A hora talvez fosse tarde. A janta, nem lembrávamos mais dela. Baião-de-dois, ovos, com tempero de coentro e cebola. Ou cuscuz com leite. Depois rezamos o terço, ave-maria cheia de graça, padre-nosso que estais nos céus, kyrie, eleison, atos de fé, esperança, caridade e contrição. Ajoelhados, cansados, eu pensei o tempo todo nas meninas da nossa rua. Só queríamos que aquilo terminasse logo e pudéssemos jogar damas, dominó, baralho.
O rádio velho chiava no canto da parede, falava do mundo, cantava amores. Nosso pai ainda não havia voltado do trabalho, nossa mãe enchia os potes, lavava os pratos, espantava os ratos. E nós três pintávamos o sete na sala.
Súbito uma garrafa se espatifou no meio da rua, e gritavam, discutiam, sapateavam dez ou mais rapazes na calçada defronte. Da janela assistíamos a tudo, e ríamos dos que cambaleavam e levantavam-se sujos e amarrotados.
Uma voz fanhosa chorava dentro da caixa do rádio, bem mais triste do que aquelas noites. As mariposas voluteavam ao redor da lâmpada pendurada no meio da sala.
Os cacos de vidro brilhavam entre as pedras do calçamento, verdes, pontiagudos, inúmeros. E os rapazes pulavam, corriam, esmurravam-se, chutavam-se, feridos, alguns cobertos de sangue, outros a chorar. Das janelas, mulheres e homens gritavam. E já outras mulheres gordas e velhas misturavam-se aos brigões, aos gritos e lamentos.
Os soldados chegaram muito tempo depois, armados de cassetetes, e mais garrafas se quebraram, mais socos e pontapés se deram, mais gritos desesperados, uns caídos, outros fugidos. Meus dois olhos já não viam tudo, ora no braço erguido de um, ora no grito infindável de outro, aqui, ali, acolá.
Alguns pequeninos pedaços de vidro às vezes salpicavam nossos rostos, saltavam para o interior da sala, retiniam no parapeito da janela, confundiam-se com as mariposas.
Muito tempo durou a noite. Nosso pai, quando chegou, passou-nos um carão medonho. Aquilo não eram horas de menino estar acordado.
Ainda mais olhando briga de vagabundo.
Caímos nas redes e passei a noite sonhando com brigas e garrafadas.
O rádio velho chiava no canto da parede, falava do mundo, cantava amores. Nosso pai ainda não havia voltado do trabalho, nossa mãe enchia os potes, lavava os pratos, espantava os ratos. E nós três pintávamos o sete na sala.
Súbito uma garrafa se espatifou no meio da rua, e gritavam, discutiam, sapateavam dez ou mais rapazes na calçada defronte. Da janela assistíamos a tudo, e ríamos dos que cambaleavam e levantavam-se sujos e amarrotados.
Uma voz fanhosa chorava dentro da caixa do rádio, bem mais triste do que aquelas noites. As mariposas voluteavam ao redor da lâmpada pendurada no meio da sala.
Os cacos de vidro brilhavam entre as pedras do calçamento, verdes, pontiagudos, inúmeros. E os rapazes pulavam, corriam, esmurravam-se, chutavam-se, feridos, alguns cobertos de sangue, outros a chorar. Das janelas, mulheres e homens gritavam. E já outras mulheres gordas e velhas misturavam-se aos brigões, aos gritos e lamentos.
Os soldados chegaram muito tempo depois, armados de cassetetes, e mais garrafas se quebraram, mais socos e pontapés se deram, mais gritos desesperados, uns caídos, outros fugidos. Meus dois olhos já não viam tudo, ora no braço erguido de um, ora no grito infindável de outro, aqui, ali, acolá.
Alguns pequeninos pedaços de vidro às vezes salpicavam nossos rostos, saltavam para o interior da sala, retiniam no parapeito da janela, confundiam-se com as mariposas.
Muito tempo durou a noite. Nosso pai, quando chegou, passou-nos um carão medonho. Aquilo não eram horas de menino estar acordado.
Ainda mais olhando briga de vagabundo.
Caímos nas redes e passei a noite sonhando com brigas e garrafadas.
Fonte: Nilto Maciel. Babel. Brasília/DF: Editora Códice, 1997. Enviado pelo autor.
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