Dentre os muitos endereços que tive em Belém ainda na fase áurea da solteirice, um deles muito me marcou pelas boas lembranças e grandes amizades que fiz, durante os anos de 1973 a 1975 em que lá morei. Falo da CEUP - Casa do Estudante Universitário do Pará, antigo feudo da tradicional família Lobato e desde 26.05.1957 quando foi fundada, acolhedor albergue de estudantes vindos do interior do Pará ou de outros estados, principalmente Amazonas, Maranhão, Piauí e Goiás, que não tinham família em Belém.
Quando lá ingressei, por especial convite do saudoso amigo e presidente à época José Gumercindo Rebelo (que tão precocemente nos deixou), a entrada principal do casarão de dois andares, de belíssima e clássica arquitetura, era pela Av. 16 de Novembro, tendo um enorme terreno vazio aos fundos, tão extenso que chegava até à Tv. São Francisco.
Nesse vasto espaço depois foi erguido um segundo prédio de três andares, depois dele uma quadra de esportes, ambos fazendo frente para a Tv. São Francisco, naquele tempo uma rua de terra esburacada, contendo no trecho que vai da Av. Almirante Tamandaré até a Rua Veiga Cabral muitas áreas sem qualquer edificação, cheias de mato, com solo alagadiço que submergiam no período chuvoso de Belém entre Fevereiro e Abril, hoje totalmente urbanizado, com mansões, edifícios residenciais de luxo e asfalto de primeira qualidade.
Éramos mais de setenta estudantes e para não dizer que inexistiam mulheres naquele grupo heterogêneo, eram elas representadas pelas bondosas Paula e Jacira, incumbidas dos serviços de limpeza, lavagem da roupa e do preparo dos alimentos, que elas davam conta com a prestimosa ajuda do Edir, responsável pela manutenção e eventuais reparos nas instalações da casa.
Além dos quartos onde moravam os estudantes, a CEUP dispunha de outros espaços comuns como a sala de estudos, a sala de TV e o refeitório, onde a cada dia era servido bem cedo o desjejum, um prosaico café com leite e pão careca, o suficiente para impedir que saíssemos com o estômago roncando rumo à UFPa, única instituição de ensino superior pública existente. Também no refeitório era servido o almoço, um composto de picadinho de carne bovina misturado com arroz quebradiço, encimado por um invariável ovo de galinha cozido colocado, que pela aparência ganhou da turma o mimoso apelido de “Ninho de Japiim”. Não havia jantar e o pessoal se defendia da broca nas lanchonetes próximas.
Para manter tudo funcionando, havia uma Diretoria muito atuante, tendo o Gumercindo como presidente e o Antônio “Padre” como seu vice e braço direito na gestão administrava, fazendo sabe Deus como render os escassos recursos oriundos de convênios firmados com instituições públicas, a principal delas a própria UFPa, renda essa complementada pela módica taxa mensal que era cobrada dos moradores. Quando a situação apertava, o que não era raro, promovíamos na quadra esportiva animadas festas dançantes com entrada paga, que faziam o regalo dos jovens do Bairro do Jurunas, que ali encontravam ambiente mais concessório capaz de burlar os rígidos padrões de conduta daqueles bons tempos, desde que, naturalmente, a coisa não descambasse para atitudes mais ousadas, principalmente quando corriam soltos e generosos a cerveja e o rum e afloravam indômitos os instintos reprimidos pela moral e os bons costumes, na busca ávida dos caminhos de Eros.
Quando de lá me retirei em 20 de Dezembro de 1975 diretamente para o altar da Igreja da Trindade onde casei, a entrada principal continuava sendo pela Av. 16 de Novembro, vizinha ao convento dos religiosos franciscanos, onde residia meu antigo e estimado professor Frei Prudêncio Kalinowski, incumbido da capelania do Presídio São José, na Praça Amazonas, transformado anos depois no Polo Joalheiro, um dos pontos mais visitados pelos turistas que demandam Belém. O portão da Tv. São Francisco era pouco utilizado, dadas as sofríveis condições da via, com parca iluminação noturna, porém utilizada por mim com frequência por dois motivos: meu quarto era no térreo do prédio novo, portanto, mais próximo de ser alcançado por lá, além do que, eu e Orlando Santos éramos os únicos universitários que tínhamos carro e eles ficavam estacionados à noite num terreno baldio e elevado situado em frente ao dito portão, para fugir aos alagamentos comuns no inverno.
