Tini morreu bem velhinho, mas sempre bonito, passeando a majestade da sua bela cauda arrastada solenemente pelo piso do sobradão da Ponta da Praia. Isto porque, quando cheguei à idade mágica dos dezoito anos, meu pai, que vendera os dois bangalôs da Alexandre Herculano, comprara o tal lindo sobrado, com seu torreão lateral, estilo mourisco, lá para os lados da Ponta da Praia - Rua Januário dos Santos, com amplo quintal arborizado a atrair pássaros, borboletas e crianças, que aos poucos chegariam.
O novo endereço tornou-se palco de um casamento, de início desajustado e sofrido, e que, embora se estendesse por vinte e um anos, chegou à inapelável separação, com saldo positivo de três filhos muito e muito queridos.
Lá, moramos por largo tempo, até que, naquele decisivo 1970, meu pai, ante o casamento desfeito da filha, adquiriu o apartamento, frente ao mar, palco de nossas novas vidas, onde ele e minha mãe residiram até o final de seus dias. Neste espaçoso apartamento, foram criados meus filhos até quando, cada um a seu tempo bateu asas, deixando o ninho, ao traçar os próprios rumos.
Nesse ninho ainda estou. E dele também partirei, num dia que só Deus conhece.
O condomínio "Núncio Malzoni", onde se localiza o apartamento em pauta, logo depois de construído, passou a apresentar os mesmos problemas de inclinação comuns aos demais da região, passando, com o tempo, a ser conhecido como - Torre de Pizza santista.
Durante muito tempo fez jus a esta citação, acabando por ser o primeiro a ser posto novamente a prumo. E isto, é preciso que se diga, aconteceu com tecnologia nacional, o que atraiu o interesse de engenheiros da Itália e Alemanha. Hoje, o nosso ex-Torto é referência das mais honrosas à tecnologia brasileira, sendo considerado um dos prédios mais sólidos da orla santista.
A narrativa aos poucos desvirtuou-se ao assumir, quase que de modo inevitável, um leve tom autobiográfico, absolutamente não pretendido. É hora do retorno ao enfoque inicial, fiel ao que pede o título: - "Bichos... bichinhos... e bichanos" - queridos amiguinhos que, em tempos distantes, deixaram suas pegadas ao lado dos meus passos.
Para retomar o fio das ideias, faz-se necessário, entretanto, outro retrocesso. Assim, retornemos àquele elegante sobrado da Rua Januário dos Santos que acabou por fazer com que a população felina crescesse, a partir das ninhadas abusivamente despejadas em seu amplo jardim, na certeza de que não seriam descartadas por quem provava ter coração mole, capaz de acolher cães, gatos e outros animaizinhos, desde que abandonados à sua porta.
Acredito que até mesmo São Francisco, sempre amigo dos animais, (a ponto de ser eleito Protetor deles), tenha dado a muitos dos seus protegidos o endereço daquela casa acolhedora, que tão bem os recebia, embora nem sempre de boa vontade por parte de minha mãe.
Contudo, é preciso que se diga - minha santa mãezinha, quase sempre acabava por integrar-se às tarefas assumidas pela filha. Mas... O dedinho solidário de São Francisco, indicador daquele endereço, deixa evidenciado que, pelo menos daquela vez, ele não estaria de todo ausente às circunstâncias.
E isto explica o telefonema recebido, numa tarde qualquer, de uma vizinha moradora na casa fronteira à nossa. Alertava-me ela que havia um cavalo, há muito tempo, com a cabeça enfiada por sobre o portão da nossa garagem... como a querer entrar.
Voei para o portão. Fato confirmado.
Lá estava o tal cavalo - longo pescoço a ultrapassar o portão da garagem, enquanto o dono daquele pescoço, impassível e sem demonstrar qualquer receio, parecia ciente, de sobejo, ser aquele o endereço absolutamente certo, que procurava.
Aproximei-me... Acarinhei-o, sem que me repelisse ou demonstrasse qualquer receio.
Foi quando, com desgosto, pude ver uma enorme chaga no dorso daquele pobre cavalo, provocada pelo roçar dos arreios... por algum excesso de carga, ou... sabe-se lá pelo que!
