Ainda hoje existe, junto à confluência de dois rios, um formoso castanheiro, sob cuja sombra eu me sento, sempre que por ali passo, haja ou não haja calor, e isto pela razão muito natural de que, sendo eu criança, costumávamos sentar-nos, minha mãe e eu, à sombra daquela mesma árvore, quando íamos a uma aldeiazinha, que ficava perto da nossa. À pequena distância do castanheiro veem-se ainda as ruínas de um moinho, tais quais eram nos tempos saudosos da minha infância, e a lembrança de minha mãe, do castanheiro e das ruínas, faz-me recordar de um conto que ela me contou, em uma tarde de verão, ao pé da árvore frondosa, sob cuja sombra, graças a Deus, ainda posso sentar-me.
O último moleiro, que habitou o moinho, era conhecido naquelas redondezas pelo apelido de Sêneca; e vejam lá, não vão mudar para o primeiro o acento que pus sobre o segundo “e” deste apelido, pois que o moleiro de quem estou falando, e que minha mãe conheceu e tratou, era tão modesto, que ainda hoje no céu se veria muito aflito e contrariado, se o confundissem com o filósofo cordovez.
Não tinha Sêneca pretensões a filósofo, mas era-o até sem querer, e a isto devia ele indubitavelmente o seu apelido, o qual cuja aplicação não podemos deixar de reconhecer uma filosofia muito profunda; se não, reparem os leitores, e digam-me se não é bem admirável a do povo, que, com a mudança de um simples acento, marca o abismo, que separa o filósofo da natureza do filósofo do estudo! Tinha eu que fazer, se quisesse referir os muitos rasgos de engenho e sã filosofia com que Sêneca ilustrou a sua trabalhosa e modesta vida, e portanto limitar-me-ei a referir um dos que mais cativaram minha pobre mãe, de quem herdei o gosto que tenho pelas recordações da infância.
II
Sêneca não tinha outra família senão um filho de dez anos, nem outras cavalos, senão um burro de vinte. Morreu-lhe a mulher, que era quem ficava no moinho, curando das moagens, enquanto ele andava com o burro, levando e trazendo foles por aldeias e casais, e o pobre Sêneca viu-se então em graves embaraços, porque os seus ganhos lhe não permitiam tomar uma criada, que substituísse sua mulher no moinho, nem um criado, que o substituísse a ele no transporte dos foles.
— E como te hás de tu arranjar agora? – lhe perguntavam os vizinhos, quando o viram viúvo, e sem outro auxílio mais que o do pequeno.
— Não me dá isso cuidado, – respondia Sêneca - não faltará quem me ajude.
— Isso é bom de dizer, mas quem te há de ajudar?
— Quem?... A Necessidade.
Os vizinhos punham-se a rir do bom humor de Sêneca, porém sem compreender o que ele queria dizer na sua necessidade.
Uma certa manhã aparelhou Sêneca o burrico, pôs em cima dele um saco que continha quatro alqueires de farinha, e chamando o pequeno, disse-lhe:
— Rapaz, toma o burro pela arreata, e leva-me esta carga à padaria de Somorrostro.
O pequeno desatou a chorar.
— Que é lá isso, homem? – perguntou-lhe o pai.
— Que há de ser de mim pelo caminho, se o burro cair, ou se espojar (arriar) no chão! – exclamou o rapazinho, sem cessar de chorar.
— Não te dê isso cuidado, disse Sêneca; se tal acontecer, não faltará quem te ajude a levantar o burro.
— E quem é que me há de ajudar nessas pastagens tão solitárias, que não se encontra por elas viva alma?!
— Quem? A Necessidade. Se o burro cair, ou se deitar no chão e se não puder erguer, chama pela Necessidade, e verás como logo acode em teu auxílio.
— Está bem. - disse o pequeno, limpando as lágrimas com a manga da jaqueta, e pegando na corda do burro, tomou pela margem do rio, caminho de Somorrostro, que distava uma légua do moinho.
— Ora, ora, ora! Sempre este Sêneca tem coisas!... – diziam os vizinhos, ao verem o rapazinho com o burro atrás de si. Com que então a Necessidade, com cujo auxílio contava Sêneca, para levar e trazer os foles, era essa pobre criança?!... E o pequeno, quem é que o há de ajudar?
III
Seguia o filho de Sêneca com o seu burro no cabresto ao longo dos carvalhais, que sombreiam as margens do rio que corre pelo vale profundo, que separa Somorrostro de Galdámez e Sopuerta quando, ao chegar a um pequeno areal muito suave, fez o burro esta reflexão:
— Ai! que bela cama para eu descansar um pouco!... e então, se eu pudesse soltar esta maldita carga, que me vai amolando as costelas!
E de repente, antes que o pequeno olhasse para trás, estirou-se ao comprido no meio do chão.
— Ai! minha mãe!... – exclamou o rapazinho aterrado; porque convém saber que na Espanha, e com especialidade na Biscaia, não só aos pequenos como também aos grandes, o primeiro auxílio que lhes ocorre invocar nas maiores aflições, é sempre o de sua mãe, ainda mesmo que já a tenham no céu.
E pegando numa vergasta começou a açoitar o burro sem dor nem piedade, porém o animal, por mais esforços que fazia para se levantar, não o podia conseguir.
Estava já o pequeno quase a chorar, quando se lembrou do conselho, que o pai lhe havia dado e, em vez de dar largas ao pranto, começou a gritar:
— Necessidade! Necessidade! Faz-me o favor de vir aqui ajudar-me a erguer este burro?!
O pequeno olhava para todos os lados, a ver se aparecia a Necessidade, mas não via ninguém. Já cansado de chamar e de esperar pela Necessidade, desatou o arrocho*, que prendia o saco ao aparelho do burro, e aliviou-o da carga. Em seguida deu-lhe uma vergastada e o animal ergueu-se de um salto.
Então o pequeno tomou o burro pelo cabresto, levou-o para junto de uma ribanceira, e rolando o saco até lá, pôde, a muito custo, colocá-lo em cima do animal; apertou-o bem com o arrocho, montou sobre a carga, atirou uma pancada ao burro, e prosseguiu no seu caminho, mais alegre que umas páscoas.
Passada uma hora chegava o rapaz ao moinho, cantando e fazendo trotar o seu ginete.
— Olá, pequeno, - disse-lhe o pai, apenas o avistou - como foi a tua viagem?
— Muito mal, meu pai.
— Então o que te aconteceu, homem?
— Deitou-se o burro no caminho, e, por mais pancadas que lhe dei, não foi capaz de se levantar.
— E então o que fizeste?
— Desprendi a carga, levei o burro para o pé de uma ribanceira, fui rolando o saco até lá...
— Bem, bem, já percebo. Quer isso dizer que chamaste pela Necessidade, não é assim?
— Chamei, chamei. Fartei-me até de chamar, mas não apareceu...
— Rapaz, disse Sêneca, vê como tu te enganas. Quem te levantou e carregou o burro não foi senão a Necessidade.
Tinha razão Sêneca, e também eu a tenho para dizer aqui que a necessidade presta tanto auxílio e tamanhos benefícios ao homem, que não sei como ainda lhe não deram a cruz de beneficência.
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* VOCABULÁRIO
Arrocho = pedaço de pau curto e torto com que se apertam e torcem as cordas para amarrar fardos, cargas etc.
Fonte:
Antonio de Trueba. Contos escolhidos. Publicados postumamente originalmente em 1927. Disponível em Domínio Público.
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