Aquela casa regurgitava de vida, de esperança, de sonhos, com perspectivas de ascensão social e profissional daquela juventude na flor da idade, objetivos comuns que amenizavam as eventuais divergências surgidas no relacionamento diário entre seres de origem distintas, afeitos porém à sadia camaradagem nos momentos de lazer, principalmente nas ferrenhas disputas de futebol de salão com os times da vizinhança ou nos amistosos da tarde entre os próprios moradores, onde quase ninguém brigava.
Dali saíram para a vida personalidades que brilharam em suas atividades como médicos, engenheiros, advogados, executivos, políticos, professores, artistas, enfim, gente forjada na luta dura e honesta, porquanto ali nenhum havia nascido em berço de ouro. Sobre a bem-amada CEUP ter a fama de mal assombrada, como em outra oportunidade já tive oportunidade de escrever, me ocorreu contar aqui, 45 anos depois da minha saída de lá, um fato que realmente me deixou intrigado.
As noites das sextas-feiras eram para os estudantes uma espécie de libertação de tudo o que ficara contido durante a semana. Não tínhamos nem aula nem trabalho aos sábados e assim era possível avançar sem peias nas festas e confraternizações da cidade, como convidados ou furões, principalmente se a mesa fosse farta, quando podíamos tirar a barriga da miséria. O cardápio generoso e gratuito dos aniversários e bodas era a nossa suprema e gloriosa vingança contra o insípido “Ninho de Japiim”. Pois foi numa madrugada de sábado que tudo aconteceu, depois de um fantástico arrasta-pé na Cidade Velha, quando lá para as duas da madrugada decidi voltar, alma refeita dos prazeres mundanos que os vinte e cinco anos nos propicia.
Estacionei o Fusca no local de sempre e driblando as crateras da rua e a escuridão empurrei o portão e caminhei tranquilo para o interior do prédio, atravessando todo o espaço que correspondia à quadra de esportes, até chegar no pátio interno situado antes dos quartos, oportunidade em que avistei o casal refestelado no estropiado sofá que alguém colocou ali para dar ao local um aspecto de sala de visita, onde eram recebidos amigos e parentes dos moradores.
Em silêncio cheguei bem próximo deles e notei que estavam dormindo meio abraçados. Fiquei ali parado imaginando como eles tinham conseguido entrar, pois as regras de acesso eram rígidas a estranhos, justamente para preservar a segurança e evitar que aos cômodos tivessem acesso gente desconhecida ou de conduta duvidosa. Já passava um pouco das duas da madrugada quando de repente ele despertou, olhando-me com expressão de espanto. Procurando acalmá-lo, indaguei quem os autorizara a entrar e utilizar o sofá como cama. Respondeu-me o rapaz, um tipo magro, pele clara, barba por fazer, falando um portunhol que viabilizou em parte o entendimento. Mencionou a palavra “padre” e aí eu fiquei sem saber se a licença partira do Antônio “Padre” (nosso vice-presidente) ou se o seráfico Frei Prudêncio, vizinho de parede, resolvera de repente mandar gente estranha dormir na casa dos outros...
Com a conversa em voz alta, a moça acordou também. Bela e diáfana, cabelos alourados cor de violão velho, tinha aquele olhar lânguido de cabra morta e trajava uma saia de tecido indiano enrugado parecendo que havia saído do bico de um bule, aspecto em tudo comparável ao de “Jenny”, a namorada hippie de Forrest Gump, personagens do filme americano rodado em 1994, verdadeiro sucesso de bilheteria. Foi dela que partiu, também em portunhol, a informação de que “estavam viajando pela América”, o que me deixou ainda mais cabreiro, pois não vislumbrei nenhuma bagagem por perto, nem mesmo uma singela mochila, apetrecho inseparável dos andarilhos.
