quinta-feira, 1 de abril de 2021

Carlos Drummond de Andrade (Trem de Contos) 20, 21 e 22

A ORQUESTRA ODIOSA


É uma orquestra desarmônica por excelência. O maestro faz o possível para lançar a discórdia entre os instrumentos, e extrai disso um belo efeito. A trompa e o fagote não se cumprimentam, e ambos vivem de implicância com o oboé, que por sua vez trata o clarinete com soberano desdém. A flauta doce desmente seu nome, recusando o diálogo com o corne inglês. E os violinos planejam sequestrar o contrabaixo. Trompas e timbales têm ar feroz. O mais, nessa mesma linha de agressividade.

Como pode uma orquestra assim povoada de desavenças alcançar tamanho êxito em suas audições? O público ouve-a em religioso silêncio. Sucedem-se as turnês pelos estados, e há convites do exterior, que ainda não puderam ser atendidos.

Devo afirmar, a bem da verdade, que a execução dos concertos é impecável, e como cada instrumento deseja não apenas suplantar, como até expulsar os demais do conjunto, há competição acirrada em torno de quem é capaz de tocar melhor. O rancor conduz a resultados sublimes, que a crítica não sabe como explicar. A orquestra apura cada vez mais suas ambições, e teme-se que no auge de seu esplendor ocorra um assassinato nas cordas.
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AQUELE CASAL

O sr. Inclusive roía as unhas, preocupado. A sra. Alternativa, sua mulher, dissera que não ia se demorar, e já se haviam passado cinco horas sem que ela voltasse.

— Com Alternativa não se pode ficar sossegado — resmungava ele. — Inclusive já pedi a ela que percorresse sempre o mesmo caminho de volta, que é o mais curto e o mais seguro. Não quer me ouvir, prefere dar voltas. Alega que assim está sempre experimentando novas possibilidades de caminho, e quem sabe se não descobrirá um dia a mais favorável.

A sra. Alternativa, postada diante de uma bifurcação, hesitava na escolha de rumos. E consultando um caderninho, monologava:

— Meu problema é escolher entre dois caminhos, mas eu preferia que a escolha fosse entre nove ou dez. O bom seria que de uma alternativa derivasse outra alternativa, e assim por diante, gerando número infinito de opções. O Inclusive não compreende isto. Fica pensando que todas as alternativas podem se englobar no processo de inclusão. Ele esquece que todo inclusive tem a alternativa de um exclusive (aliás, de muitos). Isso torna a nossa vida conjugal bastante monótona. Pensando bem, só há uma alternativa para mim: o divórcio
ou um amante sensível às variantes da vida.

— Inclusive já pensei em matá-la — disse consigo o marido, à mesma hora, andando de um lado para outro. — Como é que eu posso viver com uma mulher que inclusive não tem hora de chegar em casa?
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AS PÉROLAS

Dentro do pacote de açúcar, Renata encontrou uma pérola. A pérola era evidentemente para Renata, que sempre desejou possuir um colar de pérolas, mas sua profissão de doceira não dava para isto.

— Agora vou esperar que cheguem as outras pérolas — disse Renata, confiante. E ativou a fabricação de doces, para esvaziar mais pacotes de açúcar.

Os clientes queixavam-se de que os doces de Renata estavam demasiado doces, e muitos devolviam as encomendas. Por que não aparecia outra pérola? Renata deixou de ser doceira qualificada, e ultimamente só fazia arroz-doce. Envelheceu.

A menina que provou o arroz-doce, aquele dia, quase já ia quebrando um dente, ao mastigar um pedaço encaroçado. O caroço era uma pérola.

A mãe não quis devolvê-la a Renata, e disse:

— Quem sabe se não aparecerão outras, e eu farei com elas um colar de pérolas? Vou encomendar arroz-doce toda semana.

Fonte:
Carlos Drummond de Andrade. Contos plausíveis. 
Publicado em 1981.

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