sábado, 3 de abril de 2021

Aparecido Raimundo de Souza (Parte 38) Receita rápida

O LUIZÃO BOCA ZANGADA chega no escritório de sua advogada, às nove horas em ponto, cumprimenta a secretária Maria do Carmo e revela, sem mais delongas, o motivo da sua presença:

— Bom dia, dona Maria do Carmo. Preciso urgentemente falar com a minha advogada. Por favor, é muito importante. Diga a ela que estou aqui na recepção e, se puder me atender agora, agradecerei.

Dona Maria do Carmo, a secretária, está com o rosto entristecido e a voz embargada. Toda ela é uma angústia de proporções gigantescas:

— Bom dia, seu Luizão. A doutora Efigênia não poderá mais atendê-lo...

Luizão Boca Zangada se queda pasmo e interrogativo:

— Como não? Eu marquei com ela na sexta-feira retrasada. Houve um problema, precisei faltar ao nosso encontro. Liguei para a casa dela, no mesmo dia, e ela me disse que eu poderia vir hoje cedo.

De repente a Maria do Carmo começa a chorar copiosamente:

— Seu Luizão, infelizmente...

Luizão Boca Zangada não deixa que a funcionária complete o que tem a dizer. Interrompe:

— Dona Maria do Carmo, veja bem. Me escuta. Estou em dia com os honorários. Nada devo à doutora Efigênia... É um caso novo... Caso novo...

Com toda paciência a garota tenta explicar:

— Seu Luizão... A doutora..

Todavia, o Luizão parece por demais irritadiço e fora de si:

— Dona Maria do Carmo, não tem mais nem menos. Vá lá dentro e diga para a doutora que tenho urgência urgentíssima em falar com ela... Eu...

Desta vez, a atendente corta a conversa pelo meio:

— Seu Luizão, a doutora Efigênia morreu neste sábado. Nos deixou, a todos, comovidos e sem ação. Como pode perceber, a grosso modo, nos pegou de calças curtas. Sinto muito...

Luizão Boca Zangada resmunga alguma coisa que ninguém entende, dá meia volta e vai embora.

Dia seguinte, mesmo horário, está ele, de volta, ao escritório. Ao chegar, cumprimenta as pessoas sentadas na recepção, se serve de um cafézinho e encara a bela recepcionista:

— Bom dia, dona Maria do Carmo. Como lhe disse ontem, careço urgentemente falar com a minha advogada. Por favor, é muito importante. Diga a ela que estou aqui e, se puder me atender agora, agradecerei...

Maria do Carmo pede licença a uma cliente com uma bebê de colo, encara o Luizão Boca Zangada e, calmamente, volta a esmiuçar o que ele sabia desde o dia anterior:

— Seu Luizão Boca Zangada, infelizmente a doutora Efigênia não poderá lhe atender. Ela...

Luizão Boca Zangada perde a esportiva e se enfurece:

— Dona, não quero saber. Não tem mais, nem menos. Vá lá dentro e diga para a doutora que tenho urgência em falar com ela... É um caso novo... Não saio daqui hoje...

A pacienciosa tenta, de novo, com toda calma, definir o infortúnio que pegou a todos  de surpresa:

— Seu Luizão, Seu Luizão, como lhe disse ontem... Está lembrado? A doutora Efigênia faleceu...

— Como é que é?

— A doutora Efigênia não está mais entre nós...

— Como não? Eu marquei com ela na sexta-feira passada. Ela me disse que eu poderia vir. Eu vim. A senhorita me enrolou e, agora, de novo, me vem com este papo furado...

— Seu Luizão, como lhe disse ontem, e volto a repetir hoje. A doutora Efigênia partiu. Sinto muito, sinto de verdade... Estava explicando a esta senhora, quando o senhor chegou...

— Não é possível. Na sexta-feira ela...

Precisa a criatura repetir, em meio a um suor de angústia que lhe molha as têmporas (apesar do ar condicionado ligado), o que havia dito no dia anterior, para que o Luizão Boca Zangada entendesse. Apesar disto, o imbecil vai embora abespinhado, batendo a porta de vidro que guarnece a sala de espera.

Quarta-feira, nove horas em ponto, o hall cheio. Entra, de novo, o Luizão Boca Zangada, como um furacão. Desta feita, sem cumprimentar ninguém. Vai direto ao balcão e vocifera:

— Dona Maria do Carmo, aqui estou em carne e osso. Rogo que vá lá dentro agora e diga para a doutora que tenho urgência urgentíssima em falar com ela... Só saio daqui depois que me entrevistar com ela. Não quero saber de lero-lero. Vai... Vai... Não tenho o dia todo... Trouxe para ela um caso novo...

