sexta-feira, 30 de abril de 2021

Varal de Trovas 496

 


Jessé Nascimento (O Assaltante)

Era um local onde, diariamente, ocorriam muitos assaltos.

Parou indecisa ao pé da passarela, olhou para cima e sentiu-se um pouco amedrontada. Lá estava um homem de idade mediana, encostado no gradil. Sua aparência não era das mais recomendáveis. Às vezes seu olhar acompanhava alguns passantes, às vezes se perdia na observação dos veículos que transitavam nas diversas pistas.

O sol praticamente já declinara e o anoitecer empurrava  o restante da claridade do dia, a fim de iniciar mais uma vez o seu reinado.

Continuou indecisa. Enfrentaria a situação e subiria os degraus, correndo o risco de ser molestada e assaltada ou optaria pela possibilidade de ser atropelada ao tentar atravessar aquela perigosas pistas?

Os segundos - que pareciam eternizar-se - se passavam  e ela sem saber o que fazer. A aproximação de mais algumas pessoas, que também subiriam a passarela, fê-la tomar a decisão. Iniciou a subida, degrau a degrau, quando, na realidade, gostaria de vencê-los de uma só vez. O coração aos pulos. Os olhos fixos no homem, no perigoso homem atravessado em seu caminho.

À medida que subia foi ficando intrigada. O homem, completamente imóvel, estava olhando fixamente para o chão, pouco se importando com quem passava ao seu lado. Lá embaixo, os veículos rareavam por causa do semáforo fechado pouco atrás.

Terminou a subida e, ainda um pouco temerosa, apressou a caminhada. O homem não a molestara. Pelo contrário, continuava imóvel, olhos agora direcionados para os carros que se aproximavam com a abertura do semáforo.

Parecia mais alguém que estivesse  ali há horas pensando na vida. Talvez nem fosse um ladrão. Como ela fora idiota e como o julgara mal! Quem sabe fosse alguém esperando uma ajuda, sem coragem de pedi-la. Um trabalhador sem o dinheiro da passagem. Ou um desempregado sem saber o que fazer da vida. Talvez fosse até mesmo um ladrão esperando o melhor momento para agir.

Misturada a outros poucos passantes que ali transitavam, pois a maioria preferia arriscar-se atravessando as pistas, iniciou a descida do outro lado. Ao pisar no 2º ou 3º degrau, ouviu um baque surdo. Parou, assim como os demais, para ver o que acontecia. O medo cedera lugar à curiosidade. Estarrecida viu um corpo ricocheteando no teto de um ônibus, caindo na frente de outro e acabando por ser esmagado.

Voltou seus olhos para o local onde estivera seu possível assaltante.               
 
Não estava mais ali.

Rita Mourão (Poemas Escolhidos) 4

A VIDA E SEUS MISTÉRIOS

 
Curvada sobres minhas indagações, caminho.
Estou, mas não sei se estarei.
Nasci manchada de sangue
e as chagas do ontem ainda permanecem.
Há uma sentença de morte
sem que eu possa me defender.
Sibila no ar o grito rouco do carrasco invisível, mas cruel!
Sinto em meu corpo as dores do parto e da partida.
A estrada é só minha e o fim é meu fim.
E a vida, senhora de si e das horas me segue.
Com  os olhos de fera faminta.
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FINAL ABERTO
 
Sou um texto vivo repleto de hiatos, vírgulas e reticências.
Procuro interpretar-me e sem  respostas  me vejo refém do silêncio.
 Questiono-me
 e  aceito o desafio  de um final  aberto.
Fecho-me sem epílogo, sem garantia do amanhã.
Com o olhar de uma deusa pagã a vida tremula seus guizos.
E, para não morrer de angústia, POETIZO!
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INTROSPECÇÃO
 
Gosto de me olhar por dentro,
me  silenciar.
O silêncio me rende poesia.
No meu universo,
tenho   gosto de misturar  em minhas fantasias
as  pedras e ao sopro do vento,
segredos   da minha  cura interior.
O vento e as pedras me trazem  melodias
de outros tempos!
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MEU PASSADO

Meu passado?
Um chalé colorido com janelas de esperança
que  mostravam um horizonte acenando sonhos.
O  tempo  galopou  no dorso dos adeuses
e  me levou a outros horizontes.
 O chalé   perdeu a cor, as janelas se fecharam
e  os sonhos  se cristalizaram na memória.
O tempo  passou, sem respeitar sentimentos.
E eu sobre o que me resta, vou recriando  a vida.
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NÃO ME ROUBES DE MIM
 
Não me roubes os sonhos.
Quero que sejas a soma das minhas conquistas,
a âncora dos ideais que me levam ao mar
onde   sufoco  minhas carências de ti.
Não me leves do que sou,  não  me roubes a esperança.
Completa-me.
Enche-me da tua presença e serei uma enormidade.
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PREFERÊNCIAS

Passei minha infância nos arredores
de vastos campos e matas.
Por ter sido assim,
tenho um olhar contemplativo.
Sempre me transmudo
diante de um cenário verde.
Combino melhor com árvores,
pássaros e formigas,  isso eu sei ser e espiar.
Gosto de ouvir o gorjeio
das árvores que viram pássaros
para alegrar minhas carências.
E, para saciar a sede das ausências,
bebo copos de luares.
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UM JEITO DE AMAR
 
Chegaste  sem  aviso e cheio de improvisos
derrubaste  minha resistência.           
Não me disseste a palavra amor,
mas  exercitaste o verbo e o verbo era tudo.
Ofereceste-me  água e sal, rituais de completude.
Mataste a tua e a minha sede
e fizeste do amor um substantivo concreto.

Fonte:
Versos (Di) Versos. Disponível no site de Rita Mourão.

Célio Simões (O Drama da cheia)

As palavras com *, estão no glossário ao final do texto.
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Zé Lopes olhou desolado a imensidão líquida, inspirou profundamente, fazendo aquele gesto tipicamente latino de botar as mãos na cintura, apertar os olhos e balançar a cabeça... Realmente, para ele nada restava, a não ser arribar.

Equilibrado precariamente na cerca meio submersa, ele contemplava aquele cenário triste, sentindo um nó apertar-lhe a garganta. É que a enchente chegara!

Do seu terreno de várzea conseguido à custa de suor e privações, sobrara a copa dos igapós*, o caule retorcido das mungubeiras*, os vestígios da roça perdida. Zé previra a enchente e sabia do seu tamanho. Achara ovos de uruá* no alto do mourão que fincara para amarrar a montaria. O patinho d´água com seu canto agourento não calara durante todo o verão e a lua estivera sempre tombada para o lado esquerdo no dia de Ano Novo. Nada, portanto, era surpresa.

Os boatos iam e vinham. Falavam de fortes chuvas lá pras bandas do Acre e o sol teimando em permanecer aberto sobre um tal de Andes (?) derretendo muito gelo. Ele lembrava bem o dia em que fora buscar as vacas no pasto, a ventania espalhando a cabeleira dourada do taripucú*, quando tudo ainda era alegria e tranquilidade. Voltou com uma preocupação: o espraguejado do acauã*, peito estufado no alto do paricazeiro, cantava compulsivamente, chamando o aguaceiro.

Zé improvisou a maromba*. Esta lhe valeu a salvação das minguadas reses, ao todo, meia dúzia de vacas macilentas e um trôpego mamote*. Do pangaré sobrou a ossada no campo, transmudando-se em fogo-fátuo, abatido pelo ataque traiçoeiro da surucucu*. O que lhe restava estava ali, um lote esquálido e faminto, olhando esperançoso a premembeca* que flutuava descendo o Amazonas em ponto morto. Não havia como salvá-las.

O capim rareava e o tempo perdido em conseguir alguns peixes, fisgados ao fio da correnteza e trazidos na surrada igarité*, tirava-lhe a chance de socorrer a própria família. Esta, coitada, nem era bom pensar. O assoalho do barraco fora suspenso e eles andavam curvados, espremidos entre o teto de palha e o chão de pranchas de paxiúba*, vivendo o seu dia a dia miserável e ignorante, aferrados à reza diária e confortadora.

Nada obstante, Zé Lopes os amava. Sua mulher, a outrora “ajeitada” Joana, estava transformada pela gravidez, enjoando constantemente. A parteira já dera seu veredito: “Daqui a três meses, mais um curumim* vai chegar, se Deus quiser”. Zé ficou matutando que seria mais um para chorar de fome, como as outras três irmãs e o irmão. Joana, mesmo levando a tiracolo a imensa barriga (seriam gêmeos?), rebocando nas saias as cuiantãs* truíras e seminuas, era um braço com que ele sempre contava. Bem ou mal, nunca lhe faltara disposição para cuidar da chepa, remendar a roupa, preparar o glorioso caribé*e até dar um adjutório na estrovação do anzol, no preparo do espinhel*

Zé sentiu-se só, jogado naquela beira de rio, sem dinheiro, sem terra, sem remédios, quase sem comida e sem esperança.

Sem esperança? Não era então essa que morre por último? Por que iria perdê-la quando mais dela precisava, único bem que o gigantesco rio lhe poupara? Crispou a face com expressão determinada: jamais cairia sem lutar, nem permitiria aos vizinhos surpreendê-lo derrotado, no fundo do poço! Já demonstrara sua garra no cabo do terçado*, quando transformara em pasto a capoeira brava, reduzindo-a a pó nas cinzas da coivara*; sentindo na pele a inclemência do sol e das terríveis formigas de fogo brotadas das manhouranas. Iria mudar de vida.

Ainda era novo e poderia recomeçar de modo menos sofrido, labutar em algo que não fosse o permanente recomeçar permeado de medo e sobressalto. Aquilo – benza Deus – não era vida para cristão! Já bastava a lembrança da descomunal cheia de 1953, que de uma chuvinha besta virou um toró de mais de um mês, inundou os tesos, devastou os rebanhos e fez caboclo virar pedinte na cidade. E o que dizer daquela de 2009, o maior dilúvio que a Amazônia vivenciou nos últimos 50 anos?

Quem dera fosse todo o tempo verão! Zé apertava os olhos para ver como num filme a fartura de frutas, os ovos de tracajá*, o leite fresquinho, o piracuí* e o peixe abundante. Pasto nativo sobrando para o gado, a perder de vista. Mas aí vinha o inverno, o inverno trazia a cheia, a cheia trazia a fome, a fome trazia as dívidas. Porém seria aquele, o último ano de penúria. Um plano ousado teimava em sua cabeça. E se não desse certo? Mas daria, tinha que dar...

Caso o aguaceiro deixasse, venderia suas reses para o primeiro marchante, depois do reparador pasto da vazante. Aquele terreno provavelmente perderia, pois o banco, tão solícito na hora de emprestar a grana, não contemporiza com quem deve. Todo banco, oficial ou particular, realiza-se plenamente quando o cliente se torna escravo de sua própria dívida. Mas tudo bem. Talvez só com o dinheiro do gado... Era com esse dinheiro que faria o “milagre”.

A menos de uma hora de viagem de barco estava Óbidos e ali certamente acharia trabalho. O mesmo podia pensar de Santarém, distante umas oito horas rio abaixo. Nunca se imaginara naquela vida de cidade. Seria custoso partilhar seu espaço com carros, ter que andar todo tempo de sapato, aguentar o barulho do molecório próximo aos colégios e, acima de tudo, o suplício de saber que a parede de sua casa é também a parede do vizinho.

