Charleston nascera baiano e tivera no batismo um nome esquisito: José Perpétuo. Há muito, porém, que adotara aquele outro, dado pelo povo.
Charleston trazia na epiderme a cor das noites sem lua. Isto não impedia, entretanto, que soubesse ser atraente. E atraente sobretudo quando exibia, no riso cascalhante, aberto, permanente, a fila perfeita de seus dentes — uns dentes fortes, bonitos, muito alvos. Este particular é importante. Charleston não conhecia limites em sua jovialidade.
E se Vargas Vila — diante da extraordinária heroína de uma novela sua — atendeu ao “concurso do sangue” para explicar a maravilhosa “Flor del fango”, definindo-lhe o avô como “insurreto nato” e fixando-lhe na mãe a “passividade atávica” e na raça a mescla de índio indômito com espanhol aventureiro —, se Vargas Vila acendeu na alma desta hija del pueblo o áspero fenômeno hereditário —, com muita propriedade poderia o psicólogo acusar em José Perpétuo o quinhão da ancestralidade.
Filho de uma exuberante quitandeira de São Salvador (perita em dengues de toda espécie, ao soar de qualquer zabumba, e motivo certo e famoso de muitas rixas fatais), amancebada com um guapo mulato da polícia — que nos arraias baianos sabia, como ninguém, impor a ordem aumentando a desordem —, Charleston trazia no sangue a incrível impetuosidade tropical. A ele, pouco se lhe dava existisse ou não o travo da raça — dessa raça que vivia amassando a nostalgia com lunduns desabusados e gargalhadas enormes.
Charleston não entrava em tais cogitações. Do mundo, só lhe apetecia o lado risonho. Nem sabia que um soluço, quando escorraçado da garganta, dilui-se por inteiro em todas as células e aí fica — mínimo —, insignificante, sim, mas vivo, perigosamente vivo, até o desforço inevitável.
Charleston, quando eu o conheci, tinha brilhado já em várias atividades honestas. Caixeiro na Bahia, porteiro de cabaré no Recife, praça de bombeiros em Minas, chofer de ônibus em Porto Alegre, ferroviário não sei onde — o negro José Perpétuo passara por tudo isso sem jamais desvirtuar o entusiasmo, sem nunca banir dos lábios aquele riso invencível.
Foi como camelô que ele aportou a Curitiba. E tais triunfos alcançou na nova carreira que, na minha opinião, Charleston nasceu pra ser camelô.
É um portento o negro!
Ninguém, como ele, sabe tanto atrair a gente, com o desembaraço de sua fala, com o acento incomparável de sua voz, a um tempo forte e melodiosa. Ninguém, como o filho da quitandeira dengosa e do mulato valente da Bahia, é capaz de atravessar a rua nos momentos de maior movimento, apregoando a liquidação final de uma casa de sedas, ou demonstrando a eficiência de tal ou qual recente produto.
Às vezes Charleston tem de fazer reclame de determinada firma comercial. Lá o vemos, então, coberto de acolchoados e cobertores, mostrando apenas os olhos muito acesos e inquietos e a dentadura soberba.
Em outras, toca o momento das Casas Pernambucanas. E o negro surge travestido de mulher (saia de chita, tamancos barulhentos, brincos bamboleantes, pulseiras ordinárias), mergulhando as fazendas em uma bacia para demonstrar, à evidência, que as cores não desbotam.
Aconteceu, um dia, o inevitável. José Perpétuo procurou o vigário da catedral.
— Seu padre. Vim fazer um negócio com o senhor.
— Qual é, meu filho?
— O reverendo sabe qual é a minha profissão?
— Sei. Por quê?
— Porque... Porque eu quero fazer propaganda dos sacramentos...
O vigário arregalou os olhos, apavorado.
— Propaganda dos sacramentos?!
Charleston ficou gozando a estupefação do outro.
— Mas isto é incrível!
— Não há nada de incrível.
E explicou:
— O que eu quero, padre Estêvão, é me casar na semana que vem.
O vigário compreendeu a manha do preto. E voltou à pachorra anterior.
Tudo combinado, o camelô despediu-se. Na porta ainda se lembrou.
— Olha. Se a coisa for boa, vou fazer reclame dos sacramentos na rua, hein?
— !!
— Não se assuste, padre. Eu não cobro nada, não.
Casou-se de verdade.
Meses depois, era pai. Bem me lembro, agora, com que orgulho, nas conversas do Café Colares, Charleston me contava as graças do pequerrucho.
— É um encanto, seu doutor. Acredite. É um encanto...
Veio o carnaval. A cidade acordou ao toque mágico da folia. Espraiou-se, nas ruas, o desvario coletivo.
Dias antes, passara Charleston a fazer propaganda dos produtos carnavalescos. Supus que, dentro de si, restava apenas lugar para o “Vlan” e o “Rodo”, a serpentina e o confete, tal era a compenetração sua em apontar as superioridades de uma ou outra marca.
No segundo dia, percebi que o camelô trazia os olhos fundos.
— Ressaca braba! (pensei)
O preto, porém, não mais parecia o mesmo. Perdera o entusiasmo contagiante da véspera. Quando nos cruzamos, ele vinha atravessando a multidão, em silêncio.
— O que é isso, Charleston? Cansado, já?
O preto levou um susto.
— Ah!
Empinou o busto, meio encabulado.
— Não. Qu’esperança!
E continuou o pregão gracioso:
— Foliões de todas as pátrias! O Rodo metálico apresenta-se...
No último dia, o corso atingiu o auge. A Rua Quinze era um só aglomerado de doidos. Charleston apontou na esquina, cara lambuzada, carapinha borrada de confetes, dois enormes tubos na mão.
— Foliões de todas as pátrias...
Súbito, parou, ferido de mau pressentimento.
Voltou os passos. O bonde não tardou. Estava atopetado o veículo! E o pessoal fazia uma algazarra dos demônios. Charleston foi recebido com estrépito. Caiu-lhe na cabeça uma chuva de confetes.
— Alô, negro! Negrinho do coração!...
Não respondeu. Queria só que o bonde caminhasse depressa.
Qual nada! O movimento desusado a cada instante obrigava o motorneiro a trancar a manivela...
Um popular imitou-o em falsete:
— Foliões de todas as pátrias...
Ficou tonto com as gargalhadas intempestivas. Contraiu o rosto, angustiado.
Chegou, por fim, a sua vez. Desceu.
— Arre!
Enveredou, correndo, por uma viela mal cuidada. Alcançou a moradia em quatro minutos. Estacou na porta, com o coração aos pulos.
— Maria!
A mulher, ouvindo a voz tão sua conhecida, aumentou o pranto. Charleston avançou num ímpeto. E caiu soluçando sobre o catre.
O confete de sua carapinha começou então a sujar o rosto frio do garoto.
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Publicado originalmente Correio dos Ferroviários. Curitiba, janeiro de 1936
Fonte: Newton Sampaio. Ficções. Secretaria de Estado da Cultura: Biblioteca Pública do Paraná, 2014.
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