O vento soprava suavemente nas folhas do arvoredo que ainda restava ao lado direito do lago; à esquerda o milharal confrontava num cenário tão belo e de compatível encanto! Completando o círculo, um bambuzal que reforçava o aterro e também sombreava as manhãs de sol. O sítio da vovó fazia divisão com o da mamãe apenas por um pequeno riacho.
O céu ostentava magnificamente um azul mais lindo do que nunca e uma temperatura agradável naquele final de dia.
Vovó disse: – Vamos fazer uma pescaria hoje?
– Vamos, sim. – Não pensei duas vezes.
– Então vai lá experimentar se as águas do lago estão mornas.
– Não é preciso, já dei um mergulho nele agora há pouco.
– Vai tirar essa roupa molhada enquanto vou atrás das iscas.
Saí correndo descalça pisando aqui, ali, sabe Deus onde e muito feliz. Adentrei faltando o fôlego à porta da cozinha. Mamãe preparava o jantar. Olhou meio assustada:
– O que foi, filha?
– Mamãe, a senhora não vai acreditar, vou pescar com a vovó,
– Que bom, fique calma, para uma pescaria a receita é tranquilidade.
– Acha que é fácil? Há tempo que sonho com isso!
Num segundo tirei as roupas substituindo-as por umas mais apropriadas.
Desci o morro observando já a posição do sol quase rente no horizonte, a filtração dos raios entre as árvores caindo nas águas borbulhando um amarelo forte. Virei a direção dos olhos para o aterro, lá estava a mulher mais linda do mundo! De anzol iscando, jogou a linha quase no meio do lago com uma arte espetacular! Confesso que senti no momento um pouco de inveja... Pensei em imitá-la com tanta maestria, mas logo passou. A ideia de pegar a minhoca, aquilo encolhendo e espichando sempre foi escabrosa e nunca bem aceita... A vó Joana, apontou para a cumbuca, senti um frio na barriga quando vi a metade das bichinhas fora, naquele encolhe, encolhe. O ímpeto foi de sair correndo, não, tinha de me mostrar valente, não deixando transparecer nenhum medo, meti a mão em uma minhoca grandota, atorei-a pelo meio enfiando-a goela abaixo do anzol e jogando nas águas, sentei-me no chão segurando a vara como gente adulta.
Reparei no rosto dela. Não havia nada que me comprometesse.
– Vejo na minha companheira muita segurança!
– O que me deixaria insegura?
– Nada, a minhoca é um bicho inofensivo.
– É, a senhora tem razão.
Ela notou o quanto me esforçava na hora da repetição e Deus também sabia.
A noite caía de mansinho aparecendo as primeiras estrelas. Os grilos cantavam alegremente e alguns sapos coaxaram bem perto de nós. O cesto da vovó cheio até à borda de traíras, o meu, apenas duas e até conformada, sem experiência nenhuma, estava bom demais.
Nisso passou pela minha cabeça... Se fosse mais cedo, deixaria a vara de espera, e iria à casa dela mexer no tear, quem sabe fiar um pouco na roda de fazer fio. Tudo aquilo era por demais tentador. Imaginei o tear na sala. Não tinha outro lugar para vovó tecer seus lençóis e as cobertas? Quantas vezes ela me pegou tocando a roda de frente para trás, desperdiçando o algodão dela.
– Por hoje chega, ela disse, amanhã você tem aula cedo.
– É mesmo.
– Faremos outra se você quiser, gostou?
– Claro! Bastante.
Vovó era descendente de índio, sua pele escura, cabelos lisos e pretos, magra, alta, muito bonita, mesmo a quantidade de anos não deformou a sua beleza.
O nosso relacionamento não ficava só nas pescarias, mas dos passeios às rezas e me ensinou a costurar, bordar e na cozinha a fazer coisas deliciosas.
A semana se aproximava, mamãe disse: - Iremos todos, vovó, as primas e alguns inquilinos.
O aluguel da casa na cidade, o meu padrasto já havia combinado e os peixes também eram tarefa de assim como pescar, limpar e colocar o sal e secar no sol. Mamãe fazia as broas de fubá, os biscoitos de polvilho e os doces. Os preparativos, correr atrás de costureira, era tudo às pressas. Chega o tal dia e ia pondo tudo dentro do carro de boi, super-carga, mas tudo se ajeitava, a gente ir a pé era muito sacrifício, mas já que fazia parte da devoção, tudo valia.