Ainda por cima, teria que pagar luz e água, principalmente esta, que no momento o Amazonas lhe impunha abundante e de graça. Em contrapartida, naqueles mesmos colégios barulhentos seus filhos poderiam estudar, aprender ao menos a escrever o nome. Sua Joana poderia lavar roupa de algum “barão” e quanto a ele... bem, ele acharia trabalho, disposição não lhe faltava; quem sabe fazendo carreto ou como braçal da prefeitura, na capinação de rua, agora que a lida com a juta e a castanha tinha fracassado e emprego andava vasqueiro*.

Em Óbidos, bem que tentou arranjar emprego no dia do Círio de Sant’Ana*, quando falou com o deputado que estivera em sua casa no ano anterior mendigando voto para se reeleger, prometendo-lhe mundos e fundos. O pilantra fez que não o conheceu, desconversou, disse que não podia ajudar, que nem mesmo se lembrava dele. Ficou arrasado.

O certo é que seu compadre Manoel, conhecido nas arpoações de pirarucu como “Manduca Mãe do Sono”, estava feliz da vida vivendo por lá, fazendo não se sabe bem o quê, ele e seu filho mais velho de 13 anos, que de tanto estudar ficou bamba na tabuada e já dava “quinau” em gente grande, sem ligar para enchente, gado ou fome. E olha que o Manduca, salvo sua disposição como pescador, era até meio indigno para outras tarefas, tanto que entre uma e outra tarrafeação*, vivia escornado pelos cantos tirando uma pestana, daí o apelido. Há dois anos ele abandonara a várzea, foi pra cidade e nunca mais pensou em voltar. Se com aquele desinfeliz dorminhoco dera certo, por que não daria com ele, que não enjeitava serviço?

Lá no bairro da Cidade Nova, que o prefeito da época criou para moradia de gente pobre, aterrando impiedosamente o Igarapé do Juncal, compraria uma barraca. Depois levaria a família, trabalharia que nem jumento de verdureiro, mas educaria os filhos. Seu caçula – que ainda estava na barriga – não iria sofrer como os outros. Seria livre para brincar em terra firme, longe das cobras, das sanguessugas e das dolorosas mordidas das formigas tracuás*. Olhou novamente a cidade, na contraluz da tarde que se findava.

As torres da Catedral de Sant’Ana, como que espetando o céu, faziam redobrar sua fé da padroeira, a quem dirigiu muda e emocionada súplica. Concordasse ou não Joana, aquele plano tinha que ser tentado. Fugir para a cidade para não morrer à míngua, era a saída que lhe restava. Olhou sua própria imagem refletida na água. Vestia andrajos. Haveria de dar certo...

Por entre a chiadeira asmática do velho rádio de pilha, outro salvado da enchente que já lhe arrebatara a parabólica, distinguiu os suaves acordes da Ave-Maria, inspirando a quietude das seis horas. Tornou a olhar e viu Joana aproximar-se, andar arrastado, escolhendo aonde pisar no precário madeirame. Notou algo estranho naquela fisionomia abatida que um dia achara bela. Alguma coisa de anormal acontecera.

– Zé, meu velho, os meninos tão com febre alta e o corpo sarapintado. Acho que é catapora. Antes que esta maldita enchente mate, vende as nossas vacas para que a gente cuide deles...

Zé Lopes ficou cabisbaixo. Esmagado por mais aquele imprevisto, torturado pela ideia de permanecer naquele tijuco* sabe-se lá por quanto tempo mais, deixou escapar um suspiro profundo. Levantou-se, olhou em torno como que procurando alguma coisa e meio vacilante tomou o rumo da barraca, na qual entrou praticamente agachado, espremido entre a ponte tortuosa e o beiral superior da porta. Que m... de vida, pensou!
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Glossário:
ACAUÃ = ave falconiforme com cerca de 47 cm de comprimento, plumagem amarelo-creme, dorso escuro, com faixa negra, que se estende até a nuca, e cauda negra, barrada de branco. Seu canto, emitido no crepúsculo e ao alvorecer, é considerado mal-agourado e prenunciador de chuvas.
CARIBÉ = alimento líquido, cujo ingrediente primeiro é a farinha de mandioca. Inventado pelos caboclos da Amazônia paraense que atribuem ao alimento carga curativa, sendo capaz então, de fortificar, sustentar e restabelecer aqueles sujeitos que por ventura tenham sido acometidos por alguma enfermidade.
DIA DE CÍRIO DE SANT’ANA – festa religiosa no 2º Domingo do mês de julho e marca “o início dos festejos de Nossa Senhora Sant'Ana”, Padroeira da Diocese e da Paróquia de Óbidos.
COIVARA =galharia e troncos derrubados pelas cheias e que descem os rios.
CUIANTÃ = moça, mulher jovem.
CURUMIM = garoto, menino.
ESPINHEL = artefato para pesca de fundo composto de uma linha forte e comprida com várias linhas curtas presas a ela, a intervalos regulares, cada uma com um anzol na ponta.
IGAPÓS = vegetação baixa e uniforme da floresta amazônica, pobre em espécies, com árvores afastadas.
IGARITÉ = embarcação cargueira do Amazonas com capacidade até 2 t.
MAMOTE = filhote crescido que ainda mama.
MAROMBA = cabo de aço ou de fibra vegetal, suspenso de uma margem à outra de um curso de água, sobre o qual os tripulantes das embarcações de travessia exercem tração manual para fazê-las deslocar
MUNGUBEIRA = árvore de até 25 m de folhas compostas, flores eretas e frutos capsulares, com paina fina e pardacenta; Nativa da Amazônia, é usada para a extração de celulose e de fibras para cordoaria.
PAXIÚBA = palmeira de até 20 m do Amazonas e outros estados e países da região, especialmente em áreas alagadas, com características raízes-escoras, estipe fino e anelado, folhas pinadas e frutos ovoides, amarelo-avermelhados, cuja madeira é usada pela população ribeirinha para a confecção de bengalas e tabuados, e pelos indígenas para a confecção de arcos, flechas e lanças.
PIRACUÍ = iguaria feita de peixe seco em pó.
PREMEMBECA = tipo de capim que forma grandes aglomerados ao longo dos rios e em suas várzeas.
SURUCUCU = serpente venenosa de grande porte, pode alcançar 2 m ou mais de comprimento, e apresenta colorido marrom-amarelado com grandes manchas triangulares pretas. É a maior serpente venenosa da América do Sul.
TARIPUCÚ = espécie de capim.
TARRAFEAÇÃO = puxar boi pelo rabo para derrubar.
TERÇADO = facão grande.
TIJUCO – lugar de solo mole, charco, pântano.
TRACAJÁ = tartaruga de água doce encontrada nos rios amazônicos, com cerca de 50 cm de comprimento, carapaça abaulada, pardo-escura, e cabeça com manchas alaranjadas. Os ovos, colocados nas praias dos rios, são apreciados pelo povo amazônico.
TRACUÁS = formigas da Amazônia, que vive em cupinzeiros arborícolas abandonados e forma colônias numerosas. É agressiva e solta cheiro forte quando esmagada.
URUÁ = palmeira de até 20 m, nativa do Amazonas, de estirpe anelado, folhas verde-reluzentes e frutos drupáceos
VASQUEIRO = difícil de conseguir, de encontrar.


Fonte:
Texto e foto da cheia enviado pelo autor, de seu livro “Um pouco de muitas histórias”. 1. Edição. Editora TrêsC, 2016, pág. 81/85.

quinta-feira, 29 de abril de 2021

Sammis Reachers (É uma macumba? É um despacho? Não, é um despachante!)

Luiz Antônio (Nome de guerra: "Macumba") é um despachante atualmente em atividade na Auto-Lotação Ingá. Antigo e experimentado malandro, morador da Baixada, rodado nos paranauês e na Central do Brasil, e com conhecidos entre bandidos e milicianos. É também um cara zoador e sacana, sempre pronto pra fazer a galera rir (mesmo sem querer!) com sua expressão brava, mas divertida.

Numa certa época, Macumba era despachante do turno da manhã no bairro de Charitas, ponto final das então três linhas 62 (Fonseca / Sta. Bárbara / Caramujo x Charitas). Seu parceiro de então, o despachante da tarde, era o Lucas, jovem centrado e de grande capacidade, então recém-promovido de cobrador a despachante.

Todos os dias, ao chegar ao ponto para a rendição, Lucas perguntava a Macumba qual era o último carro que ele marcara e o horário do mesmo. Assim, Lucas iniciava seu mapa (planilha onde se marcam os horários dos ônibus da linha) a partir daquele último ônibus marcado.

Ah, antes de continuar deixem-me abrir um parêntese: Na Ingá e em algumas outras empresas há uma disputa silenciosa, um torneio secreto para saber qual despachante tem a letra mais feia e incompreensível. Na Ingá a disputa era acirrada: Macumba de um lado, Adão de outro, Paulo Maluco (Lobisomem) na outra ponta e por fim o baixinho do Eduardo, que muitos acreditavam ser o campeão. Mas a disputa estava em aberto, e, como veremos, prestes a decidir-se.

Um belo dia, Lucas chega ao ponto e, apanhando sua prancheta, rotineiramente principia a preencher seu mapa de horários. Há um ônibus parado no ponto, o último que Macumba marcara, Lucas, como era corriqueiro, pergunta ao enfezado Macumba qual fora o horário que ele marcara para aquele carro. Ao olhar em seu mapa, Macumba arregala os olhos, em seguida aperta-os, como quem se esforça para enxergar algo pequenino, e por fim percebe que não pode compreender o que ele mesmo marcara. Isso mesmo, o bruto não conseguia entender a sua própria letra.

Na dúvida, foi até o veículo e pediu a ficha ou guia ao motorista. Ao olhar o horário escrito na ficha, novamente não entendeu a própria letra. E por sinal, nem mesmo o motorista entendera nada. E nem Lucas, que também fora olhá-la. A confusão estava estabelecida. Macumba então pergunta ao motorista:

- Está ruim de entender... Você não se lembra que horário que eu falei, não?

- Hum, Macumba, eu não me lembro não. Mas uma coisa eu sei: um camarada não entender a própria letra, isso eu nunca vi.

A galera próxima caiu na gargalhada. Para arrematar, o despachante Lucas, vendo um pratinho de quentinha jogado na lixeira do ponto, perguntou a Macumba:

– Já almoçou?

– Já sim, almocei onze horas,

– Comeu o que hoje?

Macumba pensou um pouco... E pensou mais um pouco... E depois de uma última e forte pensada, concluiu:

– Xará, sabe que eu não sei?

Fonte:
Ron Letta (Sammis Reachers). Rodorisos: histórias hilariantes do dia-a-dia dos Rodoviários.
São Gonçalo: Ed. do Autor, 2021.
Livro enviado pelo autor.

