Dona Ana seguia convalescente, mas já conseguia levantar sozinha da cama e ir tomar o seu mate na varanda, como de costume. Queria voltar aos deveres de casa, mas a filha não permitia. E convocou Amélia para ajudar nas tarefas domésticas e nos cuidados com a mãe que, apesar de disfarçar, estava muito fraca. E por certo precisaria de um longo período de descanso para atingir a recuperação plena.
- Obrigada, Amélia, por deixar os afazeres de teu lar, para nos servir. - disse dona Ana.
- Eu que agradeço em poder ser útil. A senhora merece. E nem precisa acrescentar nada ao salário do Juca: estou aqui por gosto. E sobra tempo para cuidar da minha casinha e do meu marido. Vou juntar as roupas sujas para lavar. Qualquer coisa, chama.
- Obrigada, querida!
- E eu vou preparar o almoço. - disse Isadora, um tanto sonolenta depois de passar a noite em claro lendo sobre as aventuras de Madame Bovary.
– Pensando bem, o almoço pode atrasar um pouquinho. Mãe, o que a senhora pensa sobre o livro de Gustave Flaubert?
- A história não está mais fresca em minha memória. Li quando era muito nova. Lembro que o livro tem uma narrativa lenta, porém o texto é muito bem escrito, mas foi o fato de se tratar de uma obra proibida que nos incentivava a continuar a leitura. Eu e Leandra não entendíamos o comportamento de Emma. Parecia uma mulher de sorte. Arranjou um marido que a tratava bem e que não lhe deixava faltar nada. Era saudável, tinha uma vida sossegada. Mas com o tempo entendi que era justamente a vida perfeita que a levou a tanta insensatez
- Não terminei a leitura. Fui em busca de uma coisa e encontrei outra.
- Como assim, filha?
- Pensei que se tratava de uma traição motivada por amor.
- Foi por tédio. É uma história sobre a monotonia, sobre a linearidade da vida perfeita. E sobre a reação humana em relação a ela.
- Não julgas a personagem?
- Estou com receio de julgar teus pensamentos... O porquê do repentino interesse nessa obra...
- Bem sabes o quanto sou curiosa...
- Não me enrola. Nada de aprontar por aí. És uma jovem comprometida. Sei do teu ralo interesse em relação ao Fábio, mas ele vai cuidar bem de ti. Mas voltando aos livros, amo vários, mas prefiro a história da valente Ana Terra. “Toda vez que me acontece algo importante, está ventando”, dizia ela. Toda saga da grande obra de Veríssimo, fala de mulheres nascidas para trabalhar, calar, chorar e, principalmente, esperar...
- Prometeste contar mais sobre a biblioteca de tua infância e juventude. Por que só restaram aqueles livros guardados na dispensa?
- Está bem. Vou te contar. Mas por favor, não te exaltes ao tomar conhecimento da verdade. Logo após a morte dos teus avós, viemos para cá, e teu pai descobriu a biblioteca. Mandou amontoar os livros numa caçamba e despejá-los nos fundos da casa. E ali, tocou fogo em tudo.
- A senhora tentou impedir? - perguntou Isadora, em estado de choque.
- Ao me aproximar da janela do quarto as chamas já estavam acesas. Mas isso já foi há muito tempo.
- Não há tempo capaz de apagar um trauma assim...
- Sabendo que teu pai não gostava de livros, já havia escolhido alguns e os trouxe em meio ao enxoval. E depois, os guardei na dispensa. E lá estão até hoje.
Isadora beija carinhosamente a face triste da mãe. E vai preparar o almoço controlando a vontade de chorar. De chorar por sua mãe, pela biblioteca queimada, por Madame Bovary, que quanto mais buscava pela felicidade, mais se perdia e, por ela mesma que em instantes receberia o noivo indesejado para o almoço.
Fábio chegou junto do sogro, e foi logo ao encontro da noiva. Eles se cumprimentam como se fossem dois estranhos.
Amélia ajudou a servir a mesa e não passou despercebida por senhor Antônio e sua maledicência.
O velho estava apressado em dar uma notícia, mas não se conteve em fazer certas observações. Bonita desse jeito, vestida feito uma “muié”, sem vergonha, que gosta de se “amostrar”, sei não... A cabeça do Juca deve ter mais chifres do que piolho em cabeça de mendigo. Pensou ele sobre a moça.
- Bamo, Fábio, dá logo a boa nova. - disse o velho quebrando o silêncio de forma brusca.
- Claro, meu sogro. Querida Isa, passamos na igreja, falamos com o padre Orestes, e já deixamos marcada a data do casamento.
- Sem antes falar comigo?
- Calma, minha filha. - disse dona Ana.
- Ué! Tão noivo pra que, pra casar, não é? - falou o pai, de boca cheia.
Isadora não se conteve. Pediu licença, pegou o Costelinha no colo e foi sentar debaixo do seu Ipê Amarelo.
- “Muié braba, meu genro... Vai ter que ser domada.
Dona Ana e Amélia se entreolharam com o coração cheio de pesar.
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Texto enviado pela autora
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