Desconfiado, pensei em chamar alguém da Diretoria, mas mudei de ideia e num gesto amistoso e humanitário, lhes ofereci o meu quarto, guarnecido apenas com a cama, uma pequena mesa de estudo e a mala com documentos e pertences pessoais, que eu mantinha no cadeado. Disse-lhes que o aposento, embora modesto, seria um pouco mais adequado para dormir do que aquele sofá roto e já com as molas de fora, mas eles recusaram, dizendo que iriam embora de manhã bem cedo. Mesmo entretido na conversa, notei que pelo portão da São Francisco entrou o Edir quase corendo, fugindo da chuva persistente que começara a cair; quando passou por nós, fez um gesto vago e disse algo como se indagando alguma coisa. Enveredou no rumo do prédio antigo, xingando o aguaceiro com todas as objurgatórias que deve ter aprendido nas suas andanças pelo Ver-O-Peso.
Continuamos a conversa. Ratifiquei a oferta do quarto e em face de nova recusa, pedi licença, fui lá dentro, peguei meia folha de papel almaço e escrevi o seguinte bilhete: “Jacira, entrega o meu café da manhã ao casal portador deste bilhete. Eles dormiram no sofá do prédio novo e devem estar com fome. Amanhã no almoço eu falo contigo. Muito obrigado”.
Voltei na mesma pisada e entreguei-lhes o papel, explicando do que se tratava e indicando o caminho para o refeitório. Sem qualquer emoção pela suposta nobreza do gesto, o jovem depois de cuidadosamente dobrá-lo o guardou no bolso, quando novamente o Edir passou por nós, dizendo em voz alta que esquecera de fechar o cadeado do portão. Ato contínuo sumiu na escuridão, regressando logo depois quando, dirigindo-se a mim, falou algo que dessa vez ouvi muito bem, ao mesmo tempo em que rodava o indicador em torno da têmpora, no clássico gesto que simboliza que alguém está ficando "gira": - Tu vai ficar falando só a noite inteira? E foi embora pela tétrica alameda de acesso ao sobrado.
Eu também já estava cansado e por isso resolvi encerrar aquele papo furado com aquela dupla. Dando boa noite ao moço, estendi a mão para apertar a dele e ao tocar a sua pele gelada e úmida igual sapinho do pote, senti os ossos estalando sem qualquer consistência e a custo consegui disfarçar a súbita repugnância que experimentei. Aproximando-me da sua companheira, dei-lhe um educado e universal beijo de despedida e levei novo susto. Foi encostar o meu rosto no dela e minha incipiente barba arrepiou todinha, dando-me a recorrente sensação que sentimos quando aproximamos o braço de um televisor recém-desligado e os pelos ficam eriçados pela energia estática dos elétrons ainda não completamente dissipados. Depois disso fui me deitar em busca do sono reparador, porém pensando com meus botões:
– Arre égua, essa mulher dá choque parece poraquê do Laguinho...
Dia seguinte, à hora do almoço, encontrei a Jacira na azáfama de sempre. Com seu jeito de índia caiapó, me fitou com seus olhos orientais quase sumidos no rosto largo e risonho, perguntando se já podia servir o meu almoço. Antes da resposta, resolvi matar a curiosidade:
– E o casal do bilhete, tomou hoje o café da manhã?
– Que casal?
– Um casal de gringos, para quem eu doei meu café com pão.
– Por aqui não apareceram... limitou-se a dizer, quase monossilábica.
Nisso entrou o Edir no refeitório, cumprimentou todo mundo e me olhando de esguelha, falou com jeito gozador:
– Agora tu deu pra falar sozinho?
– Como é que é? Ficou doido cara?
