sexta-feira, 27 de outubro de 2023

Coelho Neto (Lavradores)

Encontraram-se em caminho e, como o sol abrasava, acolheram-se os dois à sombra da mesma árvore, cuja ramagem frondosa formava verde cúpula sobre a serena fonte. Velhinhos, ambos levavam ferros de lavoura e, sentando-se na alfombra, ficaram ouvindo o suave murmúrio d'água e o chilro dos passarinhos que voavam de ramo a ramo. E disse um deles:

— Bom vai o tempo para a sementeira. A terra está úmida e sente-se-lhe a seiva. O arado desliza fácil e, nos sucos que deixa, medra com vigor a semente. Vamos ter a compensação da miséria do ano passado, ano estéril de fome e de tristeza. Levo a taleiga (saco pequeno e largo) cheia e o que vai ao meu ombro, em fardo quase insensível, voltará do campo carregando com excesso os carros.

— Que levas para semeadura? 

— Linho e pão. E tu? – O outro sorriu sem responder. – Que terras lavras?

— Eu? terras eternas em que rebenta a flor, quer o sol seja ardente, quer as chuvas alaguem, nunca uma só das minhas sementes deixou de vir a jorros. Sou um homem feliz, as minhas terras são bentas.

— Quanto colhes no outono?

— Tenho abegão para tal serviço. Não sei quanto produzem as sementeiras que planto. Afirmo, porém, que são sempre fartas as colheitas do meu campo. A ti falta, às vezes, o sol; outras vezes é a chuva que não vem e ora vês o talhão esturrado, ora o encontras em alagadiço. Para os meus há sempre luz e há sempre rega: chamas de círios e fios de lágrimas. Os meus canteiros são lindos e a flor que deles sobe é a mais bela que Deus criou, nem há outras no Paraíso.

— E dá fruto?

— Sim, dá fruto.

Nesse tempo ouviu-se o rinchar do um carro e o velho, que falava da fertilidade da terra, soergueu-se dizendo:

— É o carro da minha herdade. São meus filhos que vão para a lavoura.

E disse o outro:

— Eu semeio e não me preocupo com o que fica na terra. A flor sobe e sobe tanto que é lá em cima, no céu, que exala o perfume. Deus colhe-a, extrai-lhe a essência e espalha-a pelo mundo.

— E o fruto?

— O fruto é o alimento melhor dos homens.

— Melhor que o pão?

— Melhor que o pão, porque é eterno. O trigo dá a farinha e morre; o fruto da minha sementeira não o devoram vermes, não o bicam passarinhos, as chuvas não o apodrecem, não o engelham os sóis. A flor chama-se Bondade; o fruto chama-se Exemplo. Olha em volta de ti e hás de ver a flor e o fruto das minhas plantações.

O velho relanceou o olhar em torno. Mas um rumor que se aproximava levou-lhe a atenção para a estrada: Era um grupo de crianças, de branco, que passava conduzindo um pequenino esquife coberto de rosas.

— Um enterro.

— Enterro!

— Sim, enterro de um anjo.

— Ainda bem, é a minha sementeira que passa. A sombra está deliciosa e a voz dos passarinhos mais afinada que nunca, mas a obrigação reclama-me. Eu sabia que tinha hoje uma roseira a plantar, deixei a cova pronta e lá vou ao serviço.

— Uma roseira?

— E que são crianças mortas senão plantas de flor? A roseira não dá mais que a rosa; a criança é apenas inocência. Os frutos são próprios das árvores de vida longa, são os benefícios de que gozamos nós outros: o linho tecido em pano, a farinha amassada em pão, o forno que cose a broa, a casa que nos abriga, o carro que vai ao campo, a azenha, a nora, o jugo, o ferro do arado, que é tudo isso? frutos da minha lavoura. Outros vieram depois, mais perfeitos, com a enxertia das raças, com o amanho mais cuidadoso do progresso e são as ciências que multiplicam os bens humanos. Tu és lavrador...

— E tu?

— Coveiro, lavrador também. Meu campo chama-se Eternidade, o meu outono é a Vida. Vai-te ao trigo e ao unho, eu vou ao enterro. O cemitério é a minha leira. 

Uma voz desferiu no bosque vizinho:
O amor é um bem que tortura
É o espinho d'uma flor;
Quem ama só tem ventura.
Quando sofre pelo amor.

Olharam-se os dois velhos e o lavrador de trigo e linho perguntou:

— Quem cantará?

— Que importa a pessoa? é o Amor. Essa voz que nos chega penetra a terra, chega às covas, acorda a vida no seio da morte, como o calor do sol atravessa a superfície do solo e faz estalar a semente que espalhas, tirando dela o renovo que se faz árvore. O que chamamos Amor chama-se, lá em cima, Fecundidade — é o apelo eterno à Vida. Como entendes de lavouras eu entendo de cemitérios e assim como falas, de colheitas fartas, eu posso falar da Eternidade. 

E adeus, vai ao teu trigo e ao teu linho, que eu vou agasalhar na terra a roseirinha mimosa.

Sementes e cadáveres... tudo germes. Coveiros somos ambos.

Adeus!

Fonte: Coelho Neto. Fabulário. Porto/Portugal: Livraria Chardron, de Ceio & Irmão, 1924. Disponível em domínio público.

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