quarta-feira, 18 de outubro de 2023

Caldeirão Poético LXIX (O livro em versos)


Alberto Martins

(Santos/SP)

O EDITOR

Passa o dia entre livros
Que não existem, ainda estão por ser escritos
Ou nunca chegarão a ser impressos.
Não trabalha no campo
Mas tem as mãos escalavradas:
A pele dos dedos descama feito pergaminho.
De noite voltam para casa
Ele e sua sombra – enxertada de palavras.
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Alphonsus de Guimaraens Filho
(Mariana, 1918 – 2008, Rio de Janeiro/RJ)

DEVORAR

Devorar esses livros como quem
Come folhas de alface. Devorá-los,
De muitos condimentos salpicá-los,
Para que afinal nos saibam bem.

Não feri-los, roê-los, esmagá-los.
Devorá-los com a fome que nos vem
Da esperança talvez de iluminá-los,
De revelá-los sem tristeza, sem.

Não impulso de papirofagia,
Ou de quem come cinza. Tão-somente
Ir ao cerne da noite que os retém.

Devorá-los com certa nostalgia,
Em nós fundi-los derradeiramente,
E então deixá-los como lhes convém.
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Eugénio de Andrade
(Fundão/Portugal, 1923 – 2005, Porto/Portugal)

OS LIVROS

Os livros. A sua cálida,
terna, serena pele. Amorosa
companhia. Dispostos sempre
a partilhar o sol
das suas águas. Tão dóceis,
tão calados, tão leais,
tão luminosos na sua
branca e vegetal e cerrada
melancolia. Amados
como nenhuns outros companheiros
da alma. Tão musicais
no fluvial e transbordante
ardor de cada dia.
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Jean De La Rivière
(França, 1338 – 1365)

HOMEM...

Homem, para viver satisfeito,
Para aprender a viver, leia!
E não perca seu tempo,
Procurando defeitos nos livros.
Nenhum livro é tão perfeito
Que nele algo não possa ser criticado.
Mas também nenhum é tão mal feito
Que nele algo não possa ser aproveitado.
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João Pedro Mésseder
(Porto/Portugal)

UM LIVRO

Levou-me um livro em viagem
não sei por onde é que andei.
Corri o Alasca, o deserto
andei com o sultão no Brunei?
Pra falar verdade, não sei.

Com um livro cruzei o mar,
não sei com quem naveguei.
Com marinheiros, corsários,
tremendo de febres e medo?
Pra falar verdade não sei.

Um livro levou-me p’ra longe
não sei por onde é que andei.
Por cidades devastadas
no meio da fome e da guerra?
Pra falar verdade não sei.

Um livro levou-me com ele
até ao coração de alguém
e aí me enamorei –
de uns olhos ou de uns cabelos?
Pra falar verdade não sei.

Um livro num passe de mágica
tocou-me com o seu feitiço:
Deu-me a paz e deu-me a guerra,
mostrou-me as faces do homem
– porque um livro é tudo isso.

Levou-me um livro com ele
pelo mundo a passear.
Não me perdi nem me achei
– porque um livro é afinal…
um pouco da vida, bem sei.
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Paulo Leminski
(Curitiba/PR, 1944 – 1989)

LEITE, LEITURA

letras, literatura,
tudo o que passa,
tudo o que dura
tudo o que duramente passa
tudo o que passageiramente dura
tudo, tudo, tudo
não passa de caricatura
de você, minha amargura
de ver que viver não tem cura
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Ricardo Azevedo
(São Paulo/SP)

AULA DE LEITURA

A leitura é muito mais
do que decifrar palavras.
Quem quiser parar pra ver
pode até se surpreender:
vai ler nas folhas do chão,
se é outono ou se é verão;
nas ondas soltas do mar,
se é hora de navegar;
e no jeito da pessoa,
se trabalha ou se é à-toa;
na cara do lutador,
quando está sentindo dor;
vai ler na casa de alguém
o gosto que o dono tem;
e no pelo do cachorro,
se é melhor gritar socorro;
e na cinza da fumaça,
o tamanho da desgraça;
e no tom que sopra o vento,
se corre o barco ou vai lento;
também na cor da fruta,
e no cheiro da comida,
e no ronco do motor,
e nos dentes do cavalo,
e na pele da pessoa,
e no brilho do sorriso,
vai ler nas nuvens do céu,
vai ler na palma da mão,
vai ler até nas estrelas
e no som do coração.
Uma arte que dá medo
é a de ler um olhar,
pois os olhos têm segredos
difíceis de decifrar.
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Tony Roberson de Mello Rodrigues
(São José/SC)

SAUDADE

Aqui em casa,
Que falta nos faz Cecília:
Seus poemas eram lidos
Em família.

Nas tardes de garoa,
Choviam heterônimos:
Que falta nos faz Pessoa!

Redescobrir a pureza humana,
Domesticar os demônios,
Enlouquecer as filigranas...
Falta-nos Quintana.

Pobres dos homens que anseiam
O mundo que mais tarde
Incendeiam...

E o livro, inquieto,
Grita do alto da estante:
- Empoeirou-se o meu instante?

Fonte: Sammis Reachers (seleção e edição). Poemas sobre Sua Majestade, o LIVRO: uma microantologia. ebook.

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