domingo, 29 de outubro de 2023

Maria Amália Vaz de Carvalho (O Tio Sebastião)

I
Não havia coisa que mais alegrasse o tio Sebastião, um velhinho que conheci em uma aldeia perto de Braga, do que falarem-lhe no filho que estudava em Coimbra.

Sorriam-se-lhe os olhos, e um contentamento intraduzível espelhava-se-lhe no rosto.

Quando lhe elogiavam o caráter, o talento, a bondade e a aplicação do rapaz, ele fingia que não acreditava, dizia que não era tanto assim... e repetia:

— Favores, meu amigo, favores...

Mas lá no íntimo agradecia aquilo tudo, e tinha vontade de apertar nos braços a pessoa que falava com tamanho louvor do filho estremecido.

Quando ele descobria o seu fraco, era quando lhe elogiavam na presença outro rapaz, outro estudante.

— Sim, sim, mas como o meu! Não é porque o rapaz seja meu filho, mas disse-me o prior, e olhe que o prior não é nenhum tolo, pois disse-me o prior que o meu pequeno era o melhor estudante que andava nas aulas de Braga, que lhe tinham dito os próprios mestres. Aquilo tem uma memória! E então ler! Às vezes estava horas e horas a ouvi-lo, fazia gosto. O talho da letra já foi melhor, isso foi, mas o prior, a quem eu disse isto, consolou-me, dizendo-me que todos os doutores tinham má letra. Assim será, mas as primeiras cartas que o pequeno me escreveu, quando foi para o estudo, podem mostrar-se... Quer você ver uma dessas cartas?...

Toda a gente da aldeia gostava do velho, e não havia uma só pessoa que para o lisonjear, ao encontra-lo, lhe não perguntasse pelo filho.

— Obrigado, vai bem! – e com um sorriso doce, enternecido e caridoso envolvia o da pergunta.

O tempo das férias, sobretudo as do Natal, que é quando se mata o porco, e se fazem filhós (bolo de farinha e ovos), e se conversa animadamente em volta da lareira, era ansiosa e impacientemente esperado pelo velho; todas as noites ia ao baú, que tinha à cabeceira da cama, e pondo uma cruz no dia que findara, dizia jubiloso:

— É de menos um!

Na véspera da chegada do filho, era uma azáfama, um revolver as velhas arcas de onde se exala um forte cheiro de maçãs camoezas, e um andar tudo numa poeira naquela casa.

— Esta cama não tem bastante roupa, Joanna, dizia para a criada; vá buscar mais um cobertor!

E alisava a colcha, endireitando a fronha do travesseirinho, e repetindo:

— O estudante é muito mimoso, e depois faz frio que não é brincadeira!

Ia à cozinha, era preciso comprar isto e mais aquilo. Examinava os armários, passava revista aos frascos das compotas, e punha de banda as garrafas de vinho antigo.

— Não que ele gosta do que é bom!

Na rua não esperava que lhe perguntassem pelo filho:

— Chega amanhã, chega amanhã!

As ansiedades eram no dia da chegada. Vinha para a porta, esfregando as mãos, rutilante de prazer. Todo o pobre que passava tinha uma esmola, todo o transeunte um cumprimento benévolo e afável. Os vizinhos exploravam aquele grandíssimo e sagrado afeto.

— Com que então é hoje, hein?

— É verdade, pelo menos assim o espero. Queira Deus que lhe não suceda alguma no caminho. Isto de rapazes...

— Há rapazes e rapazes. O seu é uma joia...

— Sim, sim, mas há más companhias...

— Qual! E então o juízo e o talento para que servem? Eu tenho ido com ele algumas vezes a Braga, e bem vejo as pessoas com quem o seu menino se dá. É tudo gente da melhor. E não lhe fazem favor. Todos me gabam a sabedoria do seu estudante, todos...

— E eu que o diga. – afirmava outro.

— Então porque não entram? Vejam se apanham uma tosse! Está muito frio. Ó Joanna, traze duas tigelas daquele vinho que sabes, e não te esqueças de trazer uma talhada de presunto. Vão beber pinga de substância! Este é do tal que faz peito, hê, hê, hê!

— Com que então, — diziam os biltres — á saúde do sr. doutor!

— Que Deus fará! – Tornava o bom do lavrador, com as lágrimas nos olhos. – Mas eu não tenho tigela, traze-me também uma, que quero beber à saúde aqui dos amigos.

E bebia de um trago, valentemente, com alma.