Imediatamente, fui à busca de medicamentos e, após limpeza do ferimento, cuidei da feia ferida sem que aquele pobre animal demonstrasse rebeldia ou a mínima vontade de afastar-se dali. E, também, sem esquivar-se à minha intervenção, que embora cuidadosa e bem intencionada, não deixaria de ser, inevitavelmente, dolorosa.
Quando terminei, acariciei-o em despedida. E ele, mesmo, sem que ninguém o mandasse embora, afastou-se lentamente, sem que jamais eu o tornasse a ver.
Naquele sobrado da Rua Januário, outros bichinhos se fizeram presentes, tais como dois jabutis, que tomaram para si o canteiro do lado esquerdo do casarão, nunca saindo dali - como se aquele território estivesse demarcado apenas para desfrute daquele pacato casal cascudo.
E, por lá, apareceu também o Barão - um cão com veleidades à raça policial, embora de menor porte. Meu pai o recolhera, após ser ele atropelado na praia por um dos bondes que, naquele tempo, por lá circulavam. Fora salvo por uma dessas plataformas embutidas e que eram baixadas em casos de emergência, para proteção da vítima, isolando-a das rodas e amenizando traumas do atropelamento. Barão safara-se, com a graça de Deus, embora com uma das pernas comprometida.
Cão pacato, dócil, embora estigmatizado pela aparência. Seu terror à pirotecnia era cada vez mais notório! Num festivo mês junino, tivemos que o ir buscar na casa de um vizinho, coronel do exército, que nos avisara estar o Barão, trêmulo e apavorado por conta do foguetório, escondido no andar superior, sob a cama do casal. Seus dentes agressivos não permitiam que ninguém o tirasse de lá. Pobre Barão! Bravo apenas na aparência. Pão casca dura, mas só por fora... Por dentro... apenas miolo dos mais macios!
Lembrou-me, recentemente, uma de minhas filhas, a Márcia, que chegamos a ter, ainda que só por alguns dias, um cão da raça Guaió. Muito vagamente lembro-me dele e sequer ouvi falar sobre a existência da tal raça que, segundo minha informante, foi iniciada aqui em Santos e que teria conotações com a raça fila (?) - única raça brasileira catalogada. Se assim for, o tal cãozinho de pelagem negra encaracolada, que passou conosco apenas alguns dias, teria relevante pedigree. Mesmo assim, sua vaga passagem não permite lembrar como chegou até nós e nem, quando se foi. Que fique o registro.
O novo endereço tornou-se palco de um casamento, de início desajustado e sofrido, e que, embora se estendesse por vinte e um anos, chegou à inapelável separação, com saldo positivo de três filhos muito e muito queridos.
Lá, moramos por largo tempo, até que, naquele decisivo 1970, meu pai, ante o casamento desfeito da filha, adquiriu o apartamento, frente ao mar, palco de nossas novas vidas, onde ele e minha mãe residiram até o final de seus dias. Neste espaçoso apartamento, foram criados meus filhos até quando, cada um a seu tempo bateu asas, deixando o ninho, ao traçar os próprios rumos.
Nesse ninho ainda estou. E dele também partirei, num dia que só Deus conhece.
O condomínio "Núncio Malzoni", onde se localiza o apartamento em pauta, logo depois de construído, passou a apresentar os mesmos problemas de inclinação comuns aos demais da região, passando, com o tempo, a ser conhecido como - Torre de Pizza santista.
Durante muito tempo fez jus a esta citação, acabando por ser o primeiro a ser posto novamente a prumo. E isto, é preciso que se diga, aconteceu com tecnologia nacional, o que atraiu o interesse de engenheiros da Itália e Alemanha. Hoje, o nosso ex-Torto é referência das mais honrosas à tecnologia brasileira, sendo considerado um dos prédios mais sólidos da orla santista.
A narrativa aos poucos desvirtuou-se ao assumir, quase que de modo inevitável, um leve tom autobiográfico, absolutamente não pretendido. É hora do retorno ao enfoque inicial, fiel ao que pede o título: - "Bichos... bichinhos... e bichanos" - queridos amiguinhos que, em tempos distantes, deixaram suas pegadas ao lado dos meus passos.
