Não ligam para o fato de o nome dele ser Cícero. Consideram um nome mais importante do que o merecido. Chamam-no Pipoca, pondo ódio no apelido. No colégio, onde exerce a função de Inspetor, é repudiado.
— Peguei o milho — grita um aluno, escondido atrás da pilastra, começando a brincadeira.
— Botei na panela! — adiciona outro...
— Joguei a banha! — grita o terceiro. ..
— Virou pipoca...
E todos, em coro:
— Pipoca... Pipoca... Pipoca...
Ele avermelha-se, tenta descobrir o iniciador ou, pelo menos, alguns dos que deram continuidade à gozação. Quando os encontra, baba-se de felicidade:
— Você, você, você, você e você... ficam até seis e meia.
Isso, quando não os suspende por dois ou três dias, além de chamar os pais ao colégio para contar a delinquência abjeta.
É solteiro. Talvez por ser tão exigente, não tenha conseguido encontrar uma mulher que o satisfizesse nas minúcias de que faz questão.
— Copie de novo o trabalho. Está muito borrado.
Substitui os professores que faltam. Isso aumenta, nos alunos, o ódio que já lhe dedicam. Tira-lhes o direito de uma horinha extra de folga. Sabe lecionar todas as matérias. Ecletismo que exerce com prazer.
Não dispensa o paletó. No bolso de cima, quatro esferográficas de cores variadas. Sabe de cor os nomes de todos os alunos e suas deficiências. Arvora-se em psicólogo, querendo inventar traumas que julga possuírem os rapazes e as moças. Agora foi nomeado diretor do ginasial. A tristeza dos ginasianos é gritante. Promete-lhes aula extra aos sábados.
— Quem se comportar mal durante a semana, tem que comparecer sábado de manhã, para uma aula de recuperação.
Diz isso, como sempre, falando de modo que não move o lábio superior, onde se põe o bigode retilíneo e antigo, corretamente aparado, um hífen sobre o lábio.
Hoje tomou uma medida que provoca protestos: proibiu a entrada das moças com minissaias. Considera imoral. Elas não gostam. Os rapazes odeiam ainda mais.
— Qual é?
— Pipoca é um quadrado.
Fazem protesto junto ao Diretor-Geral. Ele mantém a proibição. Pipoca tem carta branca. Diante do que chamou de motim, obriga o curso ginasial completo a comparecer sábado pela manhã.
Os meninos já são homens e as moças são mulheres, mas parece que ele não se apercebe disso. Entende pouco da juventude. É um antigo solteirão.
Está voltando para casa. Feliz em excesso, pela manutenção da sua portaria — proibição de trajes sumários — por parte da alta direção da escola.
Vai pegar o ônibus da rua comercial do bairro. Os alunos motorizados o gozam.
— Vai pra lá?
— Vou.
— O ônibus já vem aí.
Seguem nos seus carros. Pipoca não os esquecerá. Como guarda-civil, já lhes decorou os números. Eles que esperem.
Viaja em pé. Nunca tem chance de um lugar sentado, pegando o ônibus em meio de linha. Leva o dinheiro da passagem já trocado, providência que julga ser obrigatória por parte de todos os passageiros. Tem um jornal sob o braço e alguns livros, como sempre. Não se separa do guarda-chuva, mesmo que o dia seja de sol. É previdente.
Mora sozinho num conjugado da Av. Copacabana, em prédio onde a maioria dos apartamentos são usados por firmas comerciais. A banheira sempre cheia, prevenindo-se contra uma falta de água que pode ocorrer a qualquer momento.
Entra em casa irritado.
— Bando de idiotas. Juventude perdida.
Seu ódio aos jovens é quase ponto de honra. Vinga-se neles pelos seus 50 anos mal vividos, desaproveitados. É bedel há 26 anos, sem nunca ter conseguido um lugar oficial de professor.
No fogão, como todos os dias, as panelas com a comida que a arrumadeira faz.
Requenta o feijão, frita um pouco mais o bife.
— Se os pais se preocupassem com elas, não se perderiam tão cedo — lembra das mocinhas a quem proibiu as saias curtas. — Perdidas. Irrecuperáveis. Mas comigo vão cortar uma volta.
O feijão borbulha. Despeja-o sobre o arroz frio e lhe acrescenta o bife. Não tem prazer na refeição. Faz aquilo por necessidade de sobrevivência. Raspa o resto do prato na lata de lixo e põe o que usou na pia, despejando-lhe água. Não tem geladeira nem televisão. Liga o rádio na estação que programa Tchaikowsky. Apaga as luzes, pega o binóculo e vai para a janela semi-aberta, vigiar os quartos dos apartamentos fronteiros, onde moram quatro alunas da terceira série.