Assustada com os modos brutalizados, a Maria do Carmo se levanta da sua cadeira e encara o ranzinza parado a sua frente:

— Seu Luizão, pelo amor de Deus. A doutora Efigênia morreu. Disse isto ontem ao senhor e na segunda também. E torno a repetir, agora e sempre: a doutora Efigênia veio à óbito.

Luizão Boca Zangada bate fortemente na superfície da bancada tentando intimidar a funcionária:

— Veio à quê?

— À óbito, seu Luizão. À óbito. A doutora Efigênia morreu. Morreu...

Luizão perde as estribeiras e encara as pessoas que ocupam o ambiente. Grita:

— E toda esta gente que aqui está? O que me diz, qual a explicação que me dará em vista disto?

Sem perder a serenidade, Maria do Carmo repete, pela milésima vez, a triste notícia:

— A doutora Efigênia, seu Luizão, morreu... Morreu...

Estabanado, derrubando um vaso de plantas, o anormal sai da sala, e, desta feita, quase põe abaixo a porta envidraçada de acesso ao ambiente.

Quinta-feira, nove horas em ponto, a sala se encontra como nos dias anteriores, superlotada. A Maria do Carmo segue atendendo, devolvendo documentos, fazendo a restituição de valores recebidos. Eis quem surge, do nada... Luizão Boca Zangada. Ao vê-lo entrar sem modos e com ares de poucos amigos, se adianta e peita o inconveniente:

— Seu Luizão, de novo? Pelo amor de Deus, não acredito! Será que joguei pedras na cruz?

Luizão não dá tratos à bola:

— Dona Maria do Carmo, aqui estou, mais uma vez, nos seus calcanhares. Não vou pedir, vou intimar a senhora. Falarei uma vez só. E não pretendo repetir. Vá, pois, lá dentro, agora — eu disse agora — e diga para a doutora Efigênia, que tenho urgência urgentíssima em falar com ela... Lembrando à sua cara de espantada, que somente sairei daqui depois que ela me encarar frente a frente. Hoje estou disposto a tudo. Não quero saber de desculpas. Vai logo, o que está esperando?

Encurraladamente acuada, Maria do Carmo se debulha em lágrimas. Algumas senhoras que aguardam a vez, acorrem a atendê-la, em face do estado emocional deplorável em que a moça se encontra.

— Senhor – diz uma cliente — Sinto muito dizer, mas a doutora Efigênia morreu no sábado. Estamos aqui pegando a nossa papelada para levarmos para outro defensor.

Um idoso entra na discussão e procura, de igual modo, acalmar os ânimos do irrequieto travesso:

— Sentimos muito, senhor. Todos nós aqui sentimos muito. Fomos vítima do inevitável. A amável e querida doutora Efigênia, nos deixou...

Luizão Boca Zangada, desfere um soco, ao oposto da primeira vez, não na bancada, desta feita, na parede ao lado da mesinha de café. Não contente, atira na cesta de lixo um amontoado de copinhos plásticos, onde os clientes da extinta podiam se servir de uma bebida quentinha, feita na hora:

— Morreu? Morreu? Como esta desgraçada morreu? E o meu processo?

À imitação das vezes em que ali esteve, o chato de galochas sai raivoso e encrespado, como se não entendesse o que acontecia.

Sexta-feira, amanhece chovendo. À cântaros. Apesar disto, o espaço destinado aos clientes da doutora Efigênia, se faz superlotado. De resto, tudo em paz, em ordem, até que o relógio assinala nove horas em ponto. Trajando capa de chuva preta e guarda chuva, adentra, no maior estardalhaço, o Luizão Boca Zangada.

Deseducado, como de costume, e soltando fogo pelas ventas, sem cumprimentar quem ali chegara antes dele, encosta direto na beira da pobre e indefesa Maria do Carmo:

— Dona Maria do Carmo... Senhora, os cambaus... Maria... Vou lhe dar dois minutos para ir lá dentro e chamar a sua patroa, a maldita doutora Efigênia. Repare, um minuto acabou de passar... Não ande, voe...

Maria do Carmo faz, então, sinal para um homem alto, vestido num elegante terno preto que se acha encostado ao lado da porta do banheiro. O seu corpo atlético lembra um desses armários embutidos de doze portas com maleiro e tudo:

— Seu Eurico, seu Eurico, por favor...

O seu Eurico prontamente se aproxima, todo volumoso, na frente da pequena Maria do Carmo.

