sexta-feira, 23 de abril de 2021

Luís Fernando Veríssimo (Sissica)

Não sei se fecha com a estatística geral, mas, naquela sala de espera do aeroporto, entre trinta pessoas, uma tinha telefone celular. E ele tocou.

— Alô? Eu. Oi, querida.

As outras vinte e nove pessoas continuaram fazendo o que se faz numa sala de espera de aeroporto quando o avião atrasa. Lendo, tentando dormir, olhando fixo para nada. E fingindo que não ouviam a conversa.

— Não, ainda estou no aeroporto. O avião atrasou. Sei lá. Devo chegar pela meia-noite.

Um homem mais velho sacudiu a cabeça com leve irritação. Saco, ser obrigado a ouvir a conversa dos outros daquele jeito. E não poder ouvir o que estavam dizendo do outro lado.

— Você vai me esperar acordada? Ah, é? Quero só ver. Qual, aquele curtinho? Ai meu Deus. Já estou vendo. E o que é que você vai me dar? Hein?

Houve uma certa inquietação em torno do homem que falava. Um certo mexe-mexe nas cadeiras e arrastar de pés. Um casal que já conversara muito e ficara em silêncio retomou a conversa, animadamente, agora falando mais alto. Alguns olharam para as duas freiras que, a poucos metros do homem do celular, mantinham os olhos baixos e não se mexiam.

— O quê? Estou levando, sim. Está aqui na maleta. E com pilha nova. É. Te prepara, Sissica.

Ao som de “Sissica” o homem mais velho empinou a cabeça num espasmo involuntário e duas outras pessoas levantaram-se rapidamente e dirigiam-se para o bar, para a livraria, para qualquer ponto longe daquele celular e do seu dono. As freiras continuavam de olhos postos no chão.

— Cê vai fazer o quê? Ah, é? Tá bom. Só acho que hoje eu não vou poder, não. Tou com um furúnculo.

Uma mulher soltou uma espécie de grito e depois tentou disfarçar com tosse. O homem mais velho também se levantou, olhou para o relógio, exclamou “Não é possível” e foi procurar alguém da companhia para reclamar do atraso. Afastou-se quase correndo.

— Sei lá. Apareceu hoje. E acho que está supurando. Ta um roxo meio esverdeado.

Mais pessoas saíram de perto, procurando o que fazer. O casal aumentou o volume da sua conversa, tentando falar mais alto do que o homem. Outros também começaram a falar. Pessoas que nunca tinham se visto antes agora puxavam conversa uma com a outra e todas falavam ao mesmo tempo. Mas o homem do celular falava mais alto.

— Onde? É, lá mesmo. Bem na dobra.

Uma das freiras olhou para o alto com um sorriso triste enquanto a outra se encurvou para olhar o chão mais de perto. Um homem, fora de si, veio perguntar se as duas não gostariam de ir ao banheiro. Ele as acompanharia. As duas sacudiram a cabeça. Ficariam firmes, o Senhor lhes daria força.

— Como é que eu sei que ta roxo? Eu olhei, né Sissica. Com um espelho. Rá, cê pensou o quê?

Várias pessoas estavam agora de pé, tomadas de uma súbita revolta com aquela demora no embarque. Caminhavam de um lado para o outro. Por que o avião não saía?

— Cê pensa que eu pedi pra camareira olhar, é? Dá uma olhadinha aqui no meu furúnculo, minha filha, pra ver que cor é. É só levantar o...

Houve uma debandada. Algumas pessoas se precipitaram para o balcão de informações e começaram a bater com os punhos no balcão, exigindo embarque imediato ou explicações. Outras se dispersaram pelo aeroporto, em pânico. Só as duas freiras continuaram sentadas, com os olhos fechados e uma expressão de martírio, entre doce e dolorida, no rosto. Finalmente o homem despediu-se da Sissica, guardou o celular no bolso e disse para as freiras:

— Minha filhinha. Estou levando um joguinho eletrônico para ela e...

Então o homem se deu conta de que a sala de espera estava vazia e perguntou:

— Ué, já chamaram?

Fonte:
VERÍSSIMO, Luís Fernando. Novas comédias da vida privada. 
Porto Alegre: L&PM, 1996.

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