— É preciso inventar alguma coisa — disse o sapo. — Alguma coisa de novo, surpreendente. Pular ao som do fandango paranaense já está me tirando a alegria de viver. Eu queria pular ao ritmo da Marselhesa, por exemplo.
— Não te fica bem a Marselhesa — ponderou o caxinguelê. — Não só é antiquada, como o teu jeito é mais para o folclore do Sul. Talvez uma
rancheira, uma polquinha de galpão fosse mais indicada. Mas o caxinguelê também não andava satisfeito com o seu número.
Ágil e serelepe como é de natureza, tinha de imitar o filho de Guilherme Tell, imóvel, com a maçã na cabeça, esperando a flechada paterna. O pai era representado por um macaco simpático, que alimentava o desejo de, lá um dia, acertar no caxinguelê.
— Não tenho vocação para estátua nem para vítima. Vou deixar este circo, a menos que me nomeiem gerente. Tenho vocação para gerente,
você sabia?
O sapo não sabia nada. Estava farto de fandango, que o obrigava a uma dança inconveniente para sua idade e condição. De resto, nenhum animal daquele circo sentia prazer executando o número que lhe deram. Era o circo mais inconformado que já existiu.
Seu dono ignorava isto, porque morava longe e nunca assistiu a uma
função.
O circo jamais pegou fogo. Seus animais descontentes constituíam a maior atração. Cada vez seduziam mais público. Era o anticirco.
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O ASSALTO
A casa luxuosa no Leblon é guardada por um molosso de feia catadura, que dorme de olhos abertos, ou talvez nem durma, de tão vigilante. Por isso, a família vive tranquila, e nunca se teve notícia de assalto à residência tão bem protegida.
Até a semana passada. Na noite de quinta-feira, um homem conseguiu abrir o pesado portão de ferro e penetrar no jardim. Ia fazer o mesmo com a porta da casa, quando o cachorro, que muito de astúcia o deixara chegar até lá, para acender-lhe o clarão de esperança e depois arrancar-lhe toda ilusão, avançou contra ele, abocanhando-lhe a perna esquerda. O ladrão quis sacar do revólver, mas não teve tempo para isto. Caindo ao chão, sob as patas do inimigo, suplicou-lhe com os olhos que o deixasse viver, e com a boca prometeu que nunca mais tentaria assaltar aquela casa. Falou em voz baixa, para não despertar os moradores, temendo que se agravasse a situação.
O animal pareceu compreender a súplica do ladrão, e deixou-o sair em estado deplorável. No jardim ficou um pedaço de calça. No dia seguinte, a empregada não entendeu bem por que uma voz, pelo telefone, disse que era da Saúde Pública e indagou se o cão era vacinado.
Nesse momento o cão estava junto da doméstica, e abanou o rabo, afirmativamente.
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O BEBEDOR TOTAL
— O senhor tem lista dos uísques importados?
— Aqui está. Tenho certeza de que encontrará a sua marca preferida.
Explicou que não era de preferir marca. Preferia todas. Seu prazer consistia em ir do Ancestor ao White Horse, não desprezando nenhum dos que começam pelas demais letras do alfabeto.
O gerente ficou assombrado. Que bebedor enciclopédico!
— Noto uma coisa. A lista me parece bastante lacunosa. O senhor não tem uísques das letras E, I, K, M, N, Q, T, U, X, Y e Z. É pena.
— Perdão, mas será que não bastam as cinquenta e tantas marcas que ponho à disposição?
— Não, infelizmente. Queria o abecedário completo.
— E… iria comprar todo ele?
— Comprar? Absolutamente não. Não pretendo comprar sequer uma garrafa. Com esses preços, nem mesmo as miniaturas, sabe? Eu sou bebedor de lista. A lista me invoca, me embriaga, me transporta ao sonho. Mas só uma lista bem completa. Obrigado, passe bem.
Fonte:
Carlos Drummond de Andrade. Contos plausíveis. Publicado em 1981.
Carlos Drummond de Andrade. Contos plausíveis. Publicado em 1981.
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