Comprou um livro com designação e com destinação mais que específicas, a tirar pelo título da obra, quase um opúsculo, na verdade: Cartas de Amor. Leu o todo do texto com o arrebatamento dos apaixonados e o releu depois, com a calma dos amantes saciados, passando folha por folha, grifando aqui e ali palavras incompreensíveis em seu vocabulário, contanto que pudesse escolher uma daquelas missivas para a eleita de seu coração e fez a cópia manuscrita da que considerou a melhor.
Ora, afinal, os flertes dos últimos meses, correspondidos sempre, davam-lhe a impressão, nítida e forte, de um namoro à vista, materializado até, em furtivos encontros pras bandas da Sorveteria Xaxá, na qual se reuniam rapazes e moças daquelas cercanias, da rua Gervásio Pires, sobretudo. Meninos e meninas que cresceram e viraram gente!
Mas, não esperava que as tias da casadoura moçoila decretassem o veto cruel aos afetos que guardava e aos afagos que nunca ensaiara! A proibição veio de logo, assim que descobriram as saídas mal explicadas e as idas desnecessárias ao Colégio Coração Eucarístico de Jesus, onde estudava à tarde, no Curso Pedagógico. E por isso, não deveria aproveitar as folgas que havia no serviço dos Fuzileiros Navais para sair em plena manhã e se encontrar com o soldado de cujo número ninguém mais se lembra! Passou a andar de guarda-costas, com uma ou duas de suas parentes, irmãs do pai, pois que mãe não tinha, vigiando-lhe os passos. A rua inteira se apresentou em solidariedade ao amigo destroçado, que chorava as lágrimas dos impedimentos amorosos ou o pranto das separações impostas.
De nada serviram essas manifestações de apoio e desvelo, o homem não se cansava de repetir as palavras do Cristo: “Tudo está consumado!”
Varou madrugadas em confissões intermináveis aos garçons da velha Cabana, no Parque 13 de Maio e salvou sonhos, sem querer antecipar do poeta a expressão do sentimento maior, a do espírito, que embala a alma: “Quem salva sonhos! Salva vidas!”
Ficava horas a fio defronte à casa, moradia de sua musa encantada, encastelada agora, sob as sete chaves desses rigores dos antanhos, aproveitando-se de uma ou de outra aparição na janela ou das ocasiões em que vestida com o encarnado forte da saia e com a pureza virginal do branco de sua blusa, dirigia-se à escola, uma tia à frente e outra tia atrás! Apreciava-lhe a face, de uma porcelana lúdica quase, como aquela das bonecas que ela própria tivera nos anos da infância.
Desesperou-se e correu à livraria, percorreu a rua da Imperatriz todinha, parou no estabelecimento que levava o nome daquela via pública de um comércio que se foi, encantado no tempo deste Recife dos pretéritos vividos e adquiriu o desejado exemplar de suas vontades. Selecionou a epístola mais bonita que achou e rabiscou no alvo do papel: “A perspicácia que te caracteriza, dá margens a que o meu amor por ti se concretize...”. E não houve quem lembrasse de mais nada da sequência daquelas declarações de amor, que aqui recordo, tomou duas páginas do pergaminho tupiniquim, do melhor que existia, adquirido por lá mesmo, na seção de papelaria da loja de livros do judeu, Berestein por sobrenome. Escrevera, mas não entendera o sentido das frases e dos parágrafos, confessou, pedindo-me que lhe esclarecesse os pensamentos e até os sentimentos. Eu, também, não sabia!
E os anos se passaram, um pra lá e outro pra cá, casaram-se com gente diferente e tiveram filhos, plantaram árvores e colheram os frutos. Livros não escreveram, que os saiba, pelo menos, pra contar que sequer a perspicácia serviu para selar o amor que supera a dor. A meninada, da mesma forma, foi se aninhando em braços femininos! Alguns - poucos, todavia –, com as moças do lugar. Distantes, agora, nessa roda viva do existir humano, de quando em vez se encontram no efêmero das conversas, pois que a intimidade do antes foi perdida já, como defende Luiz Fernando Veríssimo e remontam cenas desses outroras, mas se vão, novamente, cada qual pra seu lugar, onde não há espaço para lembranças de passagens assim, simplórias, mas carregadas de sentimentos! E os amores se esvaíram com o peso dos anos!
Fonte: Geraldo Pereira. Fragmentos do meu tempo. Recife/PE. Disponível no Portal de Domínio Público
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