É um caso bem curioso o que te vou contar e que me parece digno de registro. Para muitos parecerá fantástico, mas como tu sabes, já houve quem dissesse que a realidade é mais fantástica do que imaginamos.
— Dostoievski?
— Sim, creio que foi ele, embora não afiance que fosse com estas palavras. Sabes bem como são as palavras dele?
— Não, mas estou certo que não lhe trais o pensamento... Enfim! Isso não vem ao caso. Conta lá a história.
— Conto-a a ti com todos os detalhes, para que possas tirar dela todo o profundo sentido que tem. Se tratasse de outro, havia de abreviá-la, transforma-la-ia em anedota, mas tratando-se de ti, não há nada que seja prolixo para a compreensão de semelhante fato.
Eles estavam no Campo de Sant'Ana e aquelas cotias sempre ariscas e aquelas saracuras de galinheiro, apesar de tudo, não deixavam de dar um toque selvagem naquele jardim educado.
O narrador continuou:
— Foi isto há alguns anos passados. Bebia eu muito nesse tempo, muito mesmo porque tinha por divisa ou tudo ou nada. Além disso adotam uma frase não sei de que autor, como complemento da divisa.
— Qual é? perguntou o outro.
— "O burguês bebe champanha; o herói bebe aguardente".
— Essas duas sentenças cobiçadas deviam dar resultados surpreendentes.
— Deram como tu sabes, mas eu te quero contar uma que tu não sabes.
— Duvido.
— Pois vais ver.
— Não acredito, pois sei todas as tuas proezas desse tempo.
— Essa proeza, porém, não é minha, é de outro ou de outra.
— Que outra?
— Conheceste a Alzira?
— Sim! Aquela vagabunda que ia á casa do "Guaco", na rua do Carmo.
— É isso mesmo: aquela vagabunda que ia à casa do "Guaco", na rua do Carmo. É isso.
— Homem! Pelo modo por que falas, parece que tiveste paixão por ela...
— Não tive paixão, mas sou-lhe grato.
— Por quê?
— Lembras-te bem que ela bebia conosco calistos de "Guaco".
— Lembro-me bem.
— E que ela tivera um passado de lustre, de opulência, no alto mundanismo?
— Perfeitamente. Contudo, Frederico, eu penso que ela exagerava um pouco.
— É verdade. Aquele caso que ela nos contou de ter perdido uma noite, não sei em que jogo, em São Paulo, oitenta contos, não me parece verossímil. Entretanto...
— Não é só isso. Todas as sumidades da República haviam sido seus amantes. Ora, isso não é possível, porquanto muitas delas, quando começaram, eram pobretões que não podiam aspirar a semelhante "objeto de luxo".
— Tens razão, mas...
— Uma coisa: quando me recordo da Alzira, só me vem à mente o seu famoso chapéu-de-chuva de alpaca, com que, às vezes, quando embriagada, desancava um qualquer e ia parar no xadrez.
— Eu, quando me vem ela à lembrança, com a sua fisionomia triste, fanada, é com o seu orgulho de ter tido muito dinheiro, por meios tão baixos...
— A observação é boa. Ela não parecia ter dor em recordar os belos dias passados, parecia antes ter prazer... Afinal, que tem ela com a tua história?
— Estavas fora, lá, para Alagoas. Continuei a frequentar o "Guaco", onde ia todas as tardes encontrar os companheiros. Ocasionalmente topava com Alzira e pagava-lhe um cálice. As nossas relações eram as mais amistosas possíveis. Ela me contava as histórias de aventuras passadas, quer as de jogo, quer as de amor e eu as ouvia para aprender a vida com aquela mulher batida pela sorte, pelo infortúnio e pela maldade dos homens. Gostava até da emoção que ela sentia, narrando o seu triunfo, quando, trepada no alto dos carros de Carnaval, era aclamada pelas famílias, nas ruas apinhadas por onde passava. Pelo modo que ela me contava esses episódios, julguei que Alzira nesses dias se supunha resgatada. Talvez tivesse razão...
— Coitada! fez o outro.
— Bem. Como te contava, ia sempre ao "Guaco" e, em certo dia do pagamento, lá fui. Tinha os vencimentos quase intactos na algibeira. Encontrei-a, sentei-me e pedi cerveja. Ela não quis, ficou no seu cálice habitual. Em dado momento, ao passar o proprietário, o Martins - tu te lembras dele?
— Pois não.
— Disse-lhe: Martins, vê quanto te devo. Ele respondeu e, logo que ele se afastou, Alzira perguntou-me: "Frederico, tens dinheiro?" Disse-lhe que sim. E ela me pediu: "Podes 'passar' cinco mil-réis?" Não me fiz esperar e dei-lhe uma nota de cinco mil-réis que tinha na algibeira do colete. Ela guardou e continuou a conversa. Veio a hora de sair e de pagar a despesa atual e as passadas. Martins fez a soma e tirei da algibeira da calça o grosso do dinheiro, dando-lhe uma nota que satisfizesse a conta. Logo que o Martins se dirigiu ao balcão, ela me disse ao ouvido: "Tu não podes dar mais cinco mil-réis?" Disse-lhe peremptoriamente: não! Não teve um momento de hesitação: levantou-se e atirou-me a nota na cara. Foi saindo e descompondo-me baixamente.