Professor Garcia (Poemas do Meu Cantar) Trovas – 8 –

A chuva que cai do teto
pelo zinco a noite inteira,
é partitura de afeto
na voz de cada goteira!
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Ah, mãe! Ao me por de joelhos,
em silêncio e de mãos postas,
quero ouvir bem teus conselhos,
ante enigmas sem respostas!
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Ante os mistérios da vida,
posso afirmar sem maldade,
que do pão da despedida
se faça o pão da saudade!
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Bem-vinda a chuva que encerra,
a seca triste, inclemente,
e rega o ventre da terra,
para brotar a semente!
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Crer num ser supremo, eu creio!
À fé, me curvo e me entrego;
a prova é não ter receio
de crer na cruz que carrego!
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Disse ao cego, ante o bom gosto,
ao vê-lo partindo o pão:
– Se te falta a luz do rosto,
sobra luz no coração!
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Em teus chinelos, meu pai,
deixaste, em cada viés,
uma impressão que não sai,
das digitais de teus pés!
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Hoje, eu retirei do armário,
minha velha antologia;
meu primeiro breviário
das lições de cada dia.
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Mesmo com a vida aos frangalhos,
segue o pobre sem tardança,
buscando em falsos cascalhos
pepitas vãs de esperança!
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Não há luxo no meu rancho;
fiz igual ao passarinho
que, com sargaço e garrancho
tece o luxo do seu ninho!
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Não sei se tu me permites
que eu te dê explicação:
– A um velho amor, sem limites,
não se impõe mais permissão!..
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Nem precisa que te peça,
mas me apresso e peço agora:
– Ó lua, volta depressa,
que a noite negra te implora!
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Numa longínqua tapera,
ainda vi, enclausurados...
Meus sonhos de primavera,
e outros sonhos sepultados!
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Nunca se dá passos vãos,
quando outra vida se arruma;
é que o amor perfuma as mãos,
de quem, outra mão perfuma!
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O ciúme, que o amor cerceia,
causa entre nós tal revés,
que vê falsos pés na areia
sem ter marcas de outros pés!
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O nosso amor tem por lema,
a perfeição de uma flor;
e essa flor, virou poema
de linda história de amor!
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O sol, que a manhã decora,
carrega em seus alfarrábios,
o rubro riso da aurora
na cor rubra de seus lábios!
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Pela cruz apedrejada,
à distância, se deduz
quanto sofre a alma penada,
pelo desprezo da cruz!
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Qualquer lição de virtude
que em minha alma ainda vive,
é sobra da juventude
da infância pobre que eu tive!
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Quando a noite estende os braços
ofuscando a luz da lua,
o silêncio, apressa os passos
da solidão pela rua!
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Que dor, que vazio imenso,
quando partes para o mar!...
Do barco, acenas teu lenço,
no cais, meu lenço, a acenar!
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Sê como o Sol!... Pelo brilho,
não cobra o bem que nos faz.
Só quem faz o bem, meu filho,
põe os pés no chão da paz!
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Se tu tens fé, larga o tédio
dessa dor que te entorpece,
e põe teu mal sem remédio
nas mãos santas de uma prece!
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Só depois que o sol desmaia
e a noite acelera o passo,
a lua cor de cambraia
faz versos brancos no espaço!
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Solitário, um monge velho,
interpreta com ternura,
no silêncio do evangelho,
a solidão da clausura!
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Só pelo amor, se descobre,
o que a pobreza revela;
Que a vida humilde é mais nobre,
se o amor é a riqueza dela!
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Teu olhar, luz de minha alma,
lindo entre as luzes pagãs,
que brilham mantendo a calma
do sol de minhas manhãs!
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Teu regresso, não me importa;
o tempo já dá sinais,
da esperança quase morta,
nos braços de um "nunca mais"!
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Tua ausência não me cansa,
nem me canso de te amar;
por ser servo da esperança,
vale a pena te esperar!

Fonte:
Professor Garcia. Poemas do meu cantar. Natal/RN: Trairy, 2020.
Livro enviado pelo autor.

Figueiredo Pimentel (O Macaco e o moleque)

Iaiá Romana era o apelido porque toda a gente conhecia uma velhinha que possuía uma bela roça, onde havia além de muitas outras frutas, uma bela plantação de bananeiras.

Quando as bananeiras estavam carregadas de cachos, a velha não tinha por quem mandar tirá-las, se sorte que ficavam maduras, e eram comidas pelos passarinhos, ou apodreciam.

Um dia, apareceu-lhe na roça um macaco, que lhe disse:

– Ó tiazinha, por que é que a senhora não colhe essas bananas, que já estão maduras, e não as põe na dispensa? Se não tiver quem lhe faça esse serviço, aqui estou eu, ao seu dispor.

Romana aceitou o oferecimento. O macaco, porém, assim que se pilhou trepado nas bananeiras, começou a comer as maduras e jogar as verdes para a velha, que, desesperada, jurou vingar-se.

Desde esse dia, vivia constantemente a procurar um meio de apanhá-lo. Qual! O bicho era esperto, e ela ficava sempre lograda.

Mas, um dia, a velha lembrou-se de fazer uma figura de alcatrão, fingindo um moleque, e colocou-lhe um tabuleiro de bananas bem madurinhas no cabo, como, se as estivesse vendendo.

Poucas horas depois apareceu o macaco. Supondo que era mesmo um pretinho, pediu uma banana. O moleque ficou calado.

– Moleque, dá-me uma banana, senão levas um sopapo! gritou.

O moleque permaneceu calado, e o macaco desandou-lhe a mão, ficando com ela grudada no alcatrão.

– Moleque, larga a minha mão, senão levas outro sopapo!... repetiu o macaco.

E o moleque sempre calado.

O macaco soltou outro bofetão, e ficou com a outra mão grudada.

– Moleque! moleque! larga as minhas duas mãos, senão levas um pontapé!... berrou o mono, enfurecido.

Como é bem de ver, o moleque calado estava e calado continuava.

O macaco deu-lhe um pontapé, ficando com o pé preso.

– Moleque dos diabos, larga meu pé que te dou outro pontapé! exclamou.

E o moleque calado.

O macaco deu outro pontapé, e ficou com os pés presos.

Aí não se conteve mais, e disse:

– Moleque dos infernos, larga os meus dois pés e as minhas mãos, senão te dou uma umbigada!

E o moleque calado.

O macaco deu-lhe uma umbigada, e ficou completamente agarrado ao alcatrão.

Assim que o viu preso, Iaiá Romana apareceu, foi ao mato, cortou umas varinhas, e começou a dar-lhe com toda a força uma sova enorme, enquanto ia dizendo:

– Eu não te disse, macaco, que havias de me pagar? Toma lá agora, para não vires caçoar comigo!

O macaco tanto se debateu, que afinal conseguiu se livrar do alcatrão, e nunca mais quis graças com a velha Romana.

Fonte:
Alberto Figueiredo Pimentel. Histórias da Avozinha. Publicado em 1896.

quarta-feira, 28 de abril de 2021

Adega de Versos 16: Junior Adelino

 

Carlos Drummond de Andrade (Trem de Contos) 23, 24 e 25


O ANTICIRCO


— É preciso inventar alguma coisa — disse o sapo. — Alguma coisa de novo, surpreendente. Pular ao som do fandango paranaense já está me tirando a alegria de viver. Eu queria pular ao ritmo da Marselhesa, por exemplo.

— Não te fica bem a Marselhesa — ponderou o caxinguelê. — Não só é antiquada, como o teu jeito é mais para o folclore do Sul. Talvez uma
rancheira, uma polquinha de galpão fosse mais indicada. Mas o caxinguelê também não andava satisfeito com o seu número.

Ágil e serelepe como é de natureza, tinha de imitar o filho de Guilherme Tell, imóvel, com a maçã na cabeça, esperando a flechada paterna. O pai era representado por um macaco simpático, que alimentava o desejo de, lá um dia, acertar no caxinguelê.

— Não tenho vocação para estátua nem para vítima. Vou deixar este circo, a menos que me nomeiem gerente. Tenho vocação para gerente,
você sabia?

O sapo não sabia nada. Estava farto de fandango, que o obrigava a uma dança inconveniente para sua idade e condição. De resto, nenhum animal daquele circo sentia prazer executando o número que lhe deram. Era o circo mais inconformado que já existiu.

Seu dono ignorava isto, porque morava longe e nunca assistiu a uma
função.

O circo jamais pegou fogo. Seus animais descontentes constituíam a maior atração. Cada vez seduziam mais público. Era o anticirco.
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O ASSALTO

A casa luxuosa no Leblon é guardada por um molosso de feia catadura, que dorme de olhos abertos, ou talvez nem durma, de tão vigilante. Por isso, a família vive tranquila, e nunca se teve notícia de assalto à residência tão bem protegida.

Até a semana passada. Na noite de quinta-feira, um homem conseguiu abrir o pesado portão de ferro e penetrar no jardim. Ia fazer o mesmo com a porta da casa, quando o cachorro, que muito de astúcia o deixara chegar até lá, para acender-lhe o clarão de esperança e depois arrancar-lhe toda ilusão, avançou contra ele, abocanhando-lhe a perna esquerda. O ladrão quis sacar do revólver, mas não teve tempo para isto. Caindo ao chão, sob as patas do inimigo, suplicou-lhe com os olhos que o deixasse viver, e com a boca prometeu que nunca mais tentaria assaltar aquela casa. Falou em voz baixa, para não despertar os moradores, temendo que se agravasse a situação.

O animal pareceu compreender a súplica do ladrão, e deixou-o sair em estado deplorável. No jardim ficou um pedaço de calça. No dia seguinte, a empregada não entendeu bem por que uma voz, pelo telefone, disse que era da Saúde Pública e indagou se o cão era vacinado.

Nesse momento o cão estava junto da doméstica, e abanou o rabo, afirmativamente.
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O BEBEDOR TOTAL

— O senhor tem lista dos uísques importados?

— Aqui está. Tenho certeza de que encontrará a sua marca preferida.

Explicou que não era de preferir marca. Preferia todas. Seu prazer consistia em ir do Ancestor ao White Horse, não desprezando nenhum dos que começam pelas demais letras do alfabeto.

O gerente ficou assombrado. Que bebedor enciclopédico!

— Noto uma coisa. A lista me parece bastante lacunosa. O senhor não tem uísques das letras E, I, K, M, N, Q, T, U, X, Y e Z. É pena.

— Perdão, mas será que não bastam as cinquenta e tantas marcas que ponho à disposição?

— Não, infelizmente. Queria o abecedário completo.

— E… iria comprar todo ele?

— Comprar? Absolutamente não. Não pretendo comprar sequer uma garrafa. Com esses preços, nem mesmo as miniaturas, sabe? Eu sou bebedor de lista. A lista me invoca, me embriaga, me transporta ao sonho. Mas só uma lista bem completa. Obrigado, passe bem.

Fonte:
Carlos Drummond de Andrade. Contos plausíveis. Publicado em 1981.

Laurindo Rabelo (Poemas Escolhidos) V

SUSPIROS E SAUDADES


Depois de tantas perdas só restou-me
Na soledade,
Em que deixou-me a dor, para consolo
Roxa saudade.

Esta flor, tão estéril nos prazeres,
Quando em retiro
Quase sempre do seio magoado
Brota um suspiro.

Achava estes suspiros e saudades
Encantadores,
Embora fossem flores da tristeza,
Sempre eram flores.

Demais, quem tem das ditas deste mundo
Chegado ao termo,
Quem traz de ingratidões e desenganos
O peito enfermo;

Quem tem com a flor que às almas venturosas
Do prazer fala?
Que ao ver-lhe o coração trajando luto
Traja de gala?

A tristeza que tendes, minhas flores,
É vosso encanto.
E como éreis formosas orvalhadas
Pelo meu pranto!

Mas secastes também?! Faltou-vos água?
Demais tivestes.
Fogo? Desde nascidas sempre em chamas
De amor vivestes.

Secastes? Com razão, que destas flores
Certo não é
Verdadeiro alimento, água nem fogo
Faltando a fé.