Paramos o carro em frente à casa. Deus do céu, não me lembro de ter visto uma tão feia antes. Meu padrasto disse: – Foi a única disponível.
Se por fora desanimamos imagine por dentro, nem se fale, a parede fazia um século que não era pintada, o chão todo esburacado. Mamãe fez sinal para que ficássemos quietos. Iniciamos a arrumação dando-nos por satisfeitos. E assim foi essa semana santa como as outras, as procissões, o cheiro de vela, os cabelos sapecados, tudo isso fazia parte da programação, a igreja cheia, a morte de Jesus, a ressurreição e no sábado a queima do Judas, o domingo de aleluia.
Na segunda-feira a chatice das aulas da professora Ilda. Mamãe nem sonhava que matávamos aula adoidado. A caminhada era seis quilômetros todos os dias. De vez em quando os primos, minhas irmãs, mesmo sendo nós as mais novas tínhamos de concordar em passar as horas de aula sem abrir a boca. A brincadeira era para valer jogar bola com as bobeiras, colher frutos silvestres, sangravamos a boca com os gravatás, a colheita era uma tarefa dificílima, as mãos e as pernas arranhadas, mas nem assim havia desistências.
As pescarias, as novenas e os passeios foram aumentando e fortalecendo a nossa amizade, quem não reparasse bem, tomava-nos por duas adolescentes. Vovó teve uma participação fundamental na transição da minha infância para a adolescência. Mamãe não explicava nada. A vovó era quase igual uma médica, fazia remédio para bronquite, parteira, benzia as crianças, curava tudo e todos.
As novenas longas. Caminhadas quando à noite enluarada, tudo beleza a heroína seguia em frente como soldado em combate. Nas rezas ela ia para cozinha fazer café e chá para depois da novena servir com os biscoitos, enquanto lá fora as moças e rapazes brincavam de roda, de passar anel e namoravam, tudo bem escondido.
Um certo dia mamãe e padrasto inventaram de ir visitar a irmã mais velha de mamãe no Sul... Admirados com o progresso, a terra fértil. Deixaram uma fazenda com proposta de compra... E dentro de pouco tempo venderam a fazenda no interior de Minas Gerais e partimos para o Sul.
Pensei que não ia aguentar a grande dor, uma tristeza inconsolável, deixar tudo no momento mais gostoso de minha vida. A manhã está clara e mais linda do que nunca para nossa despedida. O caminhão super-lotado de gente em cima de colchões, trouxas e roupas e as coisas de casa, meu padrasto trouxe junto os agregados da fazenda.
Virei para trás, um vulto na janela, meus olhos cheio de lágrimas tampavam a imagem da vozinha, tudo embaçado, imaginei ela na mesma situação minha.
Depois de alguns meses a tia Marieta nos escreveu contando, "a ida de vocês foi tão triste para mamãe, pois teve momento que achei que ia morrer de tanto se lamentar, ficava horas na janela olhando a casa fechada".
À última curva mais esforço, nada definido, tudo turvo. O desespero foi tão grande! O coração batia mais forte... Comecei a enumerar as perdas, eram muitas, deixando a vozinha amada, meus pássaros, minha terra onde vivi a infância e metade da adolescência, minha casa onde nasci e a goiabeira, pousada do meu pintassilgo, que mesmo depois que o vaqueiro deixou-o escapar da gaiola, ele retornava todos os dias para cantar e comer a canjiquinha de milho, junto com os pintinhos.
Um belo dia contei a história do meu pintassilgo à vovó que mesmo depois de sua liberdade, ainda éramos amigos.
– Como o Sezão soltou o pássaro? Que maldade!
– Não vovó, a senhora sabe o jeito que ele é estabanado.
– Você acha que é o mesmo pintassilgo?
– É sim, ele não tem um dedinho do pé esquerdo.
– Que coisa interessante! – disse rindo muito.
– Sabe que eu não quis prendê-lo de novo?
– É muito bom ouvir isso, pois ninguém pode mudar a direção correta das coisas.