— Peguei o milho — grita um aluno, escondido atrás da pilastra, começando a brincadeira.
— Botei na panela! — adiciona outro...
— Joguei a banha! — grita o terceiro. ..
— Virou pipoca...
E todos, em coro:
— Pipoca... Pipoca... Pipoca...
Ele avermelha-se, tenta descobrir o iniciador ou, pelo menos, alguns dos que deram continuidade à gozação. Quando os encontra, baba-se de felicidade:
— Você, você, você, você e você... ficam até seis e meia.
Isso, quando não os suspende por dois ou três dias, além de chamar os pais ao colégio para contar a delinquência abjeta.
É solteiro. Talvez por ser tão exigente, não tenha conseguido encontrar uma mulher que o satisfizesse nas minúcias de que faz questão.
— Copie de novo o trabalho. Está muito borrado.
Substitui os professores que faltam. Isso aumenta, nos alunos, o ódio que já lhe dedicam. Tira-lhes o direito de uma horinha extra de folga. Sabe lecionar todas as matérias. Ecletismo que exerce com prazer.
Não dispensa o paletó. No bolso de cima, quatro esferográficas de cores variadas. Sabe de cor os nomes de todos os alunos e suas deficiências. Arvora-se em psicólogo, querendo inventar traumas que julga possuírem os rapazes e as moças. Agora foi nomeado diretor do ginasial. A tristeza dos ginasianos é gritante. Promete-lhes aula extra aos sábados.
— Quem se comportar mal durante a semana, tem que comparecer sábado de manhã, para uma aula de recuperação.
Diz isso, como sempre, falando de modo que não move o lábio superior, onde se põe o bigode retilíneo e antigo, corretamente aparado, um hífen sobre o lábio.
Hoje tomou uma medida que provoca protestos: proibiu a entrada das moças com minissaias. Considera imoral. Elas não gostam. Os rapazes odeiam ainda mais.
— Qual é?
— Pipoca é um quadrado.
Fazem protesto junto ao Diretor-Geral. Ele mantém a proibição. Pipoca tem carta branca. Diante do que chamou de motim, obriga o curso ginasial completo a comparecer sábado pela manhã.
Os meninos já são homens e as moças são mulheres, mas parece que ele não se apercebe disso. Entende pouco da juventude. É um antigo solteirão.
Está voltando para casa. Feliz em excesso, pela manutenção da sua portaria — proibição de trajes sumários — por parte da alta direção da escola.
Vai pegar o ônibus da rua comercial do bairro. Os alunos motorizados o gozam.
— Vai pra lá?
— Vou.
— O ônibus já vem aí.
Seguem nos seus carros. Pipoca não os esquecerá. Como guarda-civil, já lhes decorou os números. Eles que esperem.
Viaja em pé. Nunca tem chance de um lugar sentado, pegando o ônibus em meio de linha. Leva o dinheiro da passagem já trocado, providência que julga ser obrigatória por parte de todos os passageiros. Tem um jornal sob o braço e alguns livros, como sempre. Não se separa do guarda-chuva, mesmo que o dia seja de sol. É previdente.
Mora sozinho num conjugado da Av. Copacabana, em prédio onde a maioria dos apartamentos são usados por firmas comerciais. A banheira sempre cheia, prevenindo-se contra uma falta de água que pode ocorrer a qualquer momento.
Entra em casa irritado.
— Bando de idiotas. Juventude perdida.
Seu ódio aos jovens é quase ponto de honra. Vinga-se neles pelos seus 50 anos mal vividos, desaproveitados. É bedel há 26 anos, sem nunca ter conseguido um lugar oficial de professor.
No fogão, como todos os dias, as panelas com a comida que a arrumadeira faz.
Requenta o feijão, frita um pouco mais o bife.
— Se os pais se preocupassem com elas, não se perderiam tão cedo — lembra das mocinhas a quem proibiu as saias curtas. — Perdidas. Irrecuperáveis. Mas comigo vão cortar uma volta.
O feijão borbulha. Despeja-o sobre o arroz frio e lhe acrescenta o bife. Não tem prazer na refeição. Faz aquilo por necessidade de sobrevivência. Raspa o resto do prato na lata de lixo e põe o que usou na pia, despejando-lhe água. Não tem geladeira nem televisão. Liga o rádio na estação que programa Tchaikowsky. Apaga as luzes, pega o binóculo e vai para a janela semi-aberta, vigiar os quartos dos apartamentos fronteiros, onde moram quatro alunas da terceira série.
Fonte:
Chico Anysio. O Enterro do Anão. Publicado em 1973.
Chico Anysio. O Enterro do Anão. Publicado em 1973.
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