Vivem com fogo e água, se dos prados
Nascem no chão;
Mas não se flores d’alma dentro d’alma
Nascendo vão.

Quando morta a f’licidade,
A fé expira também!
Saudades de que se nutrem?
Os suspiros que alvo têm?

Morta a fé, vai-se a esperança,
Como pois viver pudera
Saudade que não tem crença,
Saudade que desespera?

Onde as graças do passado,
Se altivo gênio sanhudo
O ceticismo nos brada,
Foi mentira, engano tudo?

Em nada creio do mundo:
Ludibrio da desventura
A felicidade me acena,
Só de um ponto — a sepultura.

Morreram minhas saudades,
E meus suspiros calados
Dentro d’alma pouco a pouco
Vão morrendo sufocados.
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À TERRA NATAL *

Adeus!... Vou procurar talvez um túmulo
Longe do teu regaço.
Nunca me foste mãe, mas sou teu filho,
Concede-me um abraço!

Abençoa-me! — Parto; dá-me a bênção!
Que ao filho desgraçado,
Mesmo o ser infeliz dá mais direitos
A ser abençoado.

És rica, eu nada tenho; mas ao nada
Me soube acostumar;
Dispenso os teus tesouros, mas a bênção
Não posso dispensar.

Adoro-a, quero-a, sim; porque custou-me
Aspérrimo desgosto,
Torturas inauditas, conservar-lhe
Sem manchas este rosto.

Quero de filial doce ventura
Encher meu coração,
Revendo nela, filho abençoado,
A minha filiação.

Nunca me foste mãe pelos carinhos;
Ao menos um sinal
Dá-me, dá-me de mãe, que sou teu filho,
Na bênção maternal.

Adeus!... Perdoa se me queixo; as queixas
Que exalo em minha dor
Ofender-te não devem, que são filhas
De meu ardente amor.

Esses braços ao filho que se aparta
Estende por quem és,
Que o filho por teus braços abraçado
Abraçará teus pés!...
–––––-
*Escrita quando o poeta partiu para a Bahia para concluir seu curso de Medicina.
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ÚLTIMO CANTO DO CISNE

Quando eu morrer, não chorem minha morte,
Entreguem meu corpo à sepultura;
Pobre, sem pompas, sejam-lhe a mortalha
Os andrajos que deu-me a desventura.

Não mintam ao sepulcro apresentando
Um rico funeral d’aspecto nobre:
Como agora a zombar me dizem vivo,
Digam-me também morto — aí vai um pobre!

De amigos hipócritas não quero
Públicas provas de afeição fingida;
Deixem-me morto só, como deixaram-me
Lutar contra a má sorte toda a vida.

Outros prantos não quero, que não sejam
Esse pranto de fel amargurado
De minha companheira de infortúnios,
Que me adora apesar de desgraçado.

O pranto, açucena de minh’alma,
Do coração sincero, d’alma sã,
De um anjo que também sente meus males,
De uma virgem que adoro como irmã.

Tenho um jovem amigo, também quero
Que junte em minha Essa os prantos seus
Aos de um pobre ancião que perfilou-me
Quando a filha entregou-me aos pés de Deus

Dos meus todos eu sei que terei preces,
Saudades, lágrimas também;
Que não tenho a lembrança de ofendê-los
E sei quanta amizade eles me têm.

E tranquilo, meu Deus, a vós me entrego,
Pecador de mil culpas carregado:
Mas os prantos dos meus perdão vos pedem,
E o muito que também tenho chorado.

Fonte:
Laurindo Rabelo. Poesias completas.

Rubem Braga (O Amigo sonâmbulo)

Na semana passada chegou a Primavera; na semana que vem são as eleições, e no futebol já teve início o returno; eia, pois, ergue-te, cronista, e cumpre o teu dever. Mas o cronista sonha; nem as açucenas primaveris nem a cívica peleja nem o clamor do Maracanã o despertam; será morfina, será maconha, será amor? Será amor? Talvez apenas um vago sonho de amor. Ele sorri; alguém lhe falou da bem-amada de um amigo, a que se vestia de rendas negras e tinha ao ombro uma rosa-chá; sorri como quem manda em silêncio um recado: sede felizes. Para si mesmo ele não pretende isto; nem pensa.

Ama? Animula vagula, blandula essa que ama, sonâmbulo. Muito antigamente já terá sido mulher, e amor. Mas ficou tão longe, se fez tão longe, que é uma sombra junto a si, pairando... Amiga? Ele se humilha. A amiga é feito a crase, no tempo em que Ferreira Gullar era poeta e, no lugar de dizer ema lema eva leve leva leme, dizia: “a crase não foi feita para humilhar ninguém”, e ouvia o galo cantar, e sabia aonde; agora ninguém sabe mais. Talvez saibam, não digam.

Importa pouco. Os galos cantam em direção do Oriente; dê sua direita ao amor, fique de frente para o passado, terá o remorso à esquerda e a sombra da morte às suas costas. A boa sombra; a que virá crescendo devagar, e então você não sonhará, não desejará sequer beijar o pé da amada, não se angustiará, não será mais.

Esta é, na verdade, a grande consolação. Mas entrementes ainda estamos vivos, todos nós, mesmo ele, o sonâmbulo; e na vida há sol, há ventos, rios correndo, ondas a estourar nas pedras. Isso não desperta o sonâmbulo, mas o agita. Está dopado de amor.

Como lhe devolver a dignidade? A ele, que já teve gestos ásperos; e ia calado; ia; topava; era duro, viril. Amar não é viril. Isto é, amar assim, sem esperança de ser amado, amor de menino burro ou doente. O sentimento que ele tem de estar sobrando na vida, de ninguém precisar dele: vaga estima, tolerância amiga. Viajou.

“Ah, viajou? Mas escute, você já viu esse filme do Metro?” Ou: “Falar nisso, e aquele amigo dele que esteve na Rússia, como é que se chama?” Enfim, qualquer frase serve de necrológio ao desamado ausente.

Certo, Manuel Bandeira fala de uma “limpa solidão”, ou alguém disse isso dele. Não creio. Solidão limpa só com vassoura e aspirador permanente: a solidão do homem é cheia de detritos, lembranças, pequenos fantasmas que são como objetos inúteis, quebrados, em um porão, nomes riscados em um caderno de telefones, teias de antigas aranhas.

Mas por que lamentar o sonâmbulo? Ele sorri. Neste momento, ao menos, está feliz. Seus dedos movem-se, como se acariciassem os cabelos da amada, a esquiva nuca. Murmura: vem... Isso, entretanto, nos corta o coração. Podíamos prendê-lo em um banho turco para suar suas melancolias, mandar-lhe um jato de água fria, ataca–lo para que reaja, despertá-lo com gargalhadas para que acorde banhado em ridículo e chore, leve um tapa na cara, tome dexamyl spansule, morda pimenta malagueta, viva! Ou apelaremos para a psicanálise, o hipnotismo, a lavagem de cérebro, a propaganda subliminar durante o banho de mar?

Na verdade, temos outras coisas a fazer e desistimos tacitamente de jamais recuperar o sonâmbulo; vamos disfarçando, disfarçando até que um dia ele morra e então diremos sem muita hipocrisia: coitado.

Fonte:
Rubem Braga. Ai de ti, Copacabana. Publicado em 1960.

Estante de Livros (O Santo e a Porca, de Ariano Suassuna)

Eudoro Vicente manda uma carta a Eurico dizendo que lhe pedirá o seu bem mais precioso.

Na casa do comerciante, moram a filha Margarida, a irmã de Eurico, Benona, a empregada Caroba e, já há algum tempo, Dodó, filho do rico fazendeiro Eudoro. Dodó vive disfarçado, finge-se de torto, deformado e sovina. Assim conquistou Eurico, que lhe atribuiu a função de de guardião da filha, quem Dodó namora às escondidas.

O desenrolar dos fatos se desencadeia com a carta enviada por Pinhão, empregado de Eudoro e noivo de Caroba, empregada de Euricão. Eudoro informa que fará uma visita para pedir esse bem tão precioso a Eurico, que fica apreensivo, pois pensa que lhe pedirá dinheiro emprestado. Eurico insiste em de dizer pobre, repetindo as frases: "Ai a crise, ai a carestia".

Na sala da casa de Eurico, onde as cenas se desenrolam, há uma estátua de Santo Antônio, de quem Eurico é devoto, e uma antiga porca de madeira, a quem ele dedica especial atenção e que logo o público saberá que esconde maços de dinheiro.

Caroba, muito esperta, percebe que Eudoro pedirá margarida em casamento, é assim que ela entende o bem mais precioso de Eurico que o fazendeiro, pai de Dodó, quer saber. Então ela arma um circo para alcançar alguns objetivos: ganhar algum dinheiro, pois quer casar com Pinhão, casar Dodó e Margarida além de Eudoro e Benona, que já tinham sido noivos há muitos anos. Eudoro, viúvo, querias Margarida, mocinha; Benona, solteirona, queria Eudoro, fazendeiro; Margarida queria Dodó, pois o amava; Caroba e Pinhão se queriam; Euricão queria a porca, ou será que queria a proteção de Santo Antônio para a porca?

Caroba negocia uma comissão com Eurico para ajudá-lo a tirar vinte contos de Eudoro Vicente, antes que este peça dinheiro a Eurico. Acertam-se. Aí Caroba convence Benona que Eudoro virá pedi-la em casamento e se dispõe a ajudá-la. São então tramas de Caroba: fazer Eurico pedir vinte contos a Eudoro para o casamento (na realidade, para um jantar); convencer Benona de que Eudoro viria pedi-la em casamento; fazer Eudoro acreditar que pede Margarida; fazer Eurico crer que Eudoro pede Benona; armar um encontro entre Eudoro e Margarida na penumbra; ficar no lugar de Margarida, com o vestido dela.

Consequências das armações de Caroba: Dodó sente ciúme de Margarida, pois pensa que ela irá encontrar-se com Eudoro; Pinhão sente ciúme de Caroba quando sabe que ela irá em lugar de Margarida; Euricão desconfia que querem roubar sua porca recheada, pois ouve falarem em devorar porca e pensa ser a sua, quando é a do jantar que se encomendou para receber Eudoro; Pinhão desconfia de Eurico e o observa, porque este age estranhamente.

Na hora do encontro entre Margarida e Eudoro, Caroba tranca Margarida no quarto, manda Benona permanecer também no seu e vai, vestida de Margarida, receber Eudoro. Dodó vê Caroba e pensa ver Margarida, pois está com o vestido dela. Para não ter que se explicar, Caroba o empurra e tranca no quarto com Margarida. Caroba então veste roupa de Benona e esta a de Margarida. Caroba então recebe Eudoro vestida de Benona. Ele é enganado: pensa estar conversando com a antiga noiva, que se insinua a ele, na penumbra não percebe que é Caroba. Ela o leva ao quarto de Benona e o tranca com a ex-noiva, por quem agora já está novamente interessado.

Pinhão ao sair do esconderijo onde estivera observando a cena, vê Caroba e pensa ser Benona e tenta seduzi-la. Ela reage e bate em Pinhão e o manda esperar por Caroba, que tira as roupas de Benona e diz que acompanhou toda a cena, bate outra vez em Pinhão, mas na confusão começam a se beijar. Aí destrancam as portas dos quartos de Margarida e Dodó, Benona e Eudoro, e entram em outro.