No dia seguinte vovó chegou no lugar que havíamos combinado para ver a chegada do pássaro... Espalhamos a comida farta no terreiro, as chocas e seus pintinhos foram se aproximando junto com alguns pardais e os canários amarelos. Percebi que vovó atenta procurava o tal pássaro, tranquilamente continuava jogando a canjiquinha que restava na latinha, esperando uma interrogação. E lá vem ele então soberbo! Pousou no chão no meio da pintaiada, enfiou seu delicado bico a catar comida e saboreando com gosto as delícias.
– A senhora viu?
– Sim, querida, não que duvidasse mais voltar depois de solto.
A felicidade está nestas pequenas coisas, não é preciso ir longe para atingi-las. O semblante dela animadíssimo e sorridente como nos dias das pescarias.
As estradas, a maior parte de terra e vários dias penosos, uma viagem difícil, chegamos ao destino. Ficamos algumas semanas no sítio da titia até resolverem comprar o nosso.
As matas verdes, não dando por satisfeita em contemplá-la de longe, adentrava e permanecia longas horas observando as belezas naturais do Sul.
No meado do ano, as geadas vinham vigorosas, queimavam tudo, os cafezais, morriam até as raízes. Batia a tristeza, a cicatriz profunda das perdas que ali tinha tido, florescia novamente a saudade da infância, do meu mundo de sonhos agarrava a minha alma, voltava ao passado.
Naquele ano mesmo surgiram outras paixões, senti-me dominada por um amor louco, era a primeira vez que amava sem dúvida. Isso me fez mergulhar no mundo dos romances, ia fundo dedicando-me à leitura.
Quando se completou um ano de minha vinda, me casei e dessa união nasceram quatro filhos, dois casais, presentes de Deus, foi uma maravilha! Pois enquanto cuidava esquecia o fracasso que fora o casamento. Nunca podia imaginar que aquilo fosse acontecer, milhões de sonhos acalentados foram se distorcendo. Bati frente a frente com a dura realidade!... O romantismo não existe... Nunca existiu? As lindas histórias de amor só existiam nos livros.
Entregava-me inteiramente às crianças, ao serviço doméstico e agradecia a Deus por ser tão carregada de trabalhos. Quando as crianças dormiam e mais tarde quando iam para o colégio, começava a pensar, sempre procurando respostas que justificassem as atitudes desonestas e frias do esposo. Adormecia perdida, na maioria, no meio das reflexões.
E assim foram trinta e quatro anos e não trinta e quatro meses e nem trinta e quatro dias. "Sem direito a nada". E então, imenso desejo de esquecê-lo. Mas através do sofrimento e bastante luta consegui, numa manhã, pôr quatro mudas de roupas, um par de sapatos, alguns livros na maleta e a vontade de retomar ao sul de onde ausentei dez anos, na última tentativa de salvar meu casamento.
Muitas vezes cheguei a pensar que Deus havia me abandonado, mas não, todo sofrimento, as repressões tudo fez com eu fosse em busca da liberdade. Oito anos divorciada e disposição sem limites. E desejava renovar o destino para mim e para as pessoas que achavam tudo sem solução, só porque já passaram dos sessenta anos de idade. Infelizmente na minha geração ninguém tinha a ousadia de dizer, vamos lá, você pode, estudar não é um crime. Então, procurava realizar meus sonhos e ensinar o que havia aprendido durante esses anos de experiências, passando às pessoas que não tiveram oportunidades antes.
Lecionei como voluntária alfabetizando jovens e adultos, ninguém saberia medir a minha felicidade quando uma aluna de setenta anos escrevera as primeiras palavras, depois as frases e as lera corretamente. Acreditei, sempre acreditara no amor, na sua força misteriosa! Onde Ele está tudo é possível fazer. Ao completar sessenta anos de idade conclui o magistério e depois de várias tentativas (4 vezes), consegui passar no vestibular, cursei Pedagogia. O mais importante sempre fora a persistência, nunca desistia enquanto não alcançava o meu objetivo.
Encontrava-me dedicando a um mundo maravilhoso e cheio de esperança, participando da maturidade, das danças, me sentia feliz no meio de amigos verdadeiros e até encontrando um grande amor, quando pensava que ele só existia nos romances.
A convivência com os netos fora, sem dúvida, uma troca de experiências e fez com que acabasse voltando ao passado e revivendo a infância, a doce lembrança que fora a minha avó.
O céu ostentava magnificamente um azul mais lindo do que nunca e uma temperatura agradável naquele final de dia.