– Eu doido? Quando cheguei ontem de madrugada, passei por ti fugindo da chuva e te vi conversando animado com o sofá. Voltei depois pra fechar o portão e novamente tu falavas sozinho. Quando retornei de vez pra dormir tu tava ensaiando dar um beijo no vento e depois disso tudo o doido sou eu? E caiu na gargalhada...
Ficou claro para mim que, por alguma razão, só eu vira o romântico par com quem conversei. Perdendo por completo a fome retornei ao quarto, reconstituindo de memória os fatos, tentando entender todo aquele imbróglio protagonizado pelo estranho e misterioso casal. Parei em frente ao velho sofá e o que vi me convenceu que algo inusitado acontecera naquela chuvosa madrugada. No lugar onde sentara a moça, restava abandonado o mesmo bilhete que escrevi para a Jacira e que na minha frente foi dobrado com esmero e colocado no bolso da surrada calça jeans usada por aquela esquisita criatura.
Quando lá ingressei, por especial convite do saudoso amigo e presidente à época José Gumercindo Rebelo (que tão precocemente nos deixou), a entrada principal do casarão de dois andares, de belíssima e clássica arquitetura, era pela Av. 16 de Novembro, tendo um enorme terreno vazio aos fundos, tão extenso que chegava até à Tv. São Francisco.
Nesse vasto espaço depois foi erguido um segundo prédio de três andares, depois dele uma quadra de esportes, ambos fazendo frente para a Tv. São Francisco, naquele tempo uma rua de terra esburacada, contendo no trecho que vai da Av. Almirante Tamandaré até a Rua Veiga Cabral muitas áreas sem qualquer edificação, cheias de mato, com solo alagadiço que submergiam no período chuvoso de Belém entre Fevereiro e Abril, hoje totalmente urbanizado, com mansões, edifícios residenciais de luxo e asfalto de primeira qualidade.
Éramos mais de setenta estudantes e para não dizer que inexistiam mulheres naquele grupo heterogêneo, eram elas representadas pelas bondosas Paula e Jacira, incumbidas dos serviços de limpeza, lavagem da roupa e do preparo dos alimentos, que elas davam conta com a prestimosa ajuda do Edir, responsável pela manutenção e eventuais reparos nas instalações da casa.
Além dos quartos onde moravam os estudantes, a CEUP dispunha de outros espaços comuns como a sala de estudos, a sala de TV e o refeitório, onde a cada dia era servido bem cedo o desjejum, um prosaico café com leite e pão careca, o suficiente para impedir que saíssemos com o estômago roncando rumo à UFPa, única instituição de ensino superior pública existente. Também no refeitório era servido o almoço, um composto de picadinho de carne bovina misturado com arroz quebradiço, encimado por um invariável ovo de galinha cozido colocado, que pela aparência ganhou da turma o mimoso apelido de “Ninho de Japiim”. Não havia jantar e o pessoal se defendia da broca nas lanchonetes próximas.
Para manter tudo funcionando, havia uma Diretoria muito atuante, tendo o Gumercindo como presidente e o Antônio “Padre” como seu vice e braço direito na gestão administrava, fazendo sabe Deus como render os escassos recursos oriundos de convênios firmados com instituições públicas, a principal delas a própria UFPa, renda essa complementada pela módica taxa mensal que era cobrada dos moradores. Quando a situação apertava, o que não era raro, promovíamos na quadra esportiva animadas festas dançantes com entrada paga, que faziam o regalo dos jovens do Bairro do Jurunas, que ali encontravam ambiente mais concessório capaz de burlar os rígidos padrões de conduta daqueles bons tempos, desde que, naturalmente, a coisa não descambasse para atitudes mais ousadas, principalmente quando corriam soltos e generosos a cerveja e o rum e afloravam indômitos os instintos reprimidos pela moral e os bons costumes, na busca ávida dos caminhos de Eros.