Dodó e Margarida saem do quarto e pensam ter sido surpreendidos por Eurico, que entra em casa dizendo estar perdido. Na verdade Eurico havia saído para enterrar sua porca recheada dentro do cemitério. A conversa entre Eurico e Dodó é engraçada, pois ambos se enganam: Dodó fala de Margarida, enquanto Eurico fala da porca que desapareceu. Eurico pensa que o rapaz lhe roubou a porca, já que este o traiu. No desespero, Eurico finalmente revela que a porca estava cheia de dinheiro guardado há tantos anos.

Com os gritos da discussão, Pinhão e Caroba saem do quarto. Depois Eudoro e Benona do seu. A cena é divertida: são três casais que de repente estão juntos e felizes ante Euricão lamentando a perda da porca. Graças a Caroba os casais se entendem sem Euricão nem Eudoro perceberem o engano de que foram vitimas. Margarida desconfiou de Pinhão e afirmou que ele pegara a porca. Eurico lhe salta no pescoço e Pinhão acaba contando, mas exige vinte contos para dizer onde escondeu a porca, os vinte contos que Eurico conseguiu emprestados de Eudoro com a ajuda de Caroba. Com o vale do dinheiro na mão, mostra a porca que estava na casa mesmo.

Então, Eudoro faz Eurico perceber que aquele dinheiro era velho e havia perdido o valor. Eurico se desespera. Tentam dissuadi-lo da importância do dinheiro, mas ele manda todos embora e fica só, com a porca e o Santo, tentando entender o que aconteceu, qual o sentido de tudo que houvera.

Características da Obra de Sussuna:

Quando começamos a estudar a produção dos autos de Ariano Suassuna, não podemos dissociar esta análise das produções do escritor Gil Vicente. Ambos possuem semelhanças concretas, principalmente, com relação à:

1. Construção das personagens

cada personagem representa uma classe social - que é criticada - e, por vezes, possui um nome que o identifica a função que exerce na comunidade onde vive, ou apelidos cômicos, como acontece com João Grilo, Chico, a mulher do padeiro, todos do Auto da Compadecida; Gil Vicente identifica seus personagens como mercadores, padres, pobres, etc., sempre numa alusão às classes da hierarquização social da Era Humanista ( marca o fim da Idade Média );

2. Religiosidade

ambos os autores reforçam a manipulação que o clero exerce sobre o povo mais simples, compactuando com os interesses econômicos representados por coronéis, bispos (Ariano Suassuna) e por nobres, ricos (Gil Vicente); as figuras de diabos, anjos, Jesus e Nossa Senhora estarão presentes nas obras dos escritores, com a devida evolução de linguagem no caso dos textos de Suassuna - dentre essas a figura que rouba a cena é a do diabo pela sua força expressiva e sua posição de juiz das almas já que enumera as falcatruas dos outros personagens (efetuando, inclusive, uma rememoração da história que está sendo contada).

3. Crítica social

os períodos históricos em que os autos são escritos apresentam características semelhantes: grande desnivelamento social, fome, desmandos de poderosos e, em se tratando das obras de Suassuna, há o agravante dos fatores naturais que tornam a vida do sertanejo muito difícil.

4. Ironia

é a grande marca que identifica os autores e é o grande recurso utilizado para elaborar a crítica. Em Gil Vicente, há obras cuja ironia crítica serviu de modelo para as gerações seguintes, como em Auto da Lusitânia (e os personagens "Todo o mundo" e "Ninguém"). E em Ariano Suassuna, o mesmo será comprovado no reconhecido Auto da compadecida, mas também em O santo e a porca e em Farsa da boa preguiça.

Comparação com Plauto


Na apresentação de sua peça O Santo e a Porca (1957), Ariano Suassuna a sub-intitula de uma "Imitação Nordestina de Plauto", referindo-se à Aululária, do autor latino.

A palavra imitação, usada por Suassuna, nos remete ao conceito aristotélico de mímesis, cujo significado não representa apenas uma repetição à semelhança de algo, uma cópia, mas a representação de uma realidade, mais precisamente de uma revelação da essência dessa realidade.

Essa essência está representada, nessas duas obras, pela avareza humana.

Neste trabalho, pretendemos uma abordagem desse tema, sob o aspecto de como o objeto depositário da avareza foi tratado pelos dois autores: a panela, em Aululária; a porca, na comédia de Suassuna.

Optamos pelo enfoque simbólico dessa proposta, visto que a obra de Suassuna, que se declara uma imitação da de Plauto, mantém uma distância de mais de dois milênios da original e está contextualizada, tanto geográfica como culturalmente, numa distância não menor do que a temporal.

Nesse paralelo, destacamos a trajetória dos dois objetos que constituem o eixo norteador de toda a ação das duas peças.

Na comédia do autor latino (Plauto Titus Maccus - 250?-184? a.C.), de influência grega e estilo tipicamente romano, o velho avarento Euclião descobre na lareira de sua casa uma panela cheia de moedas de ouro deixada por seu avô. O casamento de sua filha com um velho rico é o motivo que origina toda a ação da peça. Os recursos utilizados por Plauto dão à comédia um ritmo ágil e hilariante, cheio de ambiguidades e desencontros. "O diálogo, como em todas as suas peças, lembra a fala rápida da comédia musical americana (e na verdade era representada com acompanhamento musical)" (GASSNER, 1974, p.112).

Ariano Suassuna retoma o tema e situa-o no Nordeste. Seu protagonista chama-se Euricão Árabe.

Na contracapa do livro de Suassuna (1984), Manuel Bandeira comenta as duas obras:

Plauto é o mais linearmente clássico, na sua pintura de um caráter de avarento; Suassuna é o mais complicado, não só pela maior abundância de incidentes na efabulação, como pela evidente intenção de moralidade filosófica; (...) e os elementos nordestinos da porca e seu protetor, o Santo (Santo Antônio) são os grandes achados de Suassuna, e o que confere o timbre de originalidade na volta ao velho tema.

Na sequência das duas narrativas, tanto a panela quanto a porca acompanham todo o ciclo de transformação interior dos respectivos protagonistas, o que nos induz a uma interpretação simbólica desse trajeto.

Tomamos como símbolos, na Aululária ou O Vaso de Ouro, o Deus Lar, a lareira, o templo da Fidelidade, o bosque de Silvano e o objeto representativo da avareza, a panela (vaso). Em O Santo e a Porca, temos como correspondentes o Santo Antônio, a sala, o porão, o cemitério e o objeto da avareza, a porca de madeira.

Considerando os costumes e as crenças inerentes às duas épocas retratadas pelos autores, cabe primeiramente um destaque à parte mística e mítica das duas peças.

Para os romanos, os Lares eram deuses domésticos, protetores de cada família e de cada casa, cultuados no lararium, uma espécie de oratório. Tinham um templo, no Campo de Marte, onde eram feitos os sacrifícios e as oferendas. Interessante destacar que, quando se tratava de sacrifício público, a vítima ofertada era o porco (SPALDING,1982).

Euclião, até o momento da perda de sua panela com o tesouro, invoca o deus Hércules, identificado com o deus grego Héracles, símbolo da força combativa. Os romanos também o tinham como divindade protetora dos bens materiais e dos bons lucros nos negócios.

Após a perda de seu tesouro, Euclião invoca Júpiter, que simboliza tanto a expansão material como o enriquecimento vital.

Santo Antônio, por sua vez, é um santo de grande devoção popular nos países de origem latina. No Nordeste, esse santo é grandemente festejado durante as chamadas festas juninas. É tido, também, como "santo casamenteiro".

Euricão Árabe, o velho avarento de O Santo e a Porca, invoca o santo, questiona-o, do início ao fim de sua aventura. Embora, em alguns momentos, oscile entre o santo e a porca, mantém-se fiel ao santo de sua devoção. Esta oscilação poderia representar o movimento entre espiritualidade e materialidade inerentes ao ser humano.

Euclião, no entanto, é a imagem da personificação da avareza. Apela para o deus ou divindade que melhor atender à necessidade de determinado momento.

Nesse contexto de crenças e costumes, a avareza das duas personagens está representada em dois objetos: a panela (vaso) com o ouro de Euclião, escondida na lareira, e a "porca de madeira, velha e feia (...) com pacotes de dinheiro" (SUASSUNA, 1984, p.13), depositada na sala de Euricão sob a imagem de Santo Antônio.

A lareira expressa o simbolismo da vida em comum, do centro da casa. Seu calor e sua luz aproximam as pessoas, é o centro da vida. Assim como a sala, tem o significado de "um santuário, no qual se pede a proteção de Deus, celebra-se o seu culto e guardam-se as imagens sagradas" (CHEVALIER, GHEERBRANT, 1994, p.536).

A panela e a porca de madeira eram guardadas, respectivamente, nesses dois ambientes domésticos - lareira e sala -; portanto, equivalentes.

O vaso com as moedas de ouro (a panela de Euclião) representa "um reservatório de vida (...), o segredo da vida espiritual, o símbolo de uma força secreta". Se o vaso for "aberto em cima, indica uma receptividade às influências celestes" (CHEVALIER, GHEERBRANT, 1994, p.932).

Por sua vez, a moeda traz uma imagem ambivalente: a de valor e a de alteração da verdade.

A porca, juntamente com o porco, são considerados símbolos universais. Este representa a impureza, a voracidade, as tendências obscuras, enquanto que a porca, divinizada desde os egípcios, simboliza a abundância e o princípio feminino de reprodução, de criação da vida.

Todo o sentido da vida de Euclião e da de Euricão, simbolizado na panela guardada na lareira e na porca de madeira guardada na sala ao pé do santo, foi ameaçado por um acontecimento inesperado: o casamento das filhas. É o início do processo de vivência da perda:

Euricão: Ai minha porquinha adorada! (...) querem levar meu sangue, minha carne meu pão de cada dia, a segurança de minha velhice, a tranquilidade de minhas noites, a depositária de meu amor! (SUASSUNA, 1984, p.33-34)

Diante da ameaça, Euclião esconde seu tesouro no templo da Fidelidade, e Euricão, numa grande cova ("socavão"), no porão de sua casa.

No plano simbólico, o templo e a cova sintetizam o lugar dos segredos, a busca ao desconhecido. Para os romanos, em particular, o templo era de grande importância. Lá, eles veneravam seus deuses, acorriam para pedir graças e proteção, em troca de sacrifícios e oferendas Era, pois, o reflexo do mundo divino e de seus mistérios.

Impulsionados pela ameaça da perda de seus bens, cultivados durante toda a vida, Euclião e Euricão buscam novo esconderijo para seus tesouros. O primeiro esconde-o no bosque de Silvano; o segundo, no cemitério da igreja.

Silvano, para os romanos, era um deus campestre de significação ambígua: protegia a agricultura e presidia às florestas (silva, "floresta") e, ao mesmo tempo, era uma "espécie de bicho-papão" que causava medo às crianças.

Além de simbolizar o inconsciente, a floresta carrega o significado do vínculo que as árvores mantêm entre a terra (raízes) e o céu (copa).

Euricão esconde sua porca no cemitério da igreja, num socavão entre o túmulo de sua mulher e o muro. O socavão evoca o simbolismo da abertura para o desconhecido, no sentido do imanente ao transcendente; o túmulo, associado à morte, é o lugar da metamorfose, do renascimento, ou das trevas; o muro, também de significado ambíguo, simboliza a separação e a defesa.

Podemos sintetizar essa etapa da trajetória dos avarentos como de conflito existencial diante da perda, em direção a uma nova visão de mundo e renovação de valores.

