sexta-feira, 6 de outubro de 2023

A. A. de Assis (Artes de meninos)

Todos fazem suas artes, eu também já fiz as minhas. Porém primeiro preciso falar do Seu Lino, o olhador, vigiador, cuidador dos meninos arteiros de São Fidélis lá pelos anos 1940. Para começar, ele só aparecia em público vestido de terno e gravata, em respeito ao cargo que exercia. “Nobless oblige” (a nobreza da função exige indumentária adequada), ele explicava, enfatizando a lição que lhe ensinara o professor Expedito.

Um homem doce de coração, contudo rigoroso no cumprimento das suas responsabilidades. Recebia um salário para tomar conta da meninada durante oito horas por dia, mas quem disse que ele olhava para o relógio? Lá estava cedinho na porta das escolas. Lá estava de noite na porta do cinema ou do circo. Onde pudesse haver crianças, lá estava Seu Lino de terno e gravata, zelosamente cuidante para que não cometessem nenhuma travessura grave.

Vai daí que numa certa manhã um passarinho dedo-duro lhe indicou a direção da beira-rio. Lá foi ele. Atrás do Grupo Escolar havia um arvoredo, atrás do qual o rio formava uma enseada. Seu Lino caminhou passo a passo no meio das árvores, chegou bem pertinho e deu a ordem: “Fiquem todos onde estão”.

Estávamos nadando, meia dúzia de garotos, na maior farra, eu no meio deles. E o mais dramático: pelados, nuzinhos-nuzinhos. Tínhamos gazeado as aulas para curtir o banho de rio. Seu Lino, provavelmente rindo por dentro, catou nossos uniformes escolares deixados na grama e levou ao gabinete da diretora do Grupo.

Ela de imediato mandou chamar os pais. Só nos devolveria a roupa depois de passar um bom sermão na presença dos responsáveis. E a gente lá dentro d’água, sem poder sair devido à peladez.  

Por sorte meu pai não estava em casa na hora, então meu irmão Gomes, dez anos mais velho que eu, foi encarregado de ir me buscar e garantir que eu receberia uma reprimenda à altura e não voltaria a praticar traquinagens de tal monta.

No caminho meu irmão foi me passando uma lição de moral, alertando para a necessidade de criar juízo e coisa e tal. Em casa contou a história pra mãe, porém combinaram de não comentar nada com o pai, receando que ele pudesse exagerar no castigo. A mãe, após o discurso de praxe, proferiu a sentença, aliás bem maneira, considerando a importância da arte: uma semana sem ler gibi e sem jogar futebol de botão.

Aceitei a pena com humildade, todavia quis saber por que estavam levando tão a sério o fato de alguns meninos estarem tomando banho de rio pelados.

“E quem foi que falou de banho pelado?” – disse a mãe, concluindo: “Claro que isso também não é um bom costume, e você já tem idade suficiente para entender que as pessoas não podem ficar por aí exibindo suas intimidades. Mas no caso em foco o pecado não está na nudez; está no ato de matar aulas, ainda mais em vésperas de provas. Entendeu, Pafúncio?

(Crônica publicada em 28 de setembro de 2023, no Jornal do Povo)

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