O estudante às vezes, na vinda de Coimbra, chegava a Braga, onde tinha amigos e condiscípulos antigos, e ficava mais um dia. De forma que o velho esperava, e ia deitar-se cheio de cuidados; não pregava olho toda a noite.

A Joanna, que bebera o mesmo leite que Sebastião, ouvindo-o gemer e suspirar, erguia-se, e perguntava-lhe:

— Tem alguma coisa, sô Sebastião?

— Que é? O estudante chegou? Já me levanto, traze-me a candeia!

E era preciso que a velha lhe explicasse tudo, e que o embalasse carinhosamente com aquelas doces palavras com que as mães adormecem os filhos rabugentos.
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O tio Sebastião, quando casou, tinha cinquenta anos, uns cinquenta anos limpos e rijos como não há aí muitos trinta.

Enquanto a mãe foi viva, não lhe quis dar nora.

— Nada! – dizia às pessoas que lhe aconselhavam o casamento, nada! – Que lucro eu com isso? A velhinha podia não se dar com o gênio da mulher que eu trouxesse para casa e isso era o inferno para mim. Quem manda naquela casa é minha mãe, e há de mandar em quanto for viva. Ela ralha, ela grita, ela dá por paus e por pedras, por dá cá aquela palha. Deixa-a! Quando rabuja demais, saio de casa, e a Joanna que a ature! São mulheres, e lá se entendem. Se eu me casasse, tinha de acudir por uma ou por outra... Nada! boi solto lambe-se todo...

E ainda solteiro fechou os olhos da mãe que lhe morreu nos braços.

Joanna ficou senhora de tudo. Era ela que olhava pela casa, que dava ordens, a verdadeira dona da casa, enfim. Aquele novo modo de vida, porém, começou a pesar-lhe, entrou a ter saudades do antigo jugo, queria receber ordens e não dá-las; a domesticidade era para ela um hábito de que não havia de desacostuma-la.

— Sabe o que mais, sô Sebastião? – disse ela um dia ao patrão. – O tempo das rapaziadas passou. Por que não toma estado? Moças é que não faltam. É verdade que o mundo vai perdido de todo, mas ainda há raparigas perfeitas e tementes a Deus.

— Endoideceste, Joanna! Eu lá caso nesta idade! Só se for contigo...

— Lá começa ele com as tolices de costume.

Água mole em pedra dura...

O tio Sebastião entrou um dia em casa com noiva. Era órfã de pai e mãe, era pobre, não tinha parentes a não ser um irmão que fora para o Brasil, e de quem não havia notícias há muito tempo; contava trinta e tantos anos, mas era madrugadora como um galo, direita como um vime, e valia por dois homens no cultivo da vida.

Quando o tio Sebastião lhe falou em casamento, ela fez-se vermelha como uma papoula, hesitou um momento, e atirando com a foice com que andava a cegar feno, lançou-se-lhe nos braços, e num amplexo formidável de leoa, rompeu com isto:

— Esperava esta felicidade há dez anos. Abrace-me, sô Sebastião, que se não fosse consigo, não me casava senão com a cova.

Vinha de longe o afeto desta mulher pelo bondoso homem.

O pai de Carlota caiu entrevado; o tio Sebastião ao passar-lhe um dia à porta ouviu choros e lamentações; entrou e soube que havia ali necessidade e quase fome; a filha única do inválido, Carlota, tinha de ficar à cabeceira do catre; as últimas economias haviam-se extinguido pouco a pouco.

O tio Sebastião socorreu aquela gente, mandou chamar o médico à Vila Verde, pagou os remédios da botica e por fim o enterro do infeliz.

Entre as poucas pessoas que acompanharam à igreja o modesto ataúde, ia o tio Sebastião curvado, melancólico, com o seu rosto barbeado, e cheio de bondade e lhaneza.

Carlota, que chorava a um canto do albergue, com as mãos atadas à cabeça despenteada, ao ver entrar o benfeitor, não lhe agradeceu as esmolas com palavras ociosas — arrastou-se para ele de joelhos, e agarrando-lhe nas mãos beijou-as com devota sofreguidão.

Passados tempos o tio Sebastião esquecera-se daquele episódio, e nem sequer reparou que a melhor cantora do lugar, que inquestionavelmente era a Carlota, deixava de cantar todas as vezes que ele passava por uma certa azinhaga...

Se ele volvesse o rosto veria no meio das ervas altas e úmidas, ou em cima dos castanheiros folhudos e entrelaçados de pâmpanos (Haste da videira coberta de folhas e de frutos), um vulto de mulher voltado para ele, a devora-lo com o olhar, a segui-lo, a banha-lo na luz carinhosa de um longo olhar enamorado.