Euclião agradece aos deuses, despede-se alegremente de sua panela e a dá de presente aos noivos.

Euricão, diante da constatação da realidade (seu dinheiro não tinha mais nenhum valor), sente-se traído pela vida. Melancolicamente, reconhece: "Um golpe do acaso abriu meus olhos (...). Que quer dizer isso, Santo Antônio? Será que só você tem a resposta?" (SUASSUNA, 1984, p.82).

Na comparação simbólica das duas comédias, vimos que os elementos representativos da avareza (a panela e a porca) podem ser associados às etapas marcantes da narrativa.

O primeiro momento (a panela e a porca; o Deus Lar e Santo Antônio) podemos caracterizar como o do potencial latente e inerente à natureza humana: o material e o espiritual. O poder de acumulação e a visão desses valores são representados, em Euclião e Euricão, pela avareza.

O segundo momento, podemos caracterizar como o do conflito e do início da transformação desses valores (o templo da Fidelidade e o porão): a busca ao desconhecido, ou seja, um momento de interiorização e reflexão das personagens, sobre os valores até então tidos como sólidos e permanentes.

O terceiro momento, finalmente, seria o da constatação da perda. E, aqui, haveria duas possibilidades de escolha: a da evolução ou a da involução, simbolizada pela ambiguidade do "bosque de Silvano" e a do "cemitério da igreja".

A escolha de Euclião e de Euricão foi a da transformação no sentido evolutivo e de discernimento de que os bens materiais são um meio e não um fim. Diríamos que foi uma escolha do caminho ascendente entre a terra e o céu, entre o transitório e o permanente.

A avareza dos protagonistas nos remete, em contrapartida, a duas outras personagens, também idosas (Megadoro, na Aululária, e Eudoro, em O Santo e a Porca), que não apresentam tal característica, sendo, portanto, opostas a Euclião e Euricão.

Concluindo, lembramos as palavras de Cícero sobre os defeitos comumente atribuídos à velhice. Diz o orador latino que: são defeitos dos costumes, não da velhice. (...) Não compreendo o que a avareza do ancião quer para si mesmo. Há algo de mais absurdo que aumentar as provisões de viagem à medida que menos caminho resta? (CÍCERO, 1980, p.81).

Fonte:
Adaptado de Artigo não assinado encontrado no site Feranet  Disponível em Algo Sobre
Resumo adaptado do Site http://osantoeaporca.vilabol.uol.com.br/

terça-feira, 27 de abril de 2021

Varal de Trovas 495

 


Rubem Penz (Cebolinha: esse plano não vai dar certo)

Passei a infância inteira acompanhando os planos infalíveis do Cebolinha para derrotar a Mônica. E, seja por solidariedade masculina, seja por admirar quem encarna a mais vã esperança, torci pelos meninos em cada uma das histórias. No entanto, nenhuma das mirabolantes criações (havia sempre o Cascão para ser o coadjuvante) foi capaz de suplantar a força da heroína dentuça.

Recordo disso porque soube que Maurício de Sousa prometeu uma data para o casamento de Mônica e Cebolinha. Um destino a ser adivinhado por quem acompanha a série de desenhos desses personagens dirigida ao público teenager - tenho na memória a polêmica revista na qual os dois, jovens, trocaram o primeiro beijo. Enfim, mais ou menos o que aconteceu com os (ex) implicantes Hermione e Rony na saga Harry Potter, marido e mulher ao final,

Agora, se isso for mais um dos planos do Cebola (seu nome na versão crescida) para vencer a Mônica, tenho uma má notícia: não vai dar certo. Talvez ele tivesse sucesso nos longínquos anos 1960, quando as personagens saíram do lápis do criador para ganhar o mundo. Na época, a autoridade masculina predominava na composição familiar. Vivíamos o tempo do pai provedor e da mãe dona de casa - papéis expressos nas próprias tirinhas do bairro do Limoeiro.

Os tempos são outros. As "Mônicas" que ousavam ser donas da rua durante a infância, hoje também são donas do próprio nariz - no mínimo. Viram suas mães exercendo o intangível controle sobre os maridos pelos fios do sentimento (maneira de deixar o jogo parelho) e almejaram mais. Para elas, já não bastam os afazeres domésticos ou a maternidade; dominam desde o mercado de trabalho aos destinos da República. Os "Cebolinhas" piam cada vez mais fino.

Mas, se, ao contrário, o "sim" no altar for um armistício (para não dizer uma rendição), aí o rapaz pode estar agindo com esperteza. Alguns homens já perceberam que nosso projeto vencedor está muito mais parecido com as antigas estratégias femininas. Nada de confronto: contornos. Nada de violência: carinho. Nada de autoridade: cooperação. Nada de controle: liberdade.

Pois é, Cebola... Ter para si o coração da Mônica pode valer mais do que qualquer outro domínio que ela – elas? – tanto perseguem. Mesmo que o casamento esteja longe de ser um plano infalível. Quanto ao Cascão, por favor: nessa história, seja no máximo padrinho. Senão é avançar demais com a carruagem.

Fonte:
Rubem Penz. Enquanto tempo: crônicas. 
Porto Alegre: BesouroBox, 2013.

Luiz Damo (Poemas Escolhidos) VI

ÁGUAS

Quantas águas já moveram moinhos
mas hoje, dormem no fundo do mar,
ajudaram a desbravar caminhos
sem jamais do trajeto reclamar.

Transformaram caudalosos espinhos
em novas razões para caminhar,
carregando nos seus braços magrinhos
pesadas pedras sem desanimar.

De origens humildes e tão franzinas
vertentes serenas e borbulhantes,
sempre calmantes, limpas, cristalinas.

Sem um rumo certo, passos constantes
foram alimento para as turbinas
deixando os lares mais aconchegantes.
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PREÇO DA VIDA

O preço da vida, às vezes, é a morte,
de tantos que morrem sem nada ver
e o vento que nem sempre segue o norte
de longe a lembrança nos faz sofrer.

Outros prosseguem, numa luta forte,
sentem sob os pés tudo estremecer
e o amargo pranto talvez só conforte
uns poucos passos antes de morrer.

Muitos atalhos ao longo da estrada
simples hiato na mata dos sabores
velho e rude prato na mesa errada.

Sem saber por certo quais os valores
que andam à frente de cada jornada
há quem deixe a paz pra comprar temores.
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TERNURA

Se de Deus sede sente o caminhante
nos caminhos que sulcam esta terra,
mergulha na água viva que lhe dera
a chancela de mudar seu semblante.

Seja eterno o terno dom que lhe gera
novo afeto, noutro teto, aconchegante,
verta paz, converta em luz fulgurante,
todo o sinal onde o mal prepondera.

Que a fonte forme a ponte circulante
muito forte que à morte firme espera,
dando alento ao momento mais gritante.

Quando em tudo vemos dor fatigante
surge a voz com poder que recupera,
todo o passo em compasso relutante.
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VALORES

Dos muitos dotes que outrora valiam,
alguns se perderam na caminhada,
outros morreram porque só traziam
meras ilusões, sonhos e mais nada.

Hoje, o que temos são novos valores,
considerados fortes vanguardeiros,
de cada passo, eternos mediadores,
brilhando nos céus de tantos roteiros.

Sempre ligados nas transformações,
brilhantes frutos das lutas sociais,
temos nas mãos suas confirmações.

Ninguém pode com formas radicais
querer mudar as próprias convicções,
nem por pressões inconstitucionais.
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VOLTAS DA VIDA

Muitas voltas por nós já foram dadas
outras tantas quiçá, venhamos dar,
nesta vida palmilhando as estradas
sem ter medo de talvez fracassar.

Forte luz, procuramos dar à vida,
para que outras tantas possam brilhar,
mas nem sempre a vitória pretendida,
chega e traz mais vigor pra incentivar.

Quem souber caminhar entre os espinhos
sem nunca desviar dos seus caminhos
pode obter tudo o quanto quer buscar.

Nada tem que não possa ser obtido,
mesmo que parecer tudo perdido
e as chamas do querer já não brilhar.

Fonte:
Luiz Damo. Pétalas do Quotidiano. Caxias do Sul/RS: Lorigraf, 2012.
Livro enviado pelo autor.

A. A. de Assis (Maringá Gota a Gota) O Mosqueteiro do Milho

Há uma velha anedota (será que alguém ainda sabe o que é anedota?) segundo a qual o garçom perguntou ao cliente se ele gostava de rãs. O cliente respondeu: “Gosto sim, muito, porém não a ponto de comê-las”. Não tem nada a ver com isso, mas se alguém me perguntar se gosto de milho, responderei que gosto muito sim... a ponto de comê-lo do jeito em que vier.

Um dia, lá pelos meados dos anos 1970, publiquei no “O Diário do Norte do Paraná”, do amigo Frank Silva, uma crônica falando disso. Contei que desde criança curtia paixão pelas coisas feitas de milho: curau, mingau, paçoca, pipoca, polenta, canjiquinha, milho cozido. Era chegadão especialmente numa gostosura que em nossa família chamavam de “farinha de macacão” – um fubá grosso misturado com toucinho de porco, torrado num tacho. Com feijão preto e bananinha-ouro frita era a delícia das delícias.

Tá, mas vejam o que aconteceu: nem bem a crônica entrou em circulação, bateu na minha casa um rapaz trazendo um pacotão cheio de pacotinhos com subprodutos do milho. Tudo o que você possa imaginar. “Foi Seu Oswaldo que mandou, e mandou um abraço também”.

Oswaldo Chiucheta. Só podia ser ele. O mosqueteiro do milho. Um dos personagens mais simpáticos e irrequietos que Maringá já conheceu. Tudo o que fazia era movido a paixão e com total vigor.

Nascido na heroica e bela Concórdia, veio para cá em 1956, já decidido a mexer no enredo da cidade. Todo mundo aqui só falava em café; ele chegou falando de trigo. Montou na Avenida Mauá o primeiro moinho do norte/noroeste do Paraná. Depois passou a trabalhar também com milho – nasceu a Trigomil. Simultaneamente, como bom filho do meio-oeste catarinense, Chiuchetta foi pioneiro aqui na criação de suínos de alta linhagem.

Enquanto isso, na mesma época, foi um dos líderes na campanha pela criação do Instituto Agronômico em Londrina e ajudou na fundação da Associação das Indústrias Moageiras de Milho do Brasil.

Sim. Do milho. Na verdade o guerreiro Chiuchetta veio para Maringá programado para incentivar o cultivo do trigo na terra dos cafezais. No entanto penso que ele gostava mesmo era de lidar com o milho. Achava que o milho era o cereal mais tipicamente brasileiro, presente em todas as cozinhas nacionais, além de ser a ração mais natural para todos os animais dos pastos e todas as aves domésticas.

Um dia o jornalista Sérgio da Costa Franco escreveu no jornal “Zero Hora”, de Porto Alegre: “Não conheço defensor mais ardente da cultura do milho, de sua moagem e do consumo dos seus derivados do que o industrial Oswaldo Chiuchetta, estabelecido em Maringá”.

De fato era. E com razão. O trigo pode ser mais chique, mas o milho é muito mais gostoso. Tudo o que é feito de milho é uma delícia, além de saudável. Tanto que comi todo aquele pacotão de canjica e fubá que o bom Oswaldo me mandou de presente, e nem engordei.
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(Crônica publicada no Jornal do Povo – Maringá – 08-4-2021)

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

segunda-feira, 26 de abril de 2021

Lima Barreto (Uma Vagabunda)

É um caso bem curioso o que te vou contar e que me parece digno de registro. Para muitos parecerá fantástico, mas como tu sabes, já houve quem dissesse que a realidade é mais fantástica do que imaginamos.