Quando de lá me retirei em 20 de Dezembro de 1975 diretamente para o altar da Igreja da Trindade onde casei, a entrada principal continuava sendo pela Av. 16 de Novembro, vizinha ao convento dos religiosos franciscanos, onde residia meu antigo e estimado professor Frei Prudêncio Kalinowski, incumbido da capelania do Presídio São José, na Praça Amazonas, transformado anos depois no Polo Joalheiro, um dos pontos mais visitados pelos turistas que demandam Belém. O portão da Tv. São Francisco era pouco utilizado, dadas as sofríveis condições da via, com parca iluminação noturna, porém utilizada por mim com frequência por dois motivos: meu quarto era no térreo do prédio novo, portanto, mais próximo de ser alcançado por lá, além do que, eu e Orlando Santos éramos os únicos universitários que tínhamos carro e eles ficavam estacionados à noite num terreno baldio e elevado situado em frente ao dito portão, para fugir aos alagamentos comuns no inverno.
Aquela casa regurgitava de vida, de esperança, de sonhos, com perspectivas de ascensão social e profissional daquela juventude na flor da idade, objetivos comuns que amenizavam as eventuais divergências surgidas no relacionamento diário entre seres de origem distintas, afeitos porém à sadia camaradagem nos momentos de lazer, principalmente nas ferrenhas disputas de futebol de salão com os times da vizinhança ou nos amistosos da tarde entre os próprios moradores, onde quase ninguém brigava.
Dali saíram para a vida personalidades que brilharam em suas atividades como médicos, engenheiros, advogados, executivos, políticos, professores, artistas, enfim, gente forjada na luta dura e honesta, porquanto ali nenhum havia nascido em berço de ouro. Sobre a bem-amada CEUP ter a fama de mal assombrada, como em outra oportunidade já tive oportunidade de escrever, me ocorreu contar aqui, 45 anos depois da minha saída de lá, um fato que realmente me deixou intrigado.
As noites das sextas-feiras eram para os estudantes uma espécie de libertação de tudo o que ficara contido durante a semana. Não tínhamos nem aula nem trabalho aos sábados e assim era possível avançar sem peias nas festas e confraternizações da cidade, como convidados ou furões, principalmente se a mesa fosse farta, quando podíamos tirar a barriga da miséria. O cardápio generoso e gratuito dos aniversários e bodas era a nossa suprema e gloriosa vingança contra o insípido “Ninho de Japiim”. Pois foi numa madrugada de sábado que tudo aconteceu, depois de um fantástico arrasta-pé na Cidade Velha, quando lá para as duas da madrugada decidi voltar, alma refeita dos prazeres mundanos que os vinte e cinco anos nos propicia.
Estacionei o Fusca no local de sempre e driblando as crateras da rua e a escuridão empurrei o portão e caminhei tranquilo para o interior do prédio, atravessando todo o espaço que correspondia à quadra de esportes, até chegar no pátio interno situado antes dos quartos, oportunidade em que avistei o casal refestelado no estropiado sofá que alguém colocou ali para dar ao local um aspecto de sala de visita, onde eram recebidos amigos e parentes dos moradores.
Em silêncio cheguei bem próximo deles e notei que estavam dormindo meio abraçados. Fiquei ali parado imaginando como eles tinham conseguido entrar, pois as regras de acesso eram rígidas a estranhos, justamente para preservar a segurança e evitar que aos cômodos tivessem acesso gente desconhecida ou de conduta duvidosa. Já passava um pouco das duas da madrugada quando de repente ele despertou, olhando-me com expressão de espanto. Procurando acalmá-lo, indaguei quem os autorizara a entrar e utilizar o sofá como cama. Respondeu-me o rapaz, um tipo magro, pele clara, barba por fazer, falando um portunhol que viabilizou em parte o entendimento. Mencionou a palavra “padre” e aí eu fiquei sem saber se a licença partira do Antônio “Padre” (nosso vice-presidente) ou se o seráfico Frei Prudêncio, vizinho de parede, resolvera de repente mandar gente estranha dormir na casa dos outros...