Vovó disse: – Vamos fazer uma pescaria hoje?
– Vamos, sim. – Não pensei duas vezes.
– Então vai lá experimentar se as águas do lago estão mornas.
– Não é preciso, já dei um mergulho nele agora há pouco.
– Vai tirar essa roupa molhada enquanto vou atrás das iscas.
Saí correndo descalça pisando aqui, ali, sabe Deus onde e muito feliz. Adentrei faltando o fôlego à porta da cozinha. Mamãe preparava o jantar. Olhou meio assustada:
– O que foi, filha?
– Mamãe, a senhora não vai acreditar, vou pescar com a vovó,
– Que bom, fique calma, para uma pescaria a receita é tranquilidade.
– Acha que é fácil? Há tempo que sonho com isso!
Num segundo tirei as roupas substituindo-as por umas mais apropriadas.
Desci o morro observando já a posição do sol quase rente no horizonte, a filtração dos raios entre as árvores caindo nas águas borbulhando um amarelo forte. Virei a direção dos olhos para o aterro, lá estava a mulher mais linda do mundo! De anzol iscando, jogou a linha quase no meio do lago com uma arte espetacular! Confesso que senti no momento um pouco de inveja... Pensei em imitá-la com tanta maestria, mas logo passou. A ideia de pegar a minhoca, aquilo encolhendo e espichando sempre foi escabrosa e nunca bem aceita... A vó Joana, apontou para a cumbuca, senti um frio na barriga quando vi a metade das bichinhas fora, naquele encolhe, encolhe. O ímpeto foi de sair correndo, não, tinha de me mostrar valente, não deixando transparecer nenhum medo, meti a mão em uma minhoca grandota, atorei-a pelo meio enfiando-a goela abaixo do anzol e jogando nas águas, sentei-me no chão segurando a vara como gente adulta.
Reparei no rosto dela. Não havia nada que me comprometesse.
– Vejo na minha companheira muita segurança!
– O que me deixaria insegura?
– Nada, a minhoca é um bicho inofensivo.
– É, a senhora tem razão.
Ela notou o quanto me esforçava na hora da repetição e Deus também sabia.
A noite caía de mansinho aparecendo as primeiras estrelas. Os grilos cantavam alegremente e alguns sapos coaxaram bem perto de nós. O cesto da vovó cheio até à borda de traíras, o meu, apenas duas e até conformada, sem experiência nenhuma, estava bom demais.
Nisso passou pela minha cabeça... Se fosse mais cedo, deixaria a vara de espera, e iria à casa dela mexer no tear, quem sabe fiar um pouco na roda de fazer fio. Tudo aquilo era por demais tentador. Imaginei o tear na sala. Não tinha outro lugar para vovó tecer seus lençóis e as cobertas? Quantas vezes ela me pegou tocando a roda de frente para trás, desperdiçando o algodão dela.
– Por hoje chega, ela disse, amanhã você tem aula cedo.
– É mesmo.
– Faremos outra se você quiser, gostou?
– Claro! Bastante.
Vovó era descendente de índio, sua pele escura, cabelos lisos e pretos, magra, alta, muito bonita, mesmo a quantidade de anos não deformou a sua beleza.
O nosso relacionamento não ficava só nas pescarias, mas dos passeios às rezas e me ensinou a costurar, bordar e na cozinha a fazer coisas deliciosas.
A semana se aproximava, mamãe disse: - Iremos todos, vovó, as primas e alguns inquilinos.
O aluguel da casa na cidade, o meu padrasto já havia combinado e os peixes também eram tarefa de assim como pescar, limpar e colocar o sal e secar no sol. Mamãe fazia as broas de fubá, os biscoitos de polvilho e os doces. Os preparativos, correr atrás de costureira, era tudo às pressas. Chega o tal dia e ia pondo tudo dentro do carro de boi, super-carga, mas tudo se ajeitava, a gente ir a pé era muito sacrifício, mas já que fazia parte da devoção, tudo valia.
Paramos o carro em frente à casa. Deus do céu, não me lembro de ter visto uma tão feia antes. Meu padrasto disse: – Foi a única disponível.