— Dostoievski?

— Sim, creio que foi ele, embora não afiance que fosse com estas palavras. Sabes bem como são as palavras dele?

— Não, mas estou certo que não lhe trais o pensamento... Enfim! Isso não vem ao caso. Conta lá a história.

— Conto-a a ti com todos os detalhes, para que possas tirar dela todo o profundo sentido que tem. Se tratasse de outro, havia de abreviá-la, transforma-la-ia em anedota, mas tratando-se de ti, não há nada que seja prolixo para a compreensão de semelhante fato.

Eles estavam no Campo de Sant'Ana e aquelas cotias sempre ariscas e aquelas saracuras de galinheiro, apesar de tudo, não deixavam de dar um toque selvagem naquele jardim educado.

O narrador continuou:

— Foi isto há alguns anos passados. Bebia eu muito nesse tempo, muito mesmo porque tinha por divisa ou tudo ou nada. Além disso adotam uma frase não sei de que autor, como complemento da divisa.

— Qual é? perguntou o outro.

— "O burguês bebe champanha; o herói bebe aguardente".

— Essas duas sentenças cobiçadas deviam dar resultados surpreendentes.

— Deram como tu sabes, mas eu te quero contar uma que tu não sabes.

— Duvido.

— Pois vais ver.

— Não acredito, pois sei todas as tuas proezas desse tempo.

— Essa proeza, porém, não é minha, é de outro ou de outra.

— Que outra?

— Conheceste a Alzira?

— Sim! Aquela vagabunda que ia á casa do "Guaco", na rua do Carmo.

— É isso mesmo: aquela vagabunda que ia à casa do "Guaco", na rua do Carmo. É isso.

— Homem! Pelo modo por que falas, parece que tiveste paixão por ela...

— Não tive paixão, mas sou-lhe grato.

— Por quê?

— Lembras-te bem que ela bebia conosco calistos de "Guaco".

— Lembro-me bem.

— E que ela tivera um passado de lustre, de opulência, no alto mundanismo?

— Perfeitamente. Contudo, Frederico, eu penso que ela exagerava um pouco.

— É verdade. Aquele caso que ela nos contou de ter perdido uma noite, não sei em que jogo, em São Paulo, oitenta contos, não me parece verossímil. Entretanto...

— Não é só isso. Todas as sumidades da República haviam sido seus amantes. Ora, isso não é possível, porquanto muitas delas, quando começaram, eram pobretões que não podiam aspirar a semelhante "objeto de luxo".

— Tens razão, mas...

— Uma coisa: quando me recordo da Alzira, só me vem à mente o seu famoso chapéu-de-chuva de alpaca, com que, às vezes, quando embriagada, desancava um qualquer e ia parar no xadrez.

— Eu, quando me vem ela à lembrança, com a sua fisionomia triste, fanada, é com o seu orgulho de ter tido muito dinheiro, por meios tão baixos...

— A observação é boa. Ela não parecia ter dor em recordar os belos dias passados, parecia antes ter prazer... Afinal, que tem ela com a tua história?

— Estavas fora, lá, para Alagoas. Continuei a frequentar o "Guaco", onde ia todas as tardes encontrar os companheiros. Ocasionalmente topava com Alzira e pagava-lhe um cálice. As nossas relações eram as mais amistosas possíveis. Ela me contava as histórias de aventuras passadas, quer as de jogo, quer as de amor e eu as ouvia para aprender a vida com aquela mulher batida pela sorte, pelo infortúnio e pela maldade dos homens. Gostava até da emoção que ela sentia, narrando o seu triunfo, quando, trepada no alto dos carros de Carnaval, era aclamada pelas famílias, nas ruas apinhadas por onde passava. Pelo modo que ela me contava esses episódios, julguei que Alzira nesses dias se supunha resgatada. Talvez tivesse razão...

— Coitada! fez o outro.

— Bem. Como te contava, ia sempre ao "Guaco" e, em certo dia do pagamento, lá fui. Tinha os vencimentos quase intactos na algibeira. Encontrei-a, sentei-me e pedi cerveja. Ela não quis, ficou no seu cálice habitual. Em dado momento, ao passar o proprietário, o Martins - tu te lembras dele?

— Pois não.

— Disse-lhe: Martins, vê quanto te devo. Ele respondeu e, logo que ele se afastou, Alzira perguntou-me: "Frederico, tens dinheiro?" Disse-lhe que sim. E ela me pediu: "Podes 'passar' cinco mil-réis?" Não me fiz esperar e dei-lhe uma nota de cinco mil-réis que tinha na algibeira do colete. Ela guardou e continuou a conversa. Veio a hora de sair e de pagar a despesa atual e as passadas. Martins fez a soma e tirei da algibeira da calça o grosso do dinheiro, dando-lhe uma nota que satisfizesse a conta. Logo que o Martins se dirigiu ao balcão, ela me disse ao ouvido: "Tu não podes dar mais cinco mil-réis?" Disse-lhe peremptoriamente: não! Não teve um momento de hesitação: levantou-se e atirou-me a nota na cara. Foi saindo e descompondo-me baixamente.

— Era muito malcriada.

— Pensei isso e o Martins aconselhou-me a evitá-la, por isso. Um acontecimento posterior, porém, fez-me julgá-la melhor.

— É daí que...

— Vais ouvir: passaram-se meses e, para publicar um livro, meti-me em complicações. Se o livro deu dinheiro eu não sei, porque só perdi com ele, entretanto, fez um sucessozinho, mas cai de roupas, etc., etc. Uma noite estava sentado entre desanimados, como eu, num banco do largo da Carioca, considerando aqueles automóveis vazios, que lhe levam algum encanto. Apesar disso, não pude deixar de comparar aquele rodar de automóveis, rodar em tomo da praça, como que para dar ilusão de movimento, aos figurantes de teatro que entram por um lado e saem pelo outro, para fingir multidão, e como que me pareceu que aquilo era um truque do Rio de janeiro, para se dar ares de grande capital movimentada... Estava assim, quando me bateram ao ombro: "Oh! Frederiquinho!"

— Quem era?

— Era a Alzira.

— Queria ela alguma coisa?

— Queria dar-me. Nada mais.

— O quê?

— A passagem do bonde.

— Tu não a tinhas?

— Tinha. Disse-lhe isso até; mas o meu aspecto era da mais completa miséria. Minha roupa estava sebosa, meu chapéu de palha muito sujo, cabeludo, barba velha; e, além de tudo, sobreviera-me uma fraqueza de pálpebras, que me obrigava a usar uns sinistros óculos escuros de mendigo semi-cego. Apesar da minha recusa, ela insistiu de tal modo, de forma tão cheia de piedade e ternura, que me pareceu uma cruel desfeita não lhe aceitar o cruzado.

— Aceitaste?

— Aceitei.

— Curioso.

— Está aí a vagabunda do "Guaco", meu caro Chaves.

Levantaram-se, saíram do jardim e o advento da noite, misteriosa e profunda, era anunciado pelo acender dos lampiões de gás e o piscar dos globos de luz elétrica, naquele magnífico fim de crepúsculo.

Fonte:
Lima Barreto. Histórias e sonhos. Belém/PA: Unama. 
Publicado originalmente em 1920.

Paulo Leminski (Versos Diversos) 11

 féretro para uma gaveta
 
esta a gaveta do vício
rimbaud tinha uma
muitas hendrix
mallarmé nenhuma

esta a gaveta
de um armário impossível
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fazia poesia

e a maioria saía
tal a poesia que fazia

fazia poesia

e a poesia que fazia
não é essa
que nos faz alma vazia

fazia poesia

e a poesia que fazia
era outra filosofia

fazia poesia

e a poesia que fazia
tinha tamanho família

fazia poesia

e fez alto
em nossa folia

fazia tanta poesia
ainda vai ter poesia um dia
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entro e saio

dentro
é só ensaio
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a máquina
engole página
cospe poema
engole página
cospe propaganda

MAIÚSCULAS
minúsculas

a máquina
engole carbono
cospe cópia
cospe cópia
engole poeta
cospe prosa

MINÚSCULAS
maiúsculas
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você para
a fim de ver
o que te espera

só uma nuvem
te separa
das estrelas
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não discuto
com o destino

o que pintar
eu assino
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o sol escreve
em tua pele
o nome de outra raça

esquece
em cada uva
a história do céu
do vento
e da chuva
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confira

tudo que respira
conspira
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ana vê alice
como se nada visse
como se nada ali estivesse
como se ana não existisse

vendo ana
alice descobre a análise
ana vale-se
da análise de alice
faz-se Ana Alice
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riso para gil
teu riso
reflete no teu canto
rima rica
raio de sol
em dente de ouro

“everything is gonna be alright”

teu riso
diz sim
teu riso
satisfaz

enquanto o sol
que imita teu riso
não sai

Fonte:
Paulo Leminski. Polonaises. 
Curitiba: Ed. do Autor, 1980.

Rachel de Queiroz (O Telefone)


FESTA COM FOGUETE, discurso e banda de música marcou a inauguração da Companhia Telefônica na cidade de Aroeiras. Se bem não fosse grande a rede e poucos os aparelhos instalados, mais ou menos uma dúzia. Os telefones oficiais eram o da delegacia, o da estação do trem, o da Câmara e o da casa do juiz; e, entre os particulares, havia dois especialmente importantes, que uniam pelo fio elétrico o casarão do major Francisco Leandro, chefe do partido marreta, com o sobrado do coronel Benvindo Assunção, chefe rabelista, ricaço, com loja grande no térreo, de onde lhe vinha a fortuna.

E, tanto numa casa como na outra, a presença do telefone, suscitando a possibilidade de uma comunicação impossível, criava uma tensão perigosa.

Imagine-se que já há umas duas gerações aquelas famílias não se falavam, a não ser em hora de briga. Em perto de cinquenta anos, o mais que um Assunção ouvia de um Leandro, eram frases assim: “Se prepare pra morrer, cabra!” ou: “Essa eleição foi roubada!” ou ainda: “Se é homem puxe a arma.”

Também nessas horas de arrebatamento, diziam outras coisas, dessas que os jornais chamam de “termos de baixo calão”.

Houve igualmente uma frase dita por um Leandro a um Assunção e que ficou célebre: na famosa briga do adro da matriz, quando Carlinho Leandro baleou de morte o moço Donato Assunção, a bela Sinhá Leandro, mulher de Carlinho, que saía da missa atrás do marido, ajoelhou-se ao pé do moribundo, disse: “Jesus seja contigo”, e depois lhe cerrou os olhos. Aí, Carlinho quis matar Sinhá no sufragante, achando que aquele “Jesus seja contigo” já era começo de adultério. Sinhá saiu correndo e gritando através da praça e se asilou em casa de um irmão; e desse caso nasceu uma briga subsidiária, que felizmente não rendeu muito. Pois Sinhá, que estava grávida, morreu de mau sucesso; e o irmão, pegou-o a febre amarela, numa viagem que fez ao Rio de Janeiro.

Um Assunção, para um Leandro, era assim uma ideia proibida, imagem proibida, palavra proibida. Nas melhores fases de tréguas, quando um Assunção ia pela calçada e avistava um Leandro, dobrava a primeira esquina ou, na falta de esquina, tomava ostensivamente a calçada oposta.

