sexta-feira, 27 de outubro de 2023

Jaqueline Machado (Isadora de Pampa e Bahia) - Capítulo 20: Reflexões

Quando Enila era criança, Vó Gorda sonhou que a menina poderia sofrer um acidente caso montasse cavalos. Por isso nunca montou. Ela não acreditava em previsões, menos ainda em previsões trágicas. Mas para não deixar seus pais preocupados, não montava. Só que naquele dia ela estava especialmente feliz. A data do casamento se aproximava, e na companhia do noivo, vindo de uma longa viagem junto de seu irmão, Bruno, ambos militares, se distraiu das preocupações que os pais tinham sobre a tal previsão, e montou. Primeiro, junto de Júlio, depois, sozinha. 

 Estou adorando – disse ela.

 Não te empolgues. Não estás acostumada – disse o noivo. 

 Vou treinar. E me assemelhar a uma amazona. Tu vais ver.

 O almoço está pronto – gritou Vó Gorda, da janela. 

– Mas, guria, desce desse animal, agora - ordenou. 

Enila obedeceu. E sorridente beijou seu amado. 

 Filha, não tem que ficar montando cavalos. Sossega.

 Calma, mãe, está tudo bem.

 Deixa a guria fazer algumas vontades – pediu o irmão com seu jeito despreocupado. 

 É, está tudo bem. Vamos almoçar em paz – disse o senhor Fiore.  

Vó Gorda recolheu em si, zangada. 

 Estou muito feliz. Hoje, Júlio me levou para ver a nossa futura casa. É tão bonita – disse Enila.

 Eu e seu pai passaremos lá mais tarde, minha filha.

 Ah, não deixem de ir... Já tem um jardim colorido e perfumado, pronto, e à nossa espera. 

Enila e Júlio passaram o resto do dia juntos, falando sobre o presente e sobre como seria viver futuramente num lar cheio de crianças.

 Eu quero ter cinco filhos. Quer dizer, três filhas e dois filhos homens – disse o noivo.

 É muito. Teremos um casal. – retrucou a prenda. 

 Enila, meu amor, quanto mais filhos, melhor. Imagina que coisa linda poder viver numa casa cheia de crianças brincando, correndo de um lado a outro.

 E também brigando, chorando, caindo, nos enchendo de sustos.

 Não sejas pessimista. 

As horas foram passando. O sol se despedindo, dando lugar à dona lua, a senhora entendedora guardiã de todos os mistérios da vida. 

No aconchego de sua cama, no calor macio dos cobertores, Enila abriu a Bíblia num trecho que a fez refletir: “Meus irmãos, considerem motivo de grande alegria o fato de passarem por diversas provações.” Tiago 1.2 

“Não passo por grandes provações... Minha vida é boa: comparo a um campo plano, reto, de gramado verde intenso, bom para sentar junto de quem amo e fazer piquenique. Não preciso escalar montanhas para superar as dificuldades do dia a dia, tampouco preciso lutar para realizar sonhos. A vida é muito generosa comigo. Minha vida é um pampa de céu aberto, aonde as bênçãos fizeram morada. Apesar de tudo, não sou mimada. Meus pais souberam me educar muito bem, e acho que não é errado pensar que possuo uma boa alma. 

No entanto, por vezes, fico a desejar passar por alguns percalços, me deparar com as contrariedades da existência. Não seria mais interessante viver entre os altos e baixos da vida? Penso no caso de Isadora, aliás, nos muitos casos que ela tem a resolver. A vida está sempre a testá-la. Ela sofre, mas veja só que paradoxo curioso: por vezes, ela parece mais plena do que o resto da humanidade. 

Não estou a invejá-la. A admiro com sinceridade. Ela é a irmã que meus pais não puderam me dar. Tenho mesmo muita sorte. Mas Isadora me deixa curiosa...

Talvez seja uma questão de capacidade. Não sei se eu teria talento para sobreviver a questões trágicas toda hora. Melhor parar de pensar. Quem sabe quando eu acordar o dia me traga algumas respostas para essas minhas repentinas e intrigantes perguntas....
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continua...

Fonte: Texto enviado pela autora.

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