segunda-feira, 16 de outubro de 2023

Artur* de Azevedo (O sócio)

(contos maranhenses)

Frequentava o Liceu o Arnaldo, e havia feito
Exame de francês, inglês e geografia,
Quando seu pai um dia,
Pilhando-o bem a jeito,
Chamou-o ao gabinete e disse-lhe: — Meu filho,
Tu vais agora entrar no verdadeiro trilho!
Tu já sabes inglês e francês; o Tibério,
Teu mestre, um homem sério,
Me disse ultimamente
Que podes dar lições de geografia à gente —
E, depois de tomar o velho uma pitada,
— Não quero, prosseguiu, que tu saibas mais nada,
Pois sabes muito mais do que teu pai, e, como
Fortuna ele não tem para te dar mesada,
Deus, que me ouvindo está, por testemunha tomo!
Não hás de ser doutor! E para que o serias?
Em breve, filho meu, tu te arrependerias.
Pois não vês por aí tantos, tantos doutores,
Que não tomam caminho,
Sofrem mil dissabores,
Sem ter o que fazer do inútil pergaminho? —
Nisto o velho assoou-se ao lenço de Alcobaça,
E a trompa fez tremer os vidros na vidraça.
— Tu vais para o comércio. Arranjei-te um emprego
Em casa de Saraiva, Almeida & Companhia.
Acredita, rapaz, que o teu e o meu sossego
Farás, se me disseres
Que não te contraria
Esta resolução. Tua mãe, que é bem boa,
Mas os defeitos tem de todas as mulheres,
Quer que sejas praí um bacharel à toa;
Pois olha que teu pai tem prática do mundo
E a máquina social conhece bem a fundo;
Para o comércio vai. Se tiveres juízo,
Em dez anos... nem tanto até será preciso...
Serás sócio da casa. A casa é muito forte,
Meu filho, e todos lá têm tido muita sorte.

O Arnaldo quis em vão protestar. O bom velho
Fez-o chegar-se ao relho,
E a ambiciosa mãe capacitou-se, em suma,
Que, na casa Saraiva, Almeida & Companhia,
Teria mais futuro o seu rapaz, que numa
Réles academia.

Pobre Arnaldo! O lugar que lhe foi reservado
Não era de caixeiro,
Mas de simples criado:
Às cinco da manhã despertava, e ligeiro
Descia aos armazéns, pegava na vassoura,
E tinha que varrer o chão. Não me desdoura
O trabalhar (o moço aos seus botões dizia).
Mas não valia a pena
Ter aprendido inglês, francês e geografia,
Se a uma eterna vassoura a sorte me condena!

O pobre rapazinho andava o dia inteiro
Recados a fazer, levípede, lampeiro,
E, à noite, fatigado,
Atirava-se à rede e um sono só dormia
Até pela manhã, quando a vassoura esguia
O esperava num canto. Ele tinha licença
De ir à casa dos pais de quinze em quinze dias!...
Sentia pela mãe uma saudade intensa!

Vida estúpida e má! Vida sem alegrias!...
Saraiva, o principal sócio daquela firma,
Tipo honrado, conforme inda hoje a praça afirma,
Andava pela Europa a viajar, e o sócio,
O Almeida, estava então à testa do negócio.
Era o Almeida casado, e tinha uma sujeita...
No intuito de evitar toda e qualquer suspeita,
Não quis o maganão que ela morasse perto
Da casa de negócio, onde estava a família:
Em S. Pantaleão, bairro sempre deserto,
Pôs-lhe casa e mobília.

O Arnaldo lamentava o seu mesquinho fado,
E andava sempre triste e sempre amargurado,
Quando o senhor Almeida, o patrão, de uma feita,
Se lembrou de o mandar à casa da sujeita,
Levar uma fazenda
De que ela lhe fizera há dias encomenda.

Lá foi o Arnaldo, e, ao dar co’a moça, boquiaberto
Ficou por não ter visto ainda tão de perto
Senhora tão formosa,
Nem tão apetitosa;
E, a julgar pelo olhar que lhe lançou a bela,
Ela dele gostou tanto como ele dela.

Era bem raro o dia em que o negociante
Não tinha que mandar o Arnaldo à sua amante
Qualquer coisa levar. Por isso, de repente,
O triste varredor mostrara-se contente,
Sagaz, ativo, esperto,
E ao pai e à mãe dizia
Que na casa Saraiva, Almeida & Companhia
Achara um céu aberto.
Pudera! O capadócio
Em dois meses passou de caixeirinho a sócio.

Fonte: Artur de Azevedo. Contos em verso (contos maranhenses). Publicado originalmente em 1909. Disponível em Domínio Público . Convertido para o português atual por J. Feldman
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* Obs. do Blog: Têm livros que Artur tem h e outros não, quando este livro me chegou às mãos eu tinha criado a imagem como escrito em outro (com h).

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