Ainda uns poucos meses atrás, passando pela rua do Carmo o coronel Benvindo, montado no seu melado campolina (de nome Dois de Ouro), e o filho de Chico Leandro chegando à calçada, o menos que pôde fazer foi cuspir no rastro dele. Frente a frente só se encontravam em hora de luta, e até na igreja tinham os seus bancos separados, um do lado do altar de são José, o outro no da Boa Morte.

Pois agora lá estava o telefone, como uma estrada franca, uma porta aberta entre as duas casas. Com o seu ar preto e sonso, pendurado na parede do corredor, bastava alguém rodar a manivela, dizer à telefonista o número inimigo, o dos Leandro era 15-22, o dos Assunção era 15-21 (pelo seguro, para não haver preferências, o vigário, presidente da Companhia Telefônica, tirou os números na sorte) — e logo, do lado proibido, alguém responderia!

Calcule só! Ali, junto ao retrato mortuário do finado Donato, debaixo do quadro do Coração de Jesus, se poderia escutar a voz de um Leandro. Era uma tentação do inferno.

E nessas coisas meditava o coronel Benvindo, balançando-se na sua rede branca, armada no alpendre do sobrado, que dava para o jardim. Aspirava o cheiro das rosas abertas depois da chuva e olhava de viés para o bicho falante, tão quieto na sua caixa envernizada. Ora, sim, senhor, ter o Chico Vinte ao alcance da voz! (O Chico Vinte assim se chamava por ser o vigésimo filho do finado Carlinho Leandro, havido da sua segunda esposa, que lhe dera quatorze filhos, depois dos seis da desditosa Sinhá.) Chico Vinte, sendo, embora, o caçula, herdara do pai a chefia, por ser o mais disposto, o mais amante da família, o mais dedicado à política, o que se deixara ficar pelas Aroeiras, criando gado e destilando cachaça na sua fazenda da Trapoeiraba. A velha casa da família, na praça da Matriz, com dezoito portas e janelas de frente, oito para a praça e dez no oitão, era o seu pouso na cidade.

Sim, essas coisas pensava o coronel Benvindo, enquanto fazia a sua sesta. Pensava nelas, quando de repente o telefone tocou, como se respondesse àqueles pensamentos. Tocou, repetiu, bem alto e impertinente.

O pessoal de casa acorreu todo para ver o que seria, mas ninguém se atreveu a pegar o fone. Falar no telefone era falar em nome da casa, prerrogativa do chefe da família. E assim o coronel, quando achou que a campainha já tocara o suficiente, levantou-se da rede e atendeu. O padre lhe ensinara o que dizer:

— Alon! — berrou, pois, o velho, na sua voz fanhosa.

Do outro lado, uma fala irreconhecível, num falsete disfarçado, gritou em resposta ao alon:

— É você, Benvindão?

Assombrado com a insolência, o coronel nem soube o que responder. E então o falsete deu um riso e soltou a injúria suprema:

— Benvindão, vim te convidar! Hoje tem missa por alma da Pomba Rola!

Pomba-Rola era o gordo esqueleto de família da estirpe dos Assunção. Não vê que são descendentes do antigo vigário colado de Sant’Ana das Dores; mas o padre velho, em vez de fazer igual aos outros do seu tempo, e escolher moça de família, como tantos que chegavam a trazer uma prima para casa, vestida de noiva, dando assim origem a uma família que podia não ser legal, mas era respeitável; o padre velho, não, foi arranjar amizade com uma rapariga de ponta de rua, por alcunha a Pomba-Rola, a quem montou casa e deu estado. Verdade que, depois de ama do vigário, mãe de sua prole numerosa, na qual se distinguiram dois doutores e um alferes herói do Paraguai, Pomba-Rola assumiu o seu nome legítimo de dona Dorotéia e se tornou matrona de respeito. Ademais, agora, já estava morta há quase um século. Contudo, quando alguém queria insultar um Assunção, era só falar em pomba, em rola, ou nas duas juntas. Também usavam arrulhar de longe, imitando a rolinha fogo-pagô.

Quanto sangue correu na rua, lá nas Aroeiras, por causa dessa ave inocente, saberá são Miguel Arcanjo, que toma nota dessas coisas, e mais ninguém.

E pois o coronel, ao ouvir aquela palavra, soltou o fone da mão como se tivesse um bicho dentro, e o fone ficou balançando no fio, tal uma cobra que acabasse de morder. Mas durou pouco o assombro do velho. Com aquela rapidez de ação que lhe dera a chefia do seu clã, meteu a mão na manivela e se pôs a berrar para a telefonista:

— Quem foi o moleque sem-vergonha que falou agora pra minha casa?

Maria Mimosa, filha da professora, que fizera estágio em Fortaleza aprendendo para telefonista, honrou o ensino que recebera e respondia apenas as fórmulas regulamentares:

— Faz favor? Número, faz favor?

O coronel, cego de raiva, berrou mais alto:

— Maria Mimosa, deixe de se fazer de boba! Sou eu que estou falando! Me diga já quem foi o malcriado que ligou pra cá!

Meio trêmula, mas ainda oficial, a voz da telefonista resistiu:

— Desculpe, coronel, mas o regulamento não permite revelar o nome do assinante que pediu ligação... Temos o segredo profissional...

— Maria Mimosa, se você não contar já esse segredo profissional, eu vou aí e rebento essa joça!

Maria Mimosa gaguejou um pouco e acabou confessando tremulamente:

— A chamada partiu de 15-22...

— Casa de quem, com todos os diabos?

Mais trêmula ainda, já em prantos, prevendo a gravidade da sua revelação, Maria Mimosa confessou:

— É a residência do major Francisco de Assis Leandro...

Devagarinho, com mão firme, o coronel depôs o fone no gancho. O entrevero com Maria Mimosa lhe dera tempo para recuperar a sua famosa calma dos momentos de ação. Majestosamente, desceu até a loja. Mandou espalhar uns recados. Aos poucos foram chegando os seus homens de confiança. Dois cabras que mandara vir há tempos do riacho do Sangue. Zé Vicente, seu caixeiro, Amarílio, cabra roxo-gajeru que tinha fama de perverso e a moda de reclamar contra pau de fogo, que não é arma de macho: com ele, só no aço frio. Depois veio do cercado, no Juremal, o cavalo Dois de Ouro. O coronel montou, acompanhado por dois cavaleiros: o dito Zé Vicente e seu Pedrinho Queiroz, o genro, marido de Juvenília, a filha mais velha, meio feiosa, mas que tocava piano e lia livro em francês.

Os demais seguiam a pé, cada um com o seu rifle na bandoleira; até Amarílio carregava o seu, não por gosto, dizia ele, mas pelo “regulamento”.

Alcançando a praça da Matriz, parou a expedição para tomar chegada. Já correra, na rua, a nova da saída do grupo encangaçado, e já se apinhavam curiosos em cada esquina. O delegado de polícia trancou os praças na cadeia (era partidário do coronel Benvindo) para “evitar arruaças”.

Chegando defronte à porta da casa das dezoito portas e janelas, o coronel sofreou o Dois de Ouro. Sem desmontar, bateu palmas. Ninguém atendeu. Mas escutou-se, no lado do oitão, o fechar brusco de uma janela. O coronel então chegou mais perto, e com o cabo do chicote martelou a porta e gritou:

— Ô de casa!

A medo entreabriu-se uma rótula e apareceu na frincha o olho enviesado de uma cunhã, perguntando quem era.

— Quero falar com o dono da casa!

A cunhã abriu mais um dedo de janela:

— Major Chiquinho foi no sítio, só vem de noite.

— Pois que me apareça outro homem! Não haverá outro homem nessa
casa?

Aí a porta da rua se escancarou nos dois batentes e surgiu a magra figura de Francisquinho, também chamado o Vinte-e-Um, porque, além de ser o filho único de Chico Vinte, era viciado em baralho, no jogo do vinte e um.

Dizia-se que Francisquinho era tísico. Magrelo, nos seus dezoito anos, a mãe o queria padre, mas o seminário o expulsara depois de umas histórias mal contadas. E, no abrir da porta, também Francisquinho foi gritando:

— Homem tem! Tá falando com ele! Mas homem é que não estou vendo! Só um baiacu velho em cima de um cavalo!

Com o que dizia, queria era distrair a atenção dos atacantes. Pois no que falava, puxou a mão que trazia às costas e na mão vinha uma garrucha com que atirou na direção do coronel quase à queima-roupa. Por fortuna do velho, no momento em que partia o tiro ele levantava a mão com o chicote; a carga de chumbo passou-lhe raspando entre a costela e o braço e foi pegar bem na arca do peito do infeliz Zé Vicente, que caiu de borco por cima do cavalo. Aí Amarílio se adiantou com a faca nua na mão. Embolou com o meninote e rolaram os dois pela calçada. O coronel apeou do melado e se meteu casa adentro, sem olhar para trás nem tirar o chapéu. Subia os três degraus do corredor quando se ouviu um alarido de mulher chorando, depois uma voz severa a comandar:

— Parem com essa prantina!

E dona Joaquininha, mulher de Chico Vinte, apareceu na porta da sala a perguntar, muito calma:

— Que é que o senhor quer na minha casa, coronel Benvindo?

O velho tirou o chapéu:

— Minha senhora, eu só quero punir um criminoso.

Dito isso, passou pela dona, entrou na sala, localizou o telefone e o indicou para os dois cabras que o seguiam na pisada:

— Arranquem esse bicho daí.

E quando os homens puxaram a faca para cortar os fios, o coronel recomendou:

— Não. Arranquem. Quero com tripa e tudo.

Os cabras fizeram força, a caixeta do telefone se largou dos pregos, junto com pedaços de reboco; e as entranhas da coisa falante ficaram indecentemente à mostra.

— Levem pra rua.

Puseram o telefone no chão da praça, no meio do capim-de-burro, todo eriçado de fios, como se fosse uma aranha-caranguejeira. E aí o coronel mandou acender fogo com os paus arrancados à cerca de um terreno baldio.

A chama subiu. “Em cima do bicho! Em cima do bicho!”, recomendava o coronel. E o telefone ardeu muito tempo, exalando um cheiro ruim de celuloide e borracha queimada. Por fim, só ficaram os pedaços de ferro e louça dos isoladores, entre as cinzas.

O coronel se manteve imóvel e calado, assistindo, enquanto os seus cabras, de armas na mão, guardavam o fogo. Ao acabar tudo, o velho correu os olhos pelo povo que espiava medroso e disse bem alto:

— Foi pra aprender a não soltar má-criação a homem.

Vinte-e-Um não morreu, embora a facada de Amarílio lhe houvesse ofendido os bofes. Morrinhou, morrinhou, acabou escapando, sempre magro e amarelo. Quem morreu foi o pai, Chico Vinte. Veio-lhe uma paixão tão grande, ao saber da desfeita, que lhe deu um ar. Entrevou-se e, com poucos meses, era finado.

E o Leandro defunto, o filho fraco do peito, a guerra entre as duas famílias se amainou. Benvindão ficou chefe absoluto e fez o prefeito e seis oitavos da Câmara, na primeira eleição. Agora, teve uma coisa: nunca mais, em casa de um Leandro ou de um Assunção, na cidade de Aroeiras, se viu um telefone.

Fonte:
Rachel de Queiroz. A casa do Morro Branco: crônicas. 
RJ: J. Olympio. Publicado em 1999.