Com a conversa em voz alta, a moça acordou também. Bela e diáfana, cabelos alourados cor de violão velho, tinha aquele olhar lânguido de cabra morta e trajava uma saia de tecido indiano enrugado parecendo que havia saído do bico de um bule, aspecto em tudo comparável ao de “Jenny”, a namorada hippie de Forrest Gump, personagens do filme americano rodado em 1994, verdadeiro sucesso de bilheteria. Foi dela que partiu, também em portunhol, a informação de que “estavam viajando pela América”, o que me deixou ainda mais cabreiro, pois não vislumbrei nenhuma bagagem por perto, nem mesmo uma singela mochila, apetrecho inseparável dos andarilhos.
Desconfiado, pensei em chamar alguém da Diretoria, mas mudei de ideia e num gesto amistoso e humanitário, lhes ofereci o meu quarto, guarnecido apenas com a cama, uma pequena mesa de estudo e a mala com documentos e pertences pessoais, que eu mantinha no cadeado. Disse-lhes que o aposento, embora modesto, seria um pouco mais adequado para dormir do que aquele sofá roto e já com as molas de fora, mas eles recusaram, dizendo que iriam embora de manhã bem cedo. Mesmo entretido na conversa, notei que pelo portão da São Francisco entrou o Edir quase corendo, fugindo da chuva persistente que começara a cair; quando passou por nós, fez um gesto vago e disse algo como se indagando alguma coisa. Enveredou no rumo do prédio antigo, xingando o aguaceiro com todas as objurgatórias que deve ter aprendido nas suas andanças pelo Ver-O-Peso.
Continuamos a conversa. Ratifiquei a oferta do quarto e em face de nova recusa, pedi licença, fui lá dentro, peguei meia folha de papel almaço e escrevi o seguinte bilhete: “Jacira, entrega o meu café da manhã ao casal portador deste bilhete. Eles dormiram no sofá do prédio novo e devem estar com fome. Amanhã no almoço eu falo contigo. Muito obrigado”.
Voltei na mesma pisada e entreguei-lhes o papel, explicando do que se tratava e indicando o caminho para o refeitório. Sem qualquer emoção pela suposta nobreza do gesto, o jovem depois de cuidadosamente dobrá-lo o guardou no bolso, quando novamente o Edir passou por nós, dizendo em voz alta que esquecera de fechar o cadeado do portão. Ato contínuo sumiu na escuridão, regressando logo depois quando, dirigindo-se a mim, falou algo que dessa vez ouvi muito bem, ao mesmo tempo em que rodava o indicador em torno da têmpora, no clássico gesto que simboliza que alguém está ficando "gira": - Tu vai ficar falando só a noite inteira? E foi embora pela tétrica alameda de acesso ao sobrado.
Eu também já estava cansado e por isso resolvi encerrar aquele papo furado com aquela dupla. Dando boa noite ao moço, estendi a mão para apertar a dele e ao tocar a sua pele gelada e úmida igual sapinho do pote, senti os ossos estalando sem qualquer consistência e a custo consegui disfarçar a súbita repugnância que experimentei. Aproximando-me da sua companheira, dei-lhe um educado e universal beijo de despedida e levei novo susto. Foi encostar o meu rosto no dela e minha incipiente barba arrepiou todinha, dando-me a recorrente sensação que sentimos quando aproximamos o braço de um televisor recém-desligado e os pelos ficam eriçados pela energia estática dos elétrons ainda não completamente dissipados. Depois disso fui me deitar em busca do sono reparador, porém pensando com meus botões:
– Arre égua, essa mulher dá choque parece poraquê do Laguinho...
Dia seguinte, à hora do almoço, encontrei a Jacira na azáfama de sempre. Com seu jeito de índia caiapó, me fitou com seus olhos orientais quase sumidos no rosto largo e risonho, perguntando se já podia servir o meu almoço. Antes da resposta, resolvi matar a curiosidade:
– E o casal do bilhete, tomou hoje o café da manhã?