Mestre Gaudêncio curandeiro, homem sabido, explicou uma noite aos amigos que a terra se move, é redonda e fica longe do sol umas cem léguas.
— Já me disseram isso, murmurou Cesária.
Das Dores arregalou os olhos, seu Libório espichou o beiço e deu um assobio de admiração. O cego preto Firmino achou a distância exagerada e sorriu, incrédulo:
— Conversa, mestre Gaudêncio. Quem mediu? Das telhas para cima ninguém vai. Isso é emboança de livro, papel aguenta muita lorota. Cem léguas? Não embarco em canoa furada não, mestre Gaudêncio.
— Ora, seu Firmino! exclamou Alexandre. Para que diz isso? Embarca. Todos nós embarcamos, é da natureza do homem embarcar em canoa furada. Tudo neste mundo é canoa furada, seu Firmino. E a gente embarca. Nascemos para embarcar. Um dia arreamos, entregamos o couro às varas e, como temos religião, vamos para o céu, que é talvez a última canoa, Deus me perdoe. Embarca, seu Firmino.
Levantou-se, foi acender o cigarro ao candeeiro de folha, voltou à rede.
— Embarca. E por falar em canoa furada, vou contar aos senhores o que me aconteceu numa, há vinte anos. Canoa verdadeira, seu Firmino, de pau, não dessas que vossemecê puxou para contrariar mestre Gaudêncio. Ora muito bem. Numa das minhas viagens rolei uns meses por Macururé, levando boiadas para a Bahia. Já andaram por essas bandas? Tenho aquilo de cor e salteado. Ganhei uns cobres, mandei fazer roupa no alfaiate, comprei um corte de pano fino e um frasco de cheiro para Cesária. Demorei-me na capital uma semana. Aí fiz tenção de vender a fazenda e os cacarecos, mudar-me, dar boa vida à pobre mulher, que trabalhava no pesado, ir com ela aos teatros e rodar nos bondes. Refletindo, afastei do pensamento essas bobagens. Matuto, quando sai do mato, perde o jeito. Quem é do chão não se trepa. Ninguém me conhecia na cidade cheia como um ovo. A propósito, sabem que um ovo custa lá cinco tostões? Calculem. Não me aprumo nessas ruas grandes, onde gente da nossa marca dá topadas no calçamento liso e os homens passam uns pelos outros calados, como se não se enxergassem. Nunca vi tanta falta de educação. Vossemecê mora numa casa dois ou três anos e os vizinhos nem sabem o seu nome.
Nos meus pastos a coisa era diferente. Lá eu tinha prestígio: votava com o governo, hospedava o intendente, não pagava imposto e tirava presos da cadeia, no júri. Vivia de grande. E quando aparecia na feira, o cavalo em pisada baixa, riscando nas portas, os arreios de prata alumiando, o comandante do destacamento levava a mão ao boné e me perguntava pela família. Tenho tocado nisso algumas vezes, e os amigos vão pensar que estou aqui arrotando importância. É engano, detesto pabulagem. Na capital só viam em mim um sujeito que vendia gado. Mas se quiserem saber a minha fama no sertão, deem um salto à ribeira do Navio e falem no major Alexandre. Cinquenta léguas em redor, de vante a ré, todo o bichinho dará notícia das minhas estrepolias. A história da onça, a do bode, o estribo de prata, este olho torto, que ficou muitas horas espetado num espinho, roído pelas formigas, circulam como dinheiro de cobre, tudo exagerado. É o que me aborrece, não gosto de exageros. Quero que digam só o que eu fiz. Esse negócio da canoa entrou num folheto e hoje se canta na viola, mas com tantos acréscimos que, francamente, não me responsabilizo pelo que escreveram. Exatamente o que sucedeu com o marquesão. Lembram-se? Dr. Silva pegou o marquesão de jaqueira e fez dele o que entendeu, encheu a casa de cortiços. Não era o meu marquesão, que só deu quatro pés de jaca. O caso da canoa também foi muito aumentado. É bom prevenir. Se vossemecês ouvirem falar nele em cantoria, fiquem sabendo que as nove-horas são astúcias do poeta. O acontecido foi coisa muito curta, que eu podia embrulhar num instante. E se converso demais, é porque a gente precisa matar tempo, não sapecar tudo logo de uma vez. Se não fosse assim, a história perdia a graça. Por isso espichei diante dos amigos a cidade grande, os teatros, os bondes, os ovos e a roupa nova, o corte de pano fino e o frasco de cheiro que ofereci a Cesária. Ela vestiu o pano fino e botou o frasco de cheiro no lenço, mas isto não adianta. Sem cheiro e sem pano, a história da canoa seria a mesma, um pouco mais encolhida. Bem, como disse aos amigos, demorei na Bahia, com desejo de arranjar-me por lá. Quando vi que a intenção era besteira, decidi voltar para casa, amansar brabo, arrematar caixas de segredo em leilão e animar o cordão azul e o cordão vermelho, no pastoril, que foi para isto que nasci. Sim senhores. Selei o cavalo e atirei-me para o norte. Caminhei, caminhei, cheguei ao S. Francisco. Seu Firmino andou no S. Francisco? Não andou. É o maior rio do mundo. Não se sabe onde começa, nem onde acaba, mas, na opinião dos entendidos, tem umas cem léguas de comprimento. Quer dizer que, se em vez de correr por cima da terra, ele corresse para os ares, apagava o sol, não é verdade, mestre Gaudêncio? Nunca vi tanta água junta, meus amigos. É um mar: engole o Ipanema em tempo de cheia e pede mais. Está sempre com sede. Não há rio com semelhante largura. Vossemecês pisam na beira dele, olham para a outra banda, avistam um boi e pensam que é um cabrito. Por aí podem imaginar aquele despotismo. Pois eu ia morrendo afogado no S. Francisco, vinte anos atrás. Afogado não digo que morresse, porque enfim dou umas braçadas, mas, se não me afogasse, era certo estrepar-me no dente da piranha, o bicho mais infeliz que Deus fabricou. Já viram piranha? Se não viram, perdem pouco. É uma criatura que não tem serventia e morde como cachorro doido. Onde há sangue aparece um magote delas. Entra um vivente na água e em cinco minutos deixa lá o esqueleto. Percebem? Topei o S. Francisco empanzinado, soprando. Tinha lambido as plantações de arroz, comido as ribanceiras, e a escuma subia, ia cobrindo as catingueiras e as baraúnas.
