Em seus 14 meses de permanência neste mundo, a garotinha não tinha tomado o menor conhecimento das leis que governam a nação. Isso se deu agora na praça, logo na chamada República Livre de Ipanema.
Até ontem ela se comprazia em brincar com a terra. Hoje, de repente, deu-lhe um tédio enorme do barro de que somos feitos: atirou o punhado de pó ao chão, ergueu o rosto, ficou pensativa, investigando com ar aborrecido o mundo exterior. Por um momento seus olhos buscaram o jardim à procura de qualquer novidade. E aí ela descobriu o verde extraordinário: a grama.
Determinada, levantou-se do chão e correu para a relva, que era, vá lá, bonita, mas já bastante chamuscada pela estiagem. Não durou mais que três minutos seu deslumbramento. Da esquina, um senhor de bigodes, representante dos Poderes da República, marchou até ela, buscando convencê-la de que estava desrespeitando uma lei nacional, um regulamento estadual, uma postura municipal, ela ia lá saber o quê.
Diga-se, em nome da verdade, que no diálogo que se travou em seguida, maior violência se registrou por parte da infratora do que por parte da Lei, um guarda civil feio, mas invulgarmente urbano.
– Desce da grama, garotinha – disse a Lei.
– Blá blé bli bá – protestou a garotinha.
– É proibido pisar na grama – explicou o guarda.
– Bá bá bá – retrucou a garotinha com veemência.
– Vamos, desce, vem para a sombra, que é melhor.
– Buh buh – afirmou a garotinha, com toda razão, pois o sol estava mais agradável do que a sombra.
A insubmissão da garotinha atingiu o clímax quando o guarda estendeu-lhe a mão com a intenção de ajudá-la a abandonar o gramado. A gentileza foi revidada com um safanão. “Dura lex sed lex” (a lei é dura, mas é a lei).
– Onde está sua mamãe?
A garotinha virou as costas ao guarda com desprezo. A essa altura levantou-se do banco, de onde assistia à cena, o pai da garota, que a reconduziu sob chorosos protestos à terra seca dos homens, ao mundo sem relva que o Estado faculta ao ir e vir dos cidadãos.
A própria Lei, meio encabulada com o seu rigor, tudo fez para que o pai da garotinha se persuadisse de que, se não há mal para que uma brasileira tão pequenininha pise na grama, isso de qualquer forma poderia ser um péssimo exemplo para os brasileiros maiores.
– Aberto o precedente os outros fariam o mesmo – disse o guarda com imponência.
– Que fizessem, deveriam fazê-lo – disse o pai.
– Como? – perguntou o guarda confuso e vexado.
– A grama só podia ter sido feita, por Deus ou pelo Estado, para ser pisada. Não há sentido em uma relva na qual não se pode pisar.
– Mas isso estraga a grama, cavalheiro!
– E daí? Que tem isso?
– Se a grama morrer, ninguém mais pode ver ela – raciocinou a Lei.
– E o senhor deixa de matar a sua galinha só porque o senhor não pode mais ver ela?
O guarda ficou perplexo e mudo. O pai, indignado, chegou à peroração:
– É evidente que a relva só pode ter sido feita para ser pisada. Se morre, é porque não cuidam dela. Ou porque não presta. Que morra. Que seja plantado em nossos parques o bom capim do trópico. Ou que não se plante nada. Que se aumente pelo menos o pouco espaço dos nossos poucos jardins. O que é preciso plantar, seu guarda, é uma semente de bom-senso nos sujeitos que fazem os regulamentos.
– Buh bah – concordou a menina, correndo em disparada para a grama.
– O senhor entende o que ela diz? – perguntou o guarda.
– Claro – respondeu o pai.
– Que foi que ela disse agora?
– Não a leve a mal, mas ela mandou o regulamento para o diabo que o carregue.
Fonte: Sales, Herberto (org.).Antologia Escolar de Crônicas. Rio de Janeiro, Tecnoprint, 1971.
p. 213-16.
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