— Pois não, senhora!

— Este é o senhor do qual falei. — aponta o Luizão Boca Zangada — Veio aqui a semana inteira e cansei de explicar à ele que a doutora Efigênia não poderá atendê-lo, em face do... O senhor sabe o motivo, da pobrezinha ter nos enlutado. Como pode ver, acho que precisará levar um papinho mais sério com o nosso teimosinho...

O grandalhão encara o Luizão Boca Zangada de uma maneira tão fria que todos os presentes certamente alimentaram a mesma impressão. Aquele olhar do segurança parece ter varado o fundo da alma pegajosa do buliçoso fanfarrão:

— Pois não, cavalheiro? Em que posso ajuda-lo?

— Com quem estou falando? Não me lembro de ter topado, pelo menos, até agora, com a sua carinha de mau. Quem é o prezado?

— Um amigo da doutora Efigênia. Antes que fale alguma coisa, até onde sei, a senhorita Maria do Carmo lhe passou os devidos esclarecimentos a semana toda.

Luizão Boca Zangada, por seu turno,  arrosta o brutamontes, sem se deixar ser intimidado pela energia prodigiosa que emana de sua superioridade. Carece esticar bem o pescoço, em face da estatura do seu interlocutor ser um pouco incomum.

— Verdade. Ela me disse que a minha advogada morreu. Ora, se ela morreu, o que toda esta gente veio fazer aqui? Ela está atendendo e se nega a me receber? Saiba, seu rascunho de Torre Eiffel, que estou em dia, em dia. O senhor quer ver os recibos?

— Não quero ver nada. Se o senhor, por acaso, pagou e não deve nada, ou se pagou a mais e a senhorita Maria do Carmo disser que o senhor tem alguma soma a ser reembolsada, ou via outra, documento faltoso, que ficou para trás, por favor, pegue o que tem de pegar, ou de receber e caia fora.

E prossegue, no mesmo tom, sem mover um músculo da face carrancuda.

— A doutora Efigênia morreu, bateu as botas...

Luizão Boca Zangada, em resposta, aponta o dedo em riste para a galera ao redor:

— Morreu né? E toda esta gentalha aqui sentada? Está esperando por quem? Se a doutora Efigênia escafedeu... Até onde sei, ela trabalhava sozinha... E então, desembucha...

— Estas pessoas estão retirando seus documentos para irem procurar outro advogado. Deu para entender?

— Não dei, nem vou dar. Ficou louco? “Ta me tirando?”.

— Senhor, um conselho. De novo. Pela derradeira vez. Pegue seus documentos e se tiver dinheiro, rogo que resgate e, da mesma forma, depois de tudo nos conformes, vaza daqui. Fui claro, ou quer que eu desenhe?

Em continuo, o robusto pergunta à Maria do Carmo (para que todos o escutem) se aquele mala sem alça tinha dinheiro a ser devolvido ou documentos.

— Nada, seu Eurico. A doutora acertou tudo com ele. Aliás, aqui está a pasta com todo o andamento do caso que ela resolveu para ele. O processo deste senhor está finalizado faz tempo.

— Ouviu, meu camarada. Nada mais resta a fazer aqui. Dê meia volta e evapore...

— Quero falar com a doutora...

— Quantas vezes terei que dizer para o senhor que a sua advogada, a doutora Efigênia morreu?

Rindo a mais não poder, e exprimindo uma audácia tranquila, o Luizão Boca Zangada tenta passar, num gesto carinhosamente revestido de uma ironia vulgar, a mão esquerda em torno do rosto carrancudo do impenetrável segurança.

— A doutora morreu?

— Morreu, morreu... Repete o segurança, meio pê da vida e prestes a encaçapar o sujeito.

— MORREU... M...O...R...R...E...U!...

— Desculpe, meu lindo — completa Luizão Boca Nervosa em voz tronituante. A doutora morreu. Desculpe, de verdade, mas é que eu adoro, amo de paixão ouvir isto! De paixão, está me compreendendo? A doutora morreu... Uau! Que ótimo... Que legal... A doutora, a minha doutora morreu... Viva, viva, a doutora virou defuntaaaaaa...

A datar, porém, deste dia em diante, o Luizão Boca Zangada virou as costas e nunca mais apareceu no pedaço.

Fonte:
Parte integrante do livro de crônicas de Aparecido Raimundo de Souza, ‘Comédias da vida na privada’ – Editora AMC-GUEDES - Rio de Janeiro. 2021. Texto enviado pelo autor.

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