Para retomar o fio das ideias, faz-se necessário, entretanto, outro retrocesso. Assim, retornemos àquele elegante sobrado da Rua Januário dos Santos que acabou por fazer com que a população felina crescesse, a partir das ninhadas abusivamente despejadas em seu amplo jardim, na certeza de que não seriam descartadas por quem provava ter coração mole, capaz de acolher cães, gatos e outros animaizinhos, desde que abandonados à sua porta.
Acredito que até mesmo São Francisco, sempre amigo dos animais, (a ponto de ser eleito Protetor deles), tenha dado a muitos dos seus protegidos o endereço daquela casa acolhedora, que tão bem os recebia, embora nem sempre de boa vontade por parte de minha mãe.
Contudo, é preciso que se diga - minha santa mãezinha, quase sempre acabava por integrar-se às tarefas assumidas pela filha. Mas... O dedinho solidário de São Francisco, indicador daquele endereço, deixa evidenciado que, pelo menos daquela vez, ele não estaria de todo ausente às circunstâncias.
E isto explica o telefonema recebido, numa tarde qualquer, de uma vizinha moradora na casa fronteira à nossa. Alertava-me ela que havia um cavalo, há muito tempo, com a cabeça enfiada por sobre o portão da nossa garagem... como a querer entrar.
Voei para o portão. Fato confirmado.
Lá estava o tal cavalo - longo pescoço a ultrapassar o portão da garagem, enquanto o dono daquele pescoço, impassível e sem demonstrar qualquer receio, parecia ciente, de sobejo, ser aquele o endereço absolutamente certo, que procurava.
Aproximei-me... Acarinhei-o, sem que me repelisse ou demonstrasse qualquer receio.
Foi quando, com desgosto, pude ver uma enorme chaga no dorso daquele pobre cavalo, provocada pelo roçar dos arreios... por algum excesso de carga, ou... sabe-se lá pelo que!
Imediatamente, fui à busca de medicamentos e, após limpeza do ferimento, cuidei da feia ferida sem que aquele pobre animal demonstrasse rebeldia ou a mínima vontade de afastar-se dali. E, também, sem esquivar-se à minha intervenção, que embora cuidadosa e bem intencionada, não deixaria de ser, inevitavelmente, dolorosa.
Quando terminei, acariciei-o em despedida. E ele, mesmo, sem que ninguém o mandasse embora, afastou-se lentamente, sem que jamais eu o tornasse a ver.
Naquele sobrado da Rua Januário, outros bichinhos se fizeram presentes, tais como dois jabutis, que tomaram para si o canteiro do lado esquerdo do casarão, nunca saindo dali - como se aquele território estivesse demarcado apenas para desfrute daquele pacato casal cascudo.
E, por lá, apareceu também o Barão - um cão com veleidades à raça policial, embora de menor porte. Meu pai o recolhera, após ser ele atropelado na praia por um dos bondes que, naquele tempo, por lá circulavam. Fora salvo por uma dessas plataformas embutidas e que eram baixadas em casos de emergência, para proteção da vítima, isolando-a das rodas e amenizando traumas do atropelamento. Barão safara-se, com a graça de Deus, embora com uma das pernas comprometida.
Cão pacato, dócil, embora estigmatizado pela aparência. Seu terror à pirotecnia era cada vez mais notório! Num festivo mês junino, tivemos que o ir buscar na casa de um vizinho, coronel do exército, que nos avisara estar o Barão, trêmulo e apavorado por conta do foguetório, escondido no andar superior, sob a cama do casal. Seus dentes agressivos não permitiam que ninguém o tirasse de lá. Pobre Barão! Bravo apenas na aparência. Pão casca dura, mas só por fora... Por dentro... apenas miolo dos mais macios!
Lembrou-me, recentemente, uma de minhas filhas, a Márcia, que chegamos a ter, ainda que só por alguns dias, um cão da raça Guaió. Muito vagamente lembro-me dele e sequer ouvi falar sobre a existência da tal raça que, segundo minha informante, foi iniciada aqui em Santos e que teria conotações com a raça fila (?) - única raça brasileira catalogada. Se assim for, o tal cãozinho de pelagem negra encaracolada, que passou conosco apenas alguns dias, teria relevante pedigree. Mesmo assim, sua vaga passagem não permite lembrar como chegou até nós e nem, quando se foi. Que fique o registro.
Fonte: Carolina Ramos. Meus Bichos, Bichinhos e… Bichanos. Santos/SP: Ed. da Autora, 2023.
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