— Era muito malcriada.
— Pensei isso e o Martins aconselhou-me a evitá-la, por isso. Um acontecimento posterior, porém, fez-me julgá-la melhor.
— É daí que...
— Vais ouvir: passaram-se meses e, para publicar um livro, meti-me em complicações. Se o livro deu dinheiro eu não sei, porque só perdi com ele, entretanto, fez um sucessozinho, mas cai de roupas, etc., etc. Uma noite estava sentado entre desanimados, como eu, num banco do largo da Carioca, considerando aqueles automóveis vazios, que lhe levam algum encanto. Apesar disso, não pude deixar de comparar aquele rodar de automóveis, rodar em tomo da praça, como que para dar ilusão de movimento, aos figurantes de teatro que entram por um lado e saem pelo outro, para fingir multidão, e como que me pareceu que aquilo era um truque do Rio de janeiro, para se dar ares de grande capital movimentada... Estava assim, quando me bateram ao ombro: "Oh! Frederiquinho!"
— Quem era?
— Era a Alzira.
— Queria ela alguma coisa?
— Queria dar-me. Nada mais.
— O quê?
— A passagem do bonde.
— Tu não a tinhas?
— Tinha. Disse-lhe isso até; mas o meu aspecto era da mais completa miséria. Minha roupa estava sebosa, meu chapéu de palha muito sujo, cabeludo, barba velha; e, além de tudo, sobreviera-me uma fraqueza de pálpebras, que me obrigava a usar uns sinistros óculos escuros de mendigo semi-cego. Apesar da minha recusa, ela insistiu de tal modo, de forma tão cheia de piedade e ternura, que me pareceu uma cruel desfeita não lhe aceitar o cruzado.
— Aceitaste?
— Aceitei.
— Curioso.
— Está aí a vagabunda do "Guaco", meu caro Chaves.
Levantaram-se, saíram do jardim e o advento da noite, misteriosa e profunda, era anunciado pelo acender dos lampiões de gás e o piscar dos globos de luz elétrica, naquele magnífico fim de crepúsculo.
— Dostoievski?
— Sim, creio que foi ele, embora não afiance que fosse com estas palavras. Sabes bem como são as palavras dele?
— Não, mas estou certo que não lhe trais o pensamento... Enfim! Isso não vem ao caso. Conta lá a história.
— Conto-a a ti com todos os detalhes, para que possas tirar dela todo o profundo sentido que tem. Se tratasse de outro, havia de abreviá-la, transforma-la-ia em anedota, mas tratando-se de ti, não há nada que seja prolixo para a compreensão de semelhante fato.
Eles estavam no Campo de Sant'Ana e aquelas cotias sempre ariscas e aquelas saracuras de galinheiro, apesar de tudo, não deixavam de dar um toque selvagem naquele jardim educado.
O narrador continuou:
— Foi isto há alguns anos passados. Bebia eu muito nesse tempo, muito mesmo porque tinha por divisa ou tudo ou nada. Além disso adotam uma frase não sei de que autor, como complemento da divisa.
— Qual é? perguntou o outro.
— "O burguês bebe champanha; o herói bebe aguardente".
— Essas duas sentenças cobiçadas deviam dar resultados surpreendentes.
— Deram como tu sabes, mas eu te quero contar uma que tu não sabes.
— Duvido.
— Pois vais ver.
— Não acredito, pois sei todas as tuas proezas desse tempo.
— Essa proeza, porém, não é minha, é de outro ou de outra.
— Que outra?
— Conheceste a Alzira?
— Sim! Aquela vagabunda que ia á casa do "Guaco", na rua do Carmo.
— É isso mesmo: aquela vagabunda que ia à casa do "Guaco", na rua do Carmo. É isso.
— Homem! Pelo modo por que falas, parece que tiveste paixão por ela...
— Não tive paixão, mas sou-lhe grato.
— Por quê?
— Lembras-te bem que ela bebia conosco calistos de "Guaco".
— Lembro-me bem.
— E que ela tivera um passado de lustre, de opulência, no alto mundanismo?
— Perfeitamente. Contudo, Frederico, eu penso que ela exagerava um pouco.
— É verdade. Aquele caso que ela nos contou de ter perdido uma noite, não sei em que jogo, em São Paulo, oitenta contos, não me parece verossímil. Entretanto...
— Não é só isso. Todas as sumidades da República haviam sido seus amantes. Ora, isso não é possível, porquanto muitas delas, quando começaram, eram pobretões que não podiam aspirar a semelhante "objeto de luxo".
