Das vagas memórias que tenho da minha não muito distante infância, das mais abissais, das mais alvaresianas, é uma breve ida para a praia em família, que assombra. Apesar de viver em uma cidade praia de veraneio, posso confessar que a minha família não era e ainda não é até hoje de aproveitar o sol à beira mar. Mas voltando aos vestígios de uma lembrança amarga que não deveria nunca sair da fossa abissal do meu palácio das memórias.
Conto em especial, de um dia tragicômico, sim uma tragédia cômica, se é que isto é possível. E como uma simples ida à praia em família pode ser uma roleta russa. Pois então só para situar as coisas, eu sou filha natural e legítima de um casal inter-racial. E isto por si só gera embaraços no cotidiano.
Onde vivo, em alguns ciclos, ter pai branco e mãe negra, é sinceramente uma tragédia em si. E talvez o próprio casamento seja em si uma tragédia em algumas ocasiões. O verdadeiro drama é o lugar aonde vivemos, e coloca muito aonde nisso aí, pois ser um ser deslocado no tempo e no espaço não é nada fácil, onde as pessoas parecem viver na idade das trevas.
Pois voltemos ao que interessa, a ida à praia, em um dia forte de sol de verão. Para mim, o fato de viver defronte a um enorme oceano por si só é uma tragédia. Pois lá está a imensidão oceânica sem fim e todos os dias na tua cara para dizer o quanto eu sou pequena.
Sim, saímos nós, uma pequena família, a pé de casa e cruzamos a avenida hiper movimentada. Eu saí correndo, depois de me desvencilhar do meu pai e quase causar múltiplos acidentes de trânsito. Na beira-mar, mais uma vez eu saí correndo depois de me desvencilhar dos cuidados materno e paternos e pôr os meus pequenos pés na areia escaldante, e descobrir como aquilo é quente.
Pois bem, amigos e amigas, lá estava eu com o meu maiô infantil floral. Uma peça única, muito cafona, feita em poliamida e elastano. Com as duas alças finas e reguláveis, babadinho azul marinho, no busto e atrás, e com uma estampa mais que exclusiva. Nossa que coisa horrível, eu poder lembrar de detalhes exatos, pois a minha orgulhosa mãe simplesmente mostra até hoje uma fotografia minha, vestindo o trágico traje de banho para as amigas, parentes e quem quer que seja.
Mas estou dispersa hoje, o que importa é lembrar que o meu pai protetor veio em meu socorro, ele veio correndo socorrer a garotinha dele que gritava sentindo as areias escaldantes a queimarem seus frágeis e pequenos pezinhos. E a minha mais que querida mãe? Se bem me lembro, estava mais ocupada que nunca, vendo um guarda da esquina dar uma dura em um motorista de um carro utilitário, que estacionou no quarteirão. Ora, um veículo com placa de outra cidade e sem alvará para vender bugigangas e alimentos variados, de origem duvidosa na beira mar não pode mesmo.
Mas deixemos o aparato repressivo do estado para lá, eu sã e salva nos braços fortes do meu pai herói, ato embalado aos estridentes sons das ondas que quebravam na orla da praia, gaivotas gorjeando no céu azul e muito barulho mecânico ao redor.
Gritos e mais gritos, altos que suplantaram os demais sons da natureza geológica, mecânica e do reino animal. Era uma jovem mãe, que aos prantos chorava pelo seu filho. Estava morto jogado no chão, na areia úmida da praia, tinha três salva-vidas ao redor que só olhavam o menino morto. E, até hoje, não sei se foi um ataque de tubarões ou afogamento puro e simples.
Quanto a minha bela família? O meu protetor pai colocava as mãos nos meus ouvidos e virava a minha cabeça para o lado oposto da cena terrível. Enquanto isso a minha mãe que procurava e acabou encontrando um lugar na areia da praia, queria pegar um pouco de sol.
Fonte: Enviado por Samuel da Costa
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