O despertar da montanha
Assim como há quem sofra de insônia, sofro eu de despertar. Meu sono é tão nebuloso, tão viscoso, tão atravessado de assombrações e armadilhas, que me custa o indizível ter de me arrastar desse brejo ancestral para as obrigações do mundo urbano. Existe um poema de Henri Michaux que conta o angustioso renascimento do planeta gasoso em que certas pessoas se transformam depois da viagem noturna.
Enquanto pude, filho ou chefe de família, proibi que me fosse feita qualquer pergunta durante a minha primeira hora de vida cada manhã. Você hoje vai cedo para a cidade? Uma questão à toa como essa, em vez de me puxar para a frente, me empurra de novo para trás, para o pântano primevo, onde se conhece apenas o desconhecimento.
Quer um ovo quente? E eis-me outra vez cadáver que não morreu de todo, um morto ainda emaranhado no pesadelo de ter vivido.
Quando os pequenos foram crescendo (são dois, como no Plebiscito, um menino e uma menina), minha interdição começou a ser desmoralizada. Abro os olhos omissos e, como um cão que estranha o dono, tenho vontade de latir para o mundo. Venho de charnecas nevoentas, venho de desencontros e nada quero. Sou só um pedaço de homem, sem forças para galgar os degraus do dia que se oferece. Já inclinado a regressar para sempre ao meu povoado de fantasmas, de horrores e êxtases, ouço uma voz a pronunciar palavras incompreensíveis. Faço um esforço sem direção. Uma faísca sonora articulou a palavra papai, estilhaçando a treva que vedava a face do abismo. Papai era eu. Abro os olhos e vejo uma carinha que não me é de todo estranha.
Depois de sofrida reflexão, admito que pode ser minha filha. Mas terei uma filha? Desisto de saber. Fujo por um túnel, ando, ando, e reapareço do outro lado, onde a mesma carinha me espera com a sua condenação. Papai. Papai sou eu mesmo, digo para tranquilizar-me. Removo destroços, procuro espancar pelo menos o grosso do nevoeiro, agarro-me ao abajur, ao armário, à persiana, e o homem da caverna consegue emitir uma palavra: Hã! A menina, esperançada, repete a sentença ininteligível:
- Como é que eu distribuo 2 400 litros d'água por três reservatórios, de modo que o primeiro tenha 54 litros mais que o segundo, e este 63 litros mais que o terceiro?
Diante desse enigma é melhor voltar à condição de ameba, mas já é tarde: estou grudado a uma zona intermediária, numa terra de ninguém, entre dois mundos absurdos.
Abre-se um pouco mais a réstia do entendimento, mas o impasse continua. Com ressentido orgulho, confesso: Não sei. A carinha não se afasta e compõe outro enigma, como se fosse possível a gente ignorar uma coisa e saber outra, como se os enigmas todos não constituíssem um único e esmagador enigma:
- Uma livraria manda pagar a uma casa editora de Paris uma fatura de 1 500 francos por intermédio do Banco de Londres.
Suspiro de desespero. A esfinge continua:
- Eu quero saber qual a quantia necessária, em moeda brasileira, se 30 francos valem uma libra, e esta, 48 cruzeiros.
Aquela libra a 48 cruzeiros me tonteia:
- Não sei; pergunte à sua mãe que é inglesa.
Fecho os olhos. (Puxa, papai!) Abro os olhos. Reconheço com uma alegria de bicho inferior que a menina impertinente sumiu. Posso regressar aos meus pampas impalpáveis, às minhas campinas eternas. Mas uma pata de urso me agarra pelos cabelos. Papai. Abro os olhos com relutância e vejo uma cara redonda e resolvida de menino.
- Pai, os músculos formam o que chamamos de carne?
- É claro - respondo sem convicção, só para ficar livre daquela cara de maçã.
- Quais são os símbolos da Pátria?
- Que Pátria?
- Da nossa Pátria, ora bolas!
- Não me lembro de todos.
- Como eram constituídas as bandeiras?
- Mesma coisa de sempre: um pedaço de pano e um pedaço de pau.
- Deixa de ser burro, pai; essa até eu sei: as bandeiras eram constituídas de homens, mulheres, moços, velhos, índios amansados, padres, animais domésticos e bestas de carga.
- Se você sabe, por que está perguntando?
- Queria ver se você é mesmo ignorante.
- Vê se não chateia, Daniel.
Recebo uma patada no ombro e reconheço que perdi o combate: vou nascer de novo. A luz me machuca. Usando todos os meus pseudópodos, rastejo até o chuveiro. A água faz bem aos animais.
Do outro lado da porta as perguntas também chovem:
- Qual é o antônimo de fervor?
- O barulho do chuveiro não me deixa ouvir.
- Que consequências trágicas sofreu o Brasil na Segunda Grande Guerra Mundial por não possuir estradas?
- Hein? Depois eu conto.
- Movimento de translação é assim ou assim?
- Não posso ver pela porta, não é, Gabriela?
- Como Pedro Álvares Cabral podia saber que tinha chegado na baía Cabrália?
- Engraçadinho!...
- Como era mesmo o nome direito do Caramuru?
- João Ramalho, menina.
- Que João Ramalho, pai!
- Uai, não é não?
- João Ramalho é aquele que ajudou Martim Afonso de Sousa na capitania de São Vicente.
- Ah, isso mesmo: o bacharel de Cananéia.
- Mas eu quero saber é o Caramuru.
- O do Caramuru eu não sei não.
