, em pedra se tornou,
Não tenho a calma de outrora,
Minha rotina também já mudou.

Em convívio com a sociedade,
Minha cara de “índia” não se transformou,
Posso ser quem tu és,
Sem perder a essência que sou,

Mantenho meu ser indígena,
Na minha identidade,
Falando da importância do meu povo,
Mesmo vivendo na cidade.
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CABOCLO RIBEIRINHO

Ao som do banzeiro do rio
As canoas vem, as canoas vão.

É o caboclo ribeirinho,
Que luta pelo seu sustento, pelo seu pão
Ele rema, joga a sua malhadeira
Esperando pegar um bom pirarucu
Ou um grande pirabutão.

Ao som da melodia dos pássaros,
Que voam em sua direção,
Ele segue o seu caminho,
Observando o horizonte,
que está além do alcance de sua mão.
Ao som do banzeiro do rio

As canoas vem, as canoas vão.

É o caboclo ribeirinho,
Que vive a vida com emoção,
Em meio ao verde e à margem do rio,
Cultiva a vida, sem muita preocupação.

Seu convívio em meio a natureza,
Fez dele um grande conhecedor,
Sabe os segredos da fauna e da flora,
Dom de Deus, o nosso criador,
Que se revela no entardecer da aurora.

Ao som do banzeiro do rio
As canoas vem, as canoas vão!
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NATUREZA EM CHAMA

Na terra sagrada
Que Tupã criou,
Do seio materno
Se ouve o clamor,
Da mãe natureza
Sofrendo de dor.

O fogo ardente,
Ao longe se vê,
Queimando a mata
Sem quê, nem porquê,
As folhas se torcem
Querendo viver.

No solo desnudo,
Os restos mortais,
Do verde da vida
E dos animais,
Queimados, sofridos
Em cinzas reais.

Dos gritos agudos
Se ouve o clamor,
Do fruto ardendo
Na chama, no calor,
Ceifado, perdido,
O fogo o calou.

Dos olhos tristes,
Uma lágrima cai,
O lamento de dor
Com o vento se vai,
Varrendo o chão,
Varrendo o chão!
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SER INDÍGENA – SER OMÁGUA

Sou filha da selva, minha fala é Tupi.
Trago em meu peito,
as dores e as alegrias do povo Kambeba
e na alma, a força de reafirmar a
nossa identidade
que há tempo fico esquecida,
diluída na história
Mas hoje, revivo e resgato a chama
ancestral de nossa memória.

Sou Kambeba e existo sim:
No toque de todos os tambores,
na força de todos os arcos,
no sangue derramado que ainda colore
essa terra que é nossa.
Nossa dança guerreira tem começo,
mas não tem fim!
Foi a partir de uma gota d’água
que o sopro da vida
gerou o povo Omágua.
E na dança dos tempos
pajés e curacas*
mantêm a palavra
dos espíritos da mata,
refúgio e morada
do povo cabeça-chata.

Que o nosso canto ecoe pelos ares
como um grito de clamor a Tupã,
em ritos sagrados,
em templos erguidos,
em todas as manhãs!
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TANA KANATA AYETU
(Nossa Luz Radiante)


Tuyuca com sua magia,
Um canto se faz ecoar,
Com a orquestra dos passarinhos
A música paira no ar,
Mas, é preciso sensibilidade,
Para a melodia escutar.

Nas escala musical
O rouxinol vem nos mostrar,
Sua voz graciosa,
Que unida ao sabiá,
Formam uma dupla harmoniosa,
E com suavidade, nossa vida vem alegrar.

E diante de tanta beleza,
Deste solo verde e marrom,
Convivem os povos indígenas
Dividindo os bens em comum,
E com a força da natureza,
Deus mostra sua realeza,
Na presença de Tana Kanata Ayetu.
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UNIÃO DOS POVOS

Nós, povos indígenas,
Habitantes do solo sagrado,
Mesmo sem nossa aldeia,
Somos herdeiros de um passado.

Buscamos manter a cultura,
Vivendo com dignidade,
Exigimos nosso respeito,
Mesmo vivendo na cidade.

Somos parte de uma história,
Temos uma missão a cumprir,
De garantir aos tanu muariry*,
Sua memória, seu porvir.

Vivendo na rytama* do branco,
Minha uka* se modificou,
Mas, a nossa luta pelo respeito,
Essa ainda não terminou.

Pela defesa do que é nosso,
Todos os povos devem se unir,
Relembrando a bravura,
Dos Kambeba, dos Macuxi,
Dos Tembé e dos Kocama,
Dos valentes Tupi Guarani

Assim, os povos da Amazônia,
Em uma grande celebração,
Dançam o orgulho de serem,
Representantes de uma nação,
Com seu canto vem dizer:
Formamos uma aldeia de irmãos.
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* Vocabulário:
Curacas = caciques;
Rytama = aldeia;
Tanu muariry = nossos netos;
Uka = casa.


Fonte: Márcia Kambeba. "Ay kakyri Tama - Eu moro na cidade". Manaus/AM: Grafisa Gráfica e Editora, 2013

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