Viajei dois dias para as cabeceiras, procurando passagem. E, ali pelas alturas de Propriá, vi uma canoa cheia de gente que botava para as Alagoas.
— “Seu moço, perguntei ao remador, essa gangorra é segura?” E o homem respondeu, de cara enferrujada:
— “Segura ela é. Mas garantir que chegue ao outro lado não garanto. Se tem coragem de se arriscar, entre para dentro, que ainda cabe um.”
Fiquei embuchado, com uma resposta atravessada na goela, pois acho desaforo alguém pôr em dúvida a minha disposição. Que, para usar de franqueza, o que faço direito é correr boi no campo. Mergulhar e brigar com peixe não é ocupação de gente. Desarreei o animal, amarrei o cabresto na popa da canoa, arrumei os picuás e embarquei. O cavalo nadou, três mulheres velhas puxaram os rosários e navegamos em paz até o meio do rio. Aí, quando mal nos precatávamos, o diabo do cocho se furou e em poucos minutos os meus troços estavam boiando. Foi um Deus nos acuda: os homens perderam a fala, as mulheres soltaram os rosários e botaram as mãos na cabeça, numa latomia, numa choradeira dos pecados.
— “Então, seu mestre, perguntei ao canoeiro, o senhor não disse que esta geringonça era segura?”
E o desgraçado respondeu:
“Segura ela era. Mas, como o senhor está vendo, agora não é.”
— “Que é que vamos fazer?” gritei desadorado.
— “Sei lá, disse o homem. Quem tiver muque puxe por ele e veja se alcança terra, o que acho difícil.”
A minha vontade foi dar uns tabefes no sem-vergonha, mas não havia tempo, os amigos veem que não havia tempo.
— “Está bem, tornei. Nós ajustaremos contas depois. Se escaparmos, será na banda alagoana. Se formos para o fundo, no céu ou no inferno a gente se encontra e você me contará isso direitinho, seu filho de uma égua.”
Acocorei-me e pus-me a esgotar aquela miséria com o chapéu. Os viajantes machos fizeram o mesmo e as mulheres dos rosários, chamadas à ordem, agarraram cuias e caíram no trabalho. Tempo perdido. Gastávamos forças e o traste cada vez mais se enchia. Desanimei, ia entregar os pontos quando me veio de repente uma ideia, a ideia mais feliz que Deus me deu. Lembrei-me de que tinha no bolso da carona um formão e um martelo, comprados para o serviço da fazenda. Muito bem. Veio-me a ideia, dei um salto, fui à carona, peguei o formão e o martelo, fiz um rombo no casco da canoa. Os companheiros me olhavam espantados, julgando talvez que eu estivesse doido. Mas o meu juízo funcionava perfeitamente. Imaginam o que sucedeu?
A embarcação se esvaziou em poucos minutos, continuou a viagem e chegou sem novidade a Porto-Real-do-Colégio. Natural. A água entrava por um buraco e saía por outro. Compreenderam? Uma coisa muito simples, mas se eu não tivesse pensado nisso, alguns pais de família e três devotas teriam acabado no bucho da piranha. Desembarcamos na terra alagoana. Aí chamei de parte o canoeiro, sem raiva, e dei-lhe meia dúzia de trompaços, que o prometido é devido. Ele se defendeu (era um tipo de sangue no olho) e propôs camaradagem:
— “Seu Alexandre, vamos deixar de besteira. O senhor é um homem.”
Ficamos amigos, fomos para a bodega e passamos uma noite na prosa, bebendo cachaça.
Fonte: Graciliano Ramos. Histórias de Alexandre. Publicado originalmente em 1944. Disponível em Domínio Público.
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