terça-feira, 24 de outubro de 2023

Contos das Mil e Uma Noites (História de Bulukya)


Havia certa vez no reino de Israel um soberano muito sábio que, no seu leito de morte, recomendou a seu filho e herdeiro, Bulukya, fazer um inventário completo de tudo que o palácio continha. Após a morte do pai, Bulukya, já rei, seguiu a sugestão paterna e, ao abrir uma certa caixa de ouro, encontrou nela um pergaminho no qual leu: “Quem deseja ser senhor e dono dos homens, gênios, pássaros e animais, precisa apenas usar o anel que o profeta Soleiman tem no dedo, na Ilha dos Sete Mares onde está sepultado. É o anel que ornava o dedo de Adão, pai dos homens, no Paraíso. Para atingir a Ilha dos Sete Mares, não adiantam navios. Quem quer chegar lá deve localizar o vegetal mágico cujo sumo, esfregado na planta dos pés, torna o homem capaz de andar sobre a superfície do mar. Essa planta só cresce no reino subterrâneo da rainha Yamlikha.” 

Após ler esse pergaminho, o rei reuniu os sacerdotes, mágicos e sábios de Israel e perguntou-lhes se havia entre eles quem conseguiria guiá-lo até o reino da rainha Yamlikha. Todos apontaram para Affan, que possuía as chaves da magia, astronomia, alquimia e feitiçaria. Perguntou-Ihe o rei: 

“Ó Affan, és mesmo capaz de guiar-me até a terra dessa rainha escondida?” 

“Sou “ respondeu Affan. 

Imediatamente, os dois cobriram-se com capas de peregrinos e foram até o deserto. Num determinado ponto, disse Affan: “Chegamos.” 

Desenhou um círculo na areia, fez as invocações dos rituais, e logo a terra se abriu e revelou um caminho que ia descendo. Seguindo o caminho, os dois chegaram a essa lagoa que vês aí, ó Hassib. Recebi-os com minha cortesia costumeira. Quando me expuseram o objetivo de sua visita, conduzi-os ao jardim onde as plantas desataram a falar, cada uma na sua língua própria, exaltando seus vários poderes.

No meio dessa sinfonia perfumada, ouvimos uma planta cantar em harmonia com a brisa que a acariciava: “Aquele que esfregar os pés com meu sumo maravilhoso, poderá andar sem se molhar sobre todos os mares de Alá.” 

- Esta é a planta que procurais, disse a meus visitantes. E deixei Affan colher todas as flores que quisesse, esmagá-las e recolher o suco num grande frasco que eu lhe dera. Depois, perguntei a Affan e ao rei por que queriam atravessar os mares. Contaram-me. 

Disse-lhes: “Não sabeis que é impossível a qualquer mortal depois de Soleiman possuir aquele anel? Acreditai em mim. Desisti desse projeto e colhei, antes, as plantas que asseguram uma juventude eterna a quem as comer.”

Mas não consegui convencê-los. Despediram-se de mim e partiram. Tomaram o caminho da ilha que fica do outro lado dos sete mares. Quando chegaram às margens do primeiro mar, esfregaram as solas dos pés com o suco que levavam. Depois, entraram com precaução na água; mas quando se deram conta de que podiam caminhar sobre a água mais facilmente que sobre a terra, adquiriram confiança e andaram mais rapidamente. 

No quarto dia, chegaram a uma ilha que pensaram ser o paraíso de tão bela que era com suas flores, rouxinóis e árvores. Passaram naquela ilha o dia todo e, à noite, subiram numa árvore para dormir. Mas antes de fechar os olhos, sentiram a ilha tremer e viram um monstro desmedido chegar com as ondas, segurando nas mandíbulas uma pedra preciosa que iluminava como um archote. Atrás dele, vinha uma multidão de outros monstros iguais, segurando também na boca pedras luminosas. Ao mesmo tempo, do interior da ilha surgiram tantos leões, tigres, leopardos e outros animais selvagens que só Alá poderia avaliar-lhes o número. Os monstros do mar e os monstros da terra encontraram-se na praia e passaram a noite conversando.

Com os primeiros raios do dia, separaram-se e voltaram cada qual para sua morada. Bulukya e Affan, que não haviam conseguido fechar os olhos toda a noite, desceram rapidamente da árvore, correram até a praia, esfregaram os pés com o suco mágico e entraram no segundo mar. Atravessaram-no sem problemas até que chegaram a uma ilha coberta de árvores frutíferas, e cujos frutos tinham uma particularidade inédita: cresciam na árvore já preparados com açúcar. 