Se por fora desanimamos imagine por dentro, nem se fale, a parede fazia um século que não era pintada, o chão todo esburacado. Mamãe fez sinal para que ficássemos quietos. Iniciamos a arrumação dando-nos por satisfeitos. E assim foi essa semana santa como as outras, as procissões, o cheiro de vela, os cabelos sapecados, tudo isso fazia parte da programação, a igreja cheia, a morte de Jesus, a ressurreição e no sábado a queima do Judas, o domingo de aleluia.
Na segunda-feira a chatice das aulas da professora Ilda. Mamãe nem sonhava que matávamos aula adoidado. A caminhada era seis quilômetros todos os dias. De vez em quando os primos, minhas irmãs, mesmo sendo nós as mais novas tínhamos de concordar em passar as horas de aula sem abrir a boca. A brincadeira era para valer jogar bola com as bobeiras, colher frutos silvestres, sangravamos a boca com os gravatás, a colheita era uma tarefa dificílima, as mãos e as pernas arranhadas, mas nem assim havia desistências.
As pescarias, as novenas e os passeios foram aumentando e fortalecendo a nossa amizade, quem não reparasse bem, tomava-nos por duas adolescentes. Vovó teve uma participação fundamental na transição da minha infância para a adolescência. Mamãe não explicava nada. A vovó era quase igual uma médica, fazia remédio para bronquite, parteira, benzia as crianças, curava tudo e todos.
As novenas longas. Caminhadas quando à noite enluarada, tudo beleza a heroína seguia em frente como soldado em combate. Nas rezas ela ia para cozinha fazer café e chá para depois da novena servir com os biscoitos, enquanto lá fora as moças e rapazes brincavam de roda, de passar anel e namoravam, tudo bem escondido.
Um certo dia mamãe e padrasto inventaram de ir visitar a irmã mais velha de mamãe no Sul... Admirados com o progresso, a terra fértil. Deixaram uma fazenda com proposta de compra... E dentro de pouco tempo venderam a fazenda no interior de Minas Gerais e partimos para o Sul.
Pensei que não ia aguentar a grande dor, uma tristeza inconsolável, deixar tudo no momento mais gostoso de minha vida. A manhã está clara e mais linda do que nunca para nossa despedida. O caminhão super-lotado de gente em cima de colchões, trouxas e roupas e as coisas de casa, meu padrasto trouxe junto os agregados da fazenda.
Virei para trás, um vulto na janela, meus olhos cheio de lágrimas tampavam a imagem da vozinha, tudo embaçado, imaginei ela na mesma situação minha.
Depois de alguns meses a tia Marieta nos escreveu contando, "a ida de vocês foi tão triste para mamãe, pois teve momento que achei que ia morrer de tanto se lamentar, ficava horas na janela olhando a casa fechada".
À última curva mais esforço, nada definido, tudo turvo. O desespero foi tão grande! O coração batia mais forte... Comecei a enumerar as perdas, eram muitas, deixando a vozinha amada, meus pássaros, minha terra onde vivi a infância e metade da adolescência, minha casa onde nasci e a goiabeira, pousada do meu pintassilgo, que mesmo depois que o vaqueiro deixou-o escapar da gaiola, ele retornava todos os dias para cantar e comer a canjiquinha de milho, junto com os pintinhos.
Um belo dia contei a história do meu pintassilgo à vovó que mesmo depois de sua liberdade, ainda éramos amigos.
– Como o Sezão soltou o pássaro? Que maldade!
– Não vovó, a senhora sabe o jeito que ele é estabanado.
– Você acha que é o mesmo pintassilgo?
– É sim, ele não tem um dedinho do pé esquerdo.
– Que coisa interessante! – disse rindo muito.
– Sabe que eu não quis prendê-lo de novo?
– É muito bom ouvir isso, pois ninguém pode mudar a direção correta das coisas.
No dia seguinte vovó chegou no lugar que havíamos combinado para ver a chegada do pássaro... Espalhamos a comida farta no terreiro, as chocas e seus pintinhos foram se aproximando junto com alguns pardais e os canários amarelos. Percebi que vovó atenta procurava o tal pássaro, tranquilamente continuava jogando a canjiquinha que restava na latinha, esperando uma interrogação. E lá vem ele então soberbo! Pousou no chão no meio da pintaiada, enfiou seu delicado bico a catar comida e saboreando com gosto as delícias.
– A senhora viu?
– Sim, querida, não que duvidasse mais voltar depois de solto.