Assim como há quem sofra de insônia, sofro eu de despertar. Meu sono é tão nebuloso, tão viscoso, tão atravessado de assombrações e armadilhas, que me custa o indizível ter de me arrastar desse brejo ancestral para as obrigações do mundo urbano. Existe um poema de Henri Michaux que conta o angustioso renascimento do planeta gasoso em que certas pessoas se transformam depois da viagem noturna.
Enquanto pude, filho ou chefe de família, proibi que me fosse feita qualquer pergunta durante a minha primeira hora de vida cada manhã. Você hoje vai cedo para a cidade? Uma questão à toa como essa, em vez de me puxar para a frente, me empurra de novo para trás, para o pântano primevo, onde se conhece apenas o desconhecimento.
Quer um ovo quente? E eis-me outra vez cadáver que não morreu de todo, um morto ainda emaranhado no pesadelo de ter vivido.
Quando os pequenos foram crescendo (são dois, como no Plebiscito, um menino e uma menina), minha interdição começou a ser desmoralizada. Abro os olhos omissos e, como um cão que estranha o dono, tenho vontade de latir para o mundo. Venho de charnecas nevoentas, venho de desencontros e nada quero. Sou só um pedaço de homem, sem forças para galgar os degraus do dia que se oferece. Já inclinado a regressar para sempre ao meu povoado de fantasmas, de horrores e êxtases, ouço uma voz a pronunciar palavras incompreensíveis. Faço um esforço sem direção. Uma faísca sonora articulou a palavra papai, estilhaçando a treva que vedava a face do abismo. Papai era eu. Abro os olhos e vejo uma carinha que não me é de todo estranha.
Depois de sofrida reflexão, admito que pode ser minha filha. Mas terei uma filha? Desisto de saber. Fujo por um túnel, ando, ando, e reapareço do outro lado, onde a mesma carinha me espera com a sua condenação. Papai. Papai sou eu mesmo, digo para tranquilizar-me. Removo destroços, procuro espancar pelo menos o grosso do nevoeiro, agarro-me ao abajur, ao armário, à persiana, e o homem da caverna consegue emitir uma palavra: Hã! A menina, esperançada, repete a sentença ininteligível:
- Como é que eu distribuo 2 400 litros d'água por três reservatórios, de modo que o primeiro tenha 54 litros mais que o segundo, e este 63 litros mais que o terceiro?
Diante desse enigma é melhor voltar à condição de ameba, mas já é tarde: estou grudado a uma zona intermediária, numa terra de ninguém, entre dois mundos absurdos.
Abre-se um pouco mais a réstia do entendimento, mas o impasse continua. Com ressentido orgulho, confesso: Não sei. A carinha não se afasta e compõe outro enigma, como se fosse possível a gente ignorar uma coisa e saber outra, como se os enigmas todos não constituíssem um único e esmagador enigma:
- Uma livraria manda pagar a uma casa editora de Paris uma fatura de 1 500 francos por intermédio do Banco de Londres.
Suspiro de desespero. A esfinge continua:
- Eu quero saber qual a quantia necessária, em moeda brasileira, se 30 francos valem uma libra, e esta, 48 cruzeiros.
Aquela libra a 48 cruzeiros me tonteia:
- Não sei; pergunte à sua mãe que é inglesa.
Fecho os olhos. (Puxa, papai!) Abro os olhos. Reconheço com uma alegria de bicho inferior que a menina impertinente sumiu. Posso regressar aos meus pampas impalpáveis, às minhas campinas eternas. Mas uma pata de urso me agarra pelos cabelos. Papai. Abro os olhos com relutância e vejo uma cara redonda e resolvida de menino.
- Pai, os músculos formam o que chamamos de carne?
- É claro - respondo sem convicção, só para ficar livre daquela cara de maçã.
- Quais são os símbolos da Pátria?
- Que Pátria?
- Da nossa Pátria, ora bolas!
- Não me lembro de todos.
- Como eram constituídas as bandeiras?
- Mesma coisa de sempre: um pedaço de pano e um pedaço de pau.
- Deixa de ser burro, pai; essa até eu sei: as bandeiras eram constituídas de homens, mulheres, moços, velhos, índios amansados, padres, animais domésticos e bestas de carga.
- Se você sabe, por que está perguntando?
- Queria ver se você é mesmo ignorante.
- Vê se não chateia, Daniel.
Recebo uma patada no ombro e reconheço que perdi o combate: vou nascer de novo. A luz me machuca. Usando todos os meus pseudópodos, rastejo até o chuveiro. A água faz bem aos animais.
Do outro lado da porta as perguntas também chovem:
- Qual é o antônimo de fervor?
- O barulho do chuveiro não me deixa ouvir.
- Que consequências trágicas sofreu o Brasil na Segunda Grande Guerra Mundial por não possuir estradas?
- Hein? Depois eu conto.
- Movimento de translação é assim ou assim?
- Não posso ver pela porta, não é, Gabriela?
- Como Pedro Álvares Cabral podia saber que tinha chegado na baía Cabrália?
- Engraçadinho!...
- Como era mesmo o nome direito do Caramuru?
- João Ramalho, menina.
- Que João Ramalho, pai!
- Uai, não é não?
- João Ramalho é aquele que ajudou Martim Afonso de Sousa na capitania de São Vicente.
- Ah, isso mesmo: o bacharel de Cananéia.
- Mas eu quero saber é o Caramuru.
- O do Caramuru eu não sei não.
Fonte:
Paulo Mendes Campos. Balé do pato e outras crônicas.
Paulo Mendes Campos. Balé do pato e outras crônicas.
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