Não deu por tal o tio Sebastião; Joanna, porém, que era amiga de Carlota, adivinhou o segredo, e o resultado sabe-o o leitor.
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Três anos depois do casamento o tio Sebastião enviuvara.

Ficou-lhe um filho, uma criancinha loura e adorável, o retrato vivo da mãe.

O lavrador concentrava no pequeno todos os afetos, amava-o até a insanidade.

O rapaz cresceu rodeado de carícias, de mimos e de ternos cuidados.

Não havia vontade que se lhe não fizesse. Era um pequeno rei despótico a cuja voz o pai e a velha Joanna se curvavam com cega obediência.

Ao completar seis anos, por conselho do prior, começou o pequeno a estudar as primeiras letras com o professor régio da freguesia.

— Temos homem, dizia o prior ao velho; o rapaz vai bem, estuda e aprende com facilidade.

— Quando me lembro que posso morrer sem o ouvir cantar a missa nova, parece-me que estalo de pena.

— Ó senhor prior, o meu rapaz dava ou não dava um padre de mão cheia?

Era para padre que o velho destinava o filho, sonhava todas as noites com a sua primeira missa, via-o com as vestimentas engomadas e duras do sacerdócio, diante do altar da igreja da freguesia, no meio de nuvens de incenso, enquanto os padres cantarolavam ao som plangente e arrastado do órgão, e os sinos tangiam alegres repiques, e subiam ao ar as girândolas de foguetes impregnando de um espesso cheiro de pólvora o adro enramilhetado de murtas...

Pronto nas primeiras letras, foi o pequeno Sebastião para Braga onde se matriculou no Liceu.

Neste entrementes chegou do Brasil o irmão de Carlota. Foi à aldeia natal, procurou os parentes, e soube que todos tinham falecido, restando-lhe tão somente um sobrinho.

O brasileiro era solteiro, e doente; não vinha milionário, mas tinha mais do que o suficiente para dar uma bonita carreira ao estudante.

— Olhe, mano, disse ao cunhado, deixe isso ao meu cuidado, eu me encarrego do menino. O bem que desejava fazer a meus pais, que infelizmente não encontrei, hei de reverte-lo em favor de meu sobrinho. Uma condição exijo: não quero que o rapaz se ordene. Quero dizer, se isso for da sua vontade, dele, não me oponho, mas deixemos o tempo ao tempo. Cá a minha opinião é que ele deve estudar medicina. Os médicos ganham muito dinheiro em toda a parte, e no Brasil sobretudo, onde o mais relés tem carruagem. Está certo isto? O rapaz quando acabar os estudos em Braga vai para Coimbra?

O tio Sebastião custou a descer daquele sonho em que andara tantos anos embevecido. Mas por fim cedeu.

O brasileiro demorou-se alguns anos ainda em Portugal. A quebra, porém, de uma casa importante do Rio chamou-o ao Brasil, para onde partiu deixando ao sobrinho, que até então se havia portado com singular e exemplaríssimo discernimento, ordem franca para receber tudo que lhe fosse preciso numa das casas mais acreditadas do Porto.
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Um dos estudantes que mais dinheiro gastava em Coimbra por aqueles tempos era Sebastião Alves, a quem a convivência com os rapazes oriundos das mais nobres famílias de Portugal empavonara e envaidecera extremamente.

No seu quarto, que ele adornara com excessivo e inaudito luxo para um estudante, reuniam-se todos os que sobressaiam em Coimbra pela fidalguia, pela força, e pela estroinice.

Sebastião começou a ser explorado; pediam-lhe dinheiro que nunca era restituído, vestiam-lhe o fato, calçavam-lhe as botas, e comiam-lhe ceias abundantes e regadas de vinhos caros.

Com aquela vida era incompatível o estudo e a reflexão. Deixou de ir às aulas. Enganava o tio e o pai, enviando-lhes certidões falsas dos atos que nunca fizera.

Havia dois anos já que não ia à aldeia, cujo viver lhe aborrecia e se lhe figurava mesquinho e chato.

Quando os estudantes partiam para férias, contentes e alegres para os abraços da família, Sebastião Alves deixava também Coimbra, percorria as praias, ia ao Porto, a Cintra, ao Bussaco.

Aquela vida inútil e vária era de quando em quando remordida pelo remorso, todas as vezes que o vadio recebia as cartas do pai que, apesar de não terem ortografia, e de serem escritas com uma letra grotesca e pesada, lhe avivavam o entranhado amor com que ele era querido por aquele amantíssimo coração de velho.