Os  dois viajantes ficaram na ilha sete dias, para deleite do jovem soberano que gostava excessivamente de frutas cristalizadas. Depois, entraram no terceiro mar, que atravessaram em quatro dias e quatro noites. No quinto mar, chegaram a uma ilha cujas montanhas eram de cristal com grandes veios de ouro. Suas árvores tinham flores amarelas lustrosas. De noite, cintilavam como estrelas. Disse Affan a Bulukya: 

“Esta é a Ilha das Flores de Ouro. Quando essas flores murcham e caem das árvores, viram pó e se transformam em ouro. Esta ilha é um pedaço do sol que caiu na terra nos tempos antigos.” 

No sexto mar, Affan e Bulukya passaram por outra ilha coberta de árvores. Mas lá as frutas das árvores eram cabeças humanas, umas rindo, outras chorando. Fugiram com horror desse espetáculo e entraram no sétimo mar. Era um mar imenso. Dias e noites, eles andaram sem descansar, comendo peixes crus apanhados ao acaso e aguentando  a sede. Finalmente, avistaram uma ilha que esperavam ser a que procuravam. Entraram nela e acharam-na cheia de árvores carregadas de frutos. Bulukya estendia a mão para apanhar uma maçã, quando uma voz terrível saiu de dentro da árvore, gritando: “Se tocares nesta fruta, serás cortado em pedaços.” Ao mesmo tempo, um gigante apareceu-lhes, ao qual Bulukya, aterrorizado, disse: 

“Ó chefe dos gigantes, estamos morrendo de fome e sede. Por que nos impedes de tocar nessas maçãs?” 

- Como ousas alegar que ignoras o motivo, ó rei sem memória? Esqueces-te que Adão, o pai de tua raça, rebelou-se contra Deus e comeu a fruta proibida? Desde então, tem sido minha missão guardar esta árvore e matar quem tenta apanhar-lhe as frutas. Procura teu alimento alhures.”

Deixaram-no e começaram a procurar o túmulo de Soleiman. Depois de terem vagueado na ilha um dia ou dois, chegaram a uma colina de âmbar nos flancos da qual abria-se uma gruta magnífica cujo teto e paredes eram de diamantes. Estava iluminada dia e noite. Entraram nela e foram caminhando, e à medida que avançavam, a claridade aumentava e a abóbada alargava-se. De repente, chegaram a uma sala imensa cavada no diamante. No meio da sala, havia uma cama de ouro maciço, sobre a qual jazia o corpo de Soleiman Ibn Daud. 

O anel mágico estava no dedo anular da mão direita. Affan aproximou-se do trono e pediu a Bulukya que repetisse as palavras esotéricas que lhe ensinara para que o anel deslizasse do dedo real. Mas Bulukya equivocou-se e recitou as palavras na ordem inversa. O erro foi fatal para o sábio Affan. Uma gota de diamante líquido caiu sobre ele e o queimou, reduzindo-o a um pouco de cinza. Bulukya fugiu daquela gruta e correu até a praia, onde quis passar o suco mágico nos pés para iniciar a marcha de volta. Mas lembrou-se de que o frasco tinha sido queimado com Affan. Teria morrido lá, abandonado e desesperado, rememorando amargamente os meus conselhos, não fosse pela aparição repentina de um exército de Afarit, Marids e Ghuls que dominavam aquela ilha e a inspecionavam naquele momento. 

Bulukya solicitou-lhes que o ajudassem a voltar para seu reino. Mas eles só podiam levá-lo até seu próprio rei, o poderoso Sakhr, senhor da Terra-Branca onde outrora reinou Chedad Ibn Aad. Bulukya aceitou e, num piscar dos olhos, foi levado por cima de mares e montanhas até o palácio do rei Sakhr. 

O rei o recebeu com todos os refinamentos da hospitalidade árabe e, após contar-lhe a história de seu povo, mandou levá-lo até a entrada de seu país. E o anel de Soleiman, que permite a quem o possuir dominar os mundos e adquirir a imortalidade, continua na Ilha dos Sete Mares. E lá ficará, protegido pelos gênios, até o fim dos tempos.

Fonte: As Mil e uma noites. (tradução de Mansour Chalita). Publicadas originalmente desde o século IX. Disponível em Domínio Público.

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