A felicidade está nestas pequenas coisas, não é preciso ir longe para atingi-las. O semblante dela animadíssimo e sorridente como nos dias das pescarias.
As estradas, a maior parte de terra e vários dias penosos, uma viagem difícil, chegamos ao destino. Ficamos algumas semanas no sítio da titia até resolverem comprar o nosso.
As matas verdes, não dando por satisfeita em contemplá-la de longe, adentrava e permanecia longas horas observando as belezas naturais do Sul.
No meado do ano, as geadas vinham vigorosas, queimavam tudo, os cafezais, morriam até as raízes. Batia a tristeza, a cicatriz profunda das perdas que ali tinha tido, florescia novamente a saudade da infância, do meu mundo de sonhos agarrava a minha alma, voltava ao passado.
Naquele ano mesmo surgiram outras paixões, senti-me dominada por um amor louco, era a primeira vez que amava sem dúvida. Isso me fez mergulhar no mundo dos romances, ia fundo dedicando-me à leitura.
Quando se completou um ano de minha vinda, me casei e dessa união nasceram quatro filhos, dois casais, presentes de Deus, foi uma maravilha! Pois enquanto cuidava esquecia o fracasso que fora o casamento. Nunca podia imaginar que aquilo fosse acontecer, milhões de sonhos acalentados foram se distorcendo. Bati frente a frente com a dura realidade!... O romantismo não existe... Nunca existiu? As lindas histórias de amor só existiam nos livros.
Entregava-me inteiramente às crianças, ao serviço doméstico e agradecia a Deus por ser tão carregada de trabalhos. Quando as crianças dormiam e mais tarde quando iam para o colégio, começava a pensar, sempre procurando respostas que justificassem as atitudes desonestas e frias do esposo. Adormecia perdida, na maioria, no meio das reflexões.
E assim foram trinta e quatro anos e não trinta e quatro meses e nem trinta e quatro dias. "Sem direito a nada". E então, imenso desejo de esquecê-lo. Mas através do sofrimento e bastante luta consegui, numa manhã, pôr quatro mudas de roupas, um par de sapatos, alguns livros na maleta e a vontade de retomar ao sul de onde ausentei dez anos, na última tentativa de salvar meu casamento.
Muitas vezes cheguei a pensar que Deus havia me abandonado, mas não, todo sofrimento, as repressões tudo fez com eu fosse em busca da liberdade. Oito anos divorciada e disposição sem limites. E desejava renovar o destino para mim e para as pessoas que achavam tudo sem solução, só porque já passaram dos sessenta anos de idade. Infelizmente na minha geração ninguém tinha a ousadia de dizer, vamos lá, você pode, estudar não é um crime. Então, procurava realizar meus sonhos e ensinar o que havia aprendido durante esses anos de experiências, passando às pessoas que não tiveram oportunidades antes.
Lecionei como voluntária alfabetizando jovens e adultos, ninguém saberia medir a minha felicidade quando uma aluna de setenta anos escrevera as primeiras palavras, depois as frases e as lera corretamente. Acreditei, sempre acreditara no amor, na sua força misteriosa! Onde Ele está tudo é possível fazer. Ao completar sessenta anos de idade conclui o magistério e depois de várias tentativas (4 vezes), consegui passar no vestibular, cursei Pedagogia. O mais importante sempre fora a persistência, nunca desistia enquanto não alcançava o meu objetivo.
Encontrava-me dedicando a um mundo maravilhoso e cheio de esperança, participando da maturidade, das danças, me sentia feliz no meio de amigos verdadeiros e até encontrando um grande amor, quando pensava que ele só existia nos romances.
A convivência com os netos fora, sem dúvida, uma troca de experiências e fez com que acabasse voltando ao passado e revivendo a infância, a doce lembrança que fora a minha avó.
Fonte:
Rubens Luiz Sartori (org.). Compêndio da Academia Mourãoense de Letras. Campo Mourão/PR: UNESPAR/FECILCAM, 2004.
Livro enviado por Sinclair Pozza Casemiro.
Rubens Luiz Sartori (org.). Compêndio da Academia Mourãoense de Letras. Campo Mourão/PR: UNESPAR/FECILCAM, 2004.
Livro enviado por Sinclair Pozza Casemiro.
Nenhum comentário:
Postar um comentário