— Tens razão, mas...
— Uma coisa: quando me recordo da Alzira, só me vem à mente o seu famoso chapéu-de-chuva de alpaca, com que, às vezes, quando embriagada, desancava um qualquer e ia parar no xadrez.
— Eu, quando me vem ela à lembrança, com a sua fisionomia triste, fanada, é com o seu orgulho de ter tido muito dinheiro, por meios tão baixos...
— A observação é boa. Ela não parecia ter dor em recordar os belos dias passados, parecia antes ter prazer... Afinal, que tem ela com a tua história?
— Estavas fora, lá, para Alagoas. Continuei a frequentar o "Guaco", onde ia todas as tardes encontrar os companheiros. Ocasionalmente topava com Alzira e pagava-lhe um cálice. As nossas relações eram as mais amistosas possíveis. Ela me contava as histórias de aventuras passadas, quer as de jogo, quer as de amor e eu as ouvia para aprender a vida com aquela mulher batida pela sorte, pelo infortúnio e pela maldade dos homens. Gostava até da emoção que ela sentia, narrando o seu triunfo, quando, trepada no alto dos carros de Carnaval, era aclamada pelas famílias, nas ruas apinhadas por onde passava. Pelo modo que ela me contava esses episódios, julguei que Alzira nesses dias se supunha resgatada. Talvez tivesse razão...
— Coitada! fez o outro.
— Bem. Como te contava, ia sempre ao "Guaco" e, em certo dia do pagamento, lá fui. Tinha os vencimentos quase intactos na algibeira. Encontrei-a, sentei-me e pedi cerveja. Ela não quis, ficou no seu cálice habitual. Em dado momento, ao passar o proprietário, o Martins - tu te lembras dele?
— Pois não.
— Disse-lhe: Martins, vê quanto te devo. Ele respondeu e, logo que ele se afastou, Alzira perguntou-me: "Frederico, tens dinheiro?" Disse-lhe que sim. E ela me pediu: "Podes 'passar' cinco mil-réis?" Não me fiz esperar e dei-lhe uma nota de cinco mil-réis que tinha na algibeira do colete. Ela guardou e continuou a conversa. Veio a hora de sair e de pagar a despesa atual e as passadas. Martins fez a soma e tirei da algibeira da calça o grosso do dinheiro, dando-lhe uma nota que satisfizesse a conta. Logo que o Martins se dirigiu ao balcão, ela me disse ao ouvido: "Tu não podes dar mais cinco mil-réis?" Disse-lhe peremptoriamente: não! Não teve um momento de hesitação: levantou-se e atirou-me a nota na cara. Foi saindo e descompondo-me baixamente.
— Era muito malcriada.
— Pensei isso e o Martins aconselhou-me a evitá-la, por isso. Um acontecimento posterior, porém, fez-me julgá-la melhor.
— É daí que...
— Vais ouvir: passaram-se meses e, para publicar um livro, meti-me em complicações. Se o livro deu dinheiro eu não sei, porque só perdi com ele, entretanto, fez um sucessozinho, mas cai de roupas, etc., etc. Uma noite estava sentado entre desanimados, como eu, num banco do largo da Carioca, considerando aqueles automóveis vazios, que lhe levam algum encanto. Apesar disso, não pude deixar de comparar aquele rodar de automóveis, rodar em tomo da praça, como que para dar ilusão de movimento, aos figurantes de teatro que entram por um lado e saem pelo outro, para fingir multidão, e como que me pareceu que aquilo era um truque do Rio de janeiro, para se dar ares de grande capital movimentada... Estava assim, quando me bateram ao ombro: "Oh! Frederiquinho!"
— Quem era?
— Era a Alzira.
— Queria ela alguma coisa?
— Queria dar-me. Nada mais.
— O quê?
— A passagem do bonde.
— Tu não a tinhas?
— Tinha. Disse-lhe isso até; mas o meu aspecto era da mais completa miséria. Minha roupa estava sebosa, meu chapéu de palha muito sujo, cabeludo, barba velha; e, além de tudo, sobreviera-me uma fraqueza de pálpebras, que me obrigava a usar uns sinistros óculos escuros de mendigo semi-cego. Apesar da minha recusa, ela insistiu de tal modo, de forma tão cheia de piedade e ternura, que me pareceu uma cruel desfeita não lhe aceitar o cruzado.
— Aceitaste?
— Aceitei.
— Curioso.
— Está aí a vagabunda do "Guaco", meu caro Chaves.
Levantaram-se, saíram do jardim e o advento da noite, misteriosa e profunda, era anunciado pelo acender dos lampiões de gás e o piscar dos globos de luz elétrica, naquele magnífico fim de crepúsculo.
Fonte:
Lima Barreto. Histórias e sonhos. Belém/PA: Unama.
Lima Barreto. Histórias e sonhos. Belém/PA: Unama.
Publicado originalmente em 1920.
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