II
O brasileiro voltara a Portugal. Em Santa Apolônia comprou bilhete para Coimbra, mas adormecendo profundamente só acordou quando ouviu um empregado gritar: Granja!

— É o mesmo, disse consigo. Até é melhor. Fico no Porto, e escrevo ao Sebastião que venha ter comigo se quer ir ver o filho a Coimbra.

Escreveu. Se o tio Sebastião queria ir a Coimbra! Nisso pensava ele havia semanas, porque já não podia com as saudades.

— Já cá estão dois carros e uns pozinhos, dizia ele, se não fosse isto, quem ia ver o rapaz era o filho de minha mãe...

O convite do cunhado alvoroçara-o de alegria e de desusado contentamento. Ria alto, andava radiante, cantava:

À uma hora nasci,
Às duas fui batizado,
Às três andava de amores,
Às quatro estava casado.

— Queres tu vir daí, Joanna? – dizia ele para a criada que lhe arranjava a mala. – É verdade, ó Joanna, não te lembras assim de uma coisa que o estudante goste? Uma coisa bonita...

A criada que era gulosa, lembrava-lhe marmelada, doce de ginja, peras em calda...

— Upa! coisa melhor...

— Quer saber? – disse a velha, com os olhos acesos de quem achou um tesouro, – e a mim que não me lembrou logo! Eu cá se fosse o sô Sebastião comprava uma medalha de ouro como a que o sr. Morgado traz no cordão do relógio; metia-lhe dentro o retrato da falecida, e levava isso ao menino que há de ficar no céu ao ver a mãezinha que Deus lhe levou.

O tio Sebastião aprovou a ideia. O retrato foi tirado da parede, tinha sido feito em Braga, logo nos primeiros tempos do casamento. Representava Carlota vestida com uma saia de seda preta, lustrosa, cheia de vincos, com grossas arrecadas, e uns enormes grilhões no peito largo e arfante, os pés nus numas chinelas bicudas de verniz. Na mão direita tinha um lenço cheio de bordados, tufado. À esquerda descansava nas costas de uma cadeira, e os grossos dedos dessa mão pendiam para a palhinha, lanzudos, reluzentes de anéis. Nos olhos de Carlota havia o espanto de quem vê bruxaria, uma espécie de pavor disfarçado.

O lavrador pegou no retrato, e esteve a olhar para a mulher. Não chorou, nem teve saudades, estava absorvido por um sentimento superior.

— Ó Joanna, mas o retrato é grande e a medalha pequena. Eu não tenho alma de degolar o retrato...

A criada sorriu-se.

— Pois leve o retrato e a medalha ao menino, e ele lá que o mande arranjar...

Na manhã seguinte almoçava o tio Sebastião com o cunhado, e partia nessa mesma tarde para Coimbra, onde chegaram de noite. O brasileiro, cheio de cansaço, adoentado, propôs que se adiasse a visita ao estudante para o outro dia. Que eram horas dele estar a estudar; que não era bom distraí-lo das suas obrigações. O tio Sebastião, porém, não se convenceu. Disse que iria só, que não podia esperar, que não dormiria bem sem dar um abraço no filho. Partiram ambos.

Os viajantes bateram à porta da casa de Sebastião Alves, maravilhados de verem as janelas abertas e a casa completamente às escuras. Ninguém lhes respondeu.

Bateram de novo.

Uma vizinha com a sua voz fina e cantada perguntou o que desejavam, e explicou que o sr. Sebastião Alves tinha ido cear com uns amigos em uma hospedaria da baixa.

Perguntou o brasileiro onde era essa hospedaria, e para lá se encaminhou com o ansioso companheiro, que ao vê-lo meditativo resmungava como que para atenuar a extravagância:

— Rapazes! Um dia não são dias.

As ruas da alta estavam solenemente silenciosas, os transeuntes eram raros.

Ao passarem por uma casa, cujo primeiro andar tinha as janelas abertas, viram um estudante com a cabeça encostada às mãos, absorvido e com os olhos em uns livros...

— Aquele também é rapaz, tornou o brasileiro com gesto sentencioso, mas faz a sua obrigação. Quem vem para aqui é para estudar...

Ao subirem as escadas da hospedaria ouviram um grande rumor, vivas, e hurras frenéticos e entusiásticos; os criados açodados, vermelhos, passavam com largas travessas fumegantes...

— Desejamos saber, disse o brasileiro a um dos criados, se o sr. Sebastião Alves está aqui.

— Está, sim senhor, se lhe querem falar, vou dar-lhe parte...

O brasileiro tirou meia coroa da bolsa de prata, e dando-a ao criado continuou:

— Não queremos perturbar o sr. Sebastião, falar-lhe-emos depois. O que desejamos é um quarto onde possamos esperar até que finde a ceia. Faça favor de lhe não revelar que estamos aqui, é uma surpresa que queremos fazer ao estudante; e sorriu contrafeito.

O criado conduziu-os a uma sala, separada daquela em que os estudantes ceavam simplesmente por uma porta.

O tio Sebastião tinha o coração aos pulos dentro do peito.

— Eu vou lá; dizia baixo com a voz tremula, quero vê-lo.

O cunhado conteve-o.

— Espreite pelo buraco dessa fechadura que já o vê.

O velho curvou-se e olhou.

— Lá está ele! Lá o vejo. Está mais magro... aquilo talvez seja do estudo. Coitado! Mas que valentão que ele anda! Os outros ao pé dele parecem uns pobretões! Um até tem as vestes toda rota e cheia de nódoas. Aquilo que eles trazem é assim a modo de batina de padre... pois não é? Espera, ó mano! Lá vai o meu filho levantar-se. Ó meu rico filho da minha alma!

Sebastião levantara-se de fato para fazer um brinde.

Tinham bebido à saúde das mulheres, do amor, da glória, do talento...

Sebastião, um tanto inflamado de repetidas libações, fez uma saúde a um velho que estava sentado à mesa, um pouco distanciado do grupo dos estudantes.

O brinde foi estrepitosamente aceito.

O velho agradeceu nestes termos:

«Muito obrigado, meus senhores! Reconhecido pela deferência com que me honram, consintam que beba à saúde do pai do cavalheiro que me brindou.»

O brasileiro disse:

— Tome, mano! Aquilo é consigo!

— Mas eu vou lá, vou dar um abraço naquele honrado homem que se lembrou de mim...

Os estudantes ergueram os copos.

— Á saúde de teu pai, clamaram.

— Que infelizmente está longe, disse comovido pelo vinho Sebastião Alves.

— Longe! qual longe, nem meio longe, tartamudeou o tio Sebastião, e ia para lançar-se pelo corredor afora, quando o brasileiro de novo o reteve.

— Espere homem! O rapaz talvez fique envergonhado se lhe aparecermos assim de repente.

— É verdade, meus senhores, disse um dos da roda, um que passava por orador e que gostava de fazer estilo.

«O pai de Sebastião está longe, vive em plagas distantes, em terra de Santa Cruz nesse país fecundo, monstruoso, gigante, que se chama Brasil, e onde os nossos recebem uma hospitalidade tão franca e tão generosa. Brindando ao pai de Sebastião, brindo aos nossos irmãos de além-mar.»

— O que diz ele? resmungou o tio Sebastião, que eu estou no Brasil? Não é má!... e continha o riso.

O brasileiro compreendeu tudo e murmurou: canalha!...

Um dos rapazes que fora condiscípulo de Sebastião em Braga, voltando-se para este, disse:

— É verdade, ó Sebastião, aquele velhinho que uma vez te acompanhou à mala posta, e que eu vi a chorar como uma criança na rua da Conega quando se despediu de ti, era teu avô? Muito gostei eu do velhinho. Parece que o estou a ver a acenar-te com o lenço, correndo com as suas pernas trôpegas e cansadas atrás da carruagem, a dizer: O Senhor vá na tua companhia!

Sebastião avincou o rosto, um rubor súbito incendiou-lhe as faces, e partindo uma noz, respondeu:

— Esse velho era caseiro de uma quinta que meu pai comprou quando esteve ultimamente em Portugal.

O tio Sebastião voltou-se para o brasileiro. Estava lívido, tinha os lábios apertadamente unidos, os olhos injetados de sangue. Esteve um segundo, com os olhos fitos nos do cunhado, sem poder articular uma palavra, bamboleando a cabeça, respirando ofegantemente pelas narinas palpitantes e dilatadas; depois caiu nos braços do cunhado e prorrompeu num soluçar dilacerante e pungente:

— Ingrato! ingrato!
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Quando o tio Sebastião chegou em sua aldeia, vinha pálido, desfeito, parecia desenterrado.

A velha Joanna assustada perguntou-lhe:

— Que foi? Que foi? E o menino?

— Morreu!

Fonte: Maria Amália Vaz de Carvalho. Contos e Phantasias. Publicado originalmente em Porto, 1880. Convertido para o português atual por J. Feldman. Disponível em Domínio Público.

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