quinta-feira, 22 de abril de 2021

Marcelo Spalding (Dicas de Escrita) Criação de Personagens

Uma história sempre surge de uma ideia. Mas de onde vêm as boas ideias? Muitas vezes, a primeira ideia que temos é da personagem que queremos criar. Não é por acaso, nesse sentido, que tantos livros e filmes têm no título o nome do protagonista.

Quanto à composição, a personagem deve dar a impressão de que vive, de que é como um ser vivo. Choramos a morte de uma personagem na ficção e muitas vezes somos indiferentes a tragédias informadas no noticiário. Vejamos, então, uma técnica de composição baseada na mescla de reprodução de pessoas reais e invenção do autor.

"Não se preocupe com a trama, mas com as personagens”
Anne Lamott


PERSONAGENS PLANOS X ESFÉRICOS

Personagens Planos

Personagens planas são aquelas que não mudam com as circunstâncias, são facilmente identificadas na narrativa.

Em geral, são coadjuvantes, mas há muitos protagonistas que se comportam de forma plana: super-heróis, vilões, princesas, bruxas.

A personagem plana é aquela que é sempre boa, é sempre má, é sempre apaixonada, é sempre sacana. Não há variação de caráter, ele não hesita.

Nos casos mais radicais, essas personagens são meros estereótipos que funcionam na narrativa como parte do cenário (o mordomo, o ladrão, a vizinha gostosa). No humor e nas histórias infantis esse tipo de personagem costuma fazer muito sucesso.

Personagens Esféricos

São as personagens modernas, capazes de surpreender de maneira convincente. É o herói que tem medo, raiva, rancor, é o vilão que mostra sua face humana, é a esposa romântica e apaixonada que olha para o vizinho ao lado.

Segundo Cândido, a marcha do romance moderno foi no rumo de uma complicação crescente da psicologia da personagem; deste ponto de vista, poderíamos dizer que a revolução sofrida pelo romance no século XVIII consistiu numa passagem do enredo complicado com personagem simples para o enredo simples (coerente, uno) com personagem complicada.

Questionário para criação de Personagens

Essa é uma sugestão de questionário para ajudá-lo na composição dos personagens.

Claro que você não precisa responder a todas as perguntas e nem mesmo fazer uma reflexão tão profunda de todos os seus personagens.

Muitos escritores de conto fazem essa composição apenas mentalmente, não passando suas ideias para o papel. Mas acredite, planejar com cuidado seu texto e fazer esse tipo de exercício irá ajudá-lo muito, especialmente para quem está iniciando na criação literária.

Nome Completo
Cidade em que nasceu e onde mora atualmente
Data de Nascimento / signo
Estado civil / orientação sexual / com ou sem filhos
Profissão / formação / Nível social
Hobbies
Maior sonho / Maior frustração / Maior medo
Pessoas com quem mais se relaciona
5 coisas que jamais faria / 5 coisas que ainda vai fazer
Papel que terá no conto
Conflito dele no conto (se terá algum)
Outras informações que você considera relevante

O NOME DOS PERSONAGENS

Batize o seu personagem

Eu já batizei personagens e filhos e posso dizer: batizar uma personagem é bem mais difícil. Ocorre que a personagem você batiza depois que ela existe como forma de representar suas características ou pelo menos ajudar nessa composição. Já um filho você batiza sem saber sua cor, sua personalidade, seus sonhos.

Na ficção, não veremos o nome de Clara numa personagem de pele escura, a não ser que esse seja o conflito ou parte do conflito da trama. Não teremos um Pedro dócil, já virou até clichê o nome de Pedro para personagens durões como uma pedra. Não veremos um apelido diminutivo para um bandido ou um personagem grande, a não ser com objetivo cômico. E não teremos um sobrenome de origem alemã numa personagem ou trama que não tenha nenhuma relação com a colonização alemã.

Dar nome aos personagens, portanto, requer cuidado e planejamento. Você deve considerar, em ordem:

1. A personalidade da personagem;

2. A sonoridade do nome;

3. Se o nome não é semelhante a outros nomes da trama;

4. A possibilidade que o nome dá de apelidos ou contrações, a fim de evitar sua repetição excessiva.

PERSONAGENS SEM NOME

É muito comum, principalmente em contos, o autor não dar nome a seus personagens. A vantagem é que esse personagem pode ser qualquer um, aumentando a chance de nos identificarmos com ele. Só que a grande desvantagem é o texto ficar confuso, em especial se há mais de um personagem. Aí seremos obrigados a usar muitos "ele / ela" e isso dificultará nosso texto mais do que ajudará.

O MAIOR ERRO NA CRIAÇÃO DE PERSONAGENS

Maniqueísmo

Há um termo muito utilizado em resenhas literárias e, portanto, em oficinas literárias: o maniqueísmo. Originalmente, o termo remonta a uma filosofia religiosa sincrética e dualística que divide o mundo entre Bem, ou Deus, e Mal, ou o Diabo (Santo Agostinho, por exemplo, a princípio fora influenciado pelas ideias maniqueístas, mas terminará por combatê-las).

Em suma, hoje dizemos que uma obra maniqueísta é aquela que divide as personagens em bons e maus, sendo os bons sempre muito bonzinhos e os maus, sempre muito maus. As personagens, assim, são sempre planas, nunca complexas.

Os exemplos mais tradicionais encontramos nos blockbusters hollywoodianos e nas novelas da Globo, que chegam a ter o núcleo dos bons e o dos maus.

A não verossimilhança do maniqueísmo em textos


Ocorre que, sem entrar em discussões sociológicas ou psicológicas, na vida real nós não somos apenas bons ou apenas maus, até porque sendo assim não sobreviveríamos nesse mundo por muito tempo. Em geral, as pessoas têm medos, receios, preconceitos, ansiedades, e transmitem isso em pequenos detalhes, lutando para fazer o bem, mas naturalmente comportando-se de forma duvidosa vez que outra. Não estou falando que as pessoas seriam capazes de matar, mas tampouco seriam humilhadas e maltratadas sem sequer levantar a voz ou transformar o choro em raiva, como acontece em tantas cenas de novela.

Dessa forma, um texto feito de forma maniqueísta não é verossímil, pelo menos desde meados do século XVIII.

- Cândido
"A marcha do romance moderno foi no rumo de uma complicação crescente da psicologia da personagem; deste ponto de vista, poderíamos dizer que a revolução sofrida pelo romance no século XVIII consistiu numa passagem do enredo complicado com personagem simples para o enredo simples (coerente, uno) com personagem complicada".


O QUE EVITAR

Sendo assim, a não ser que de forma planejada e proposital, evite enredos maniqueístas e protagonistas planos.

As exceções clássicas são a comédia e as obras para o público infantil, mas vale refletir sobre por que as crianças hoje se identificam tanto com o Shrek e tão pouco com o príncipe, os jovens apreciam tanto com o sombrio Batman e tão pouco o belo Super Homem.
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Fonte:
Marcelo Spalding. Criação de Personagens. 
E-book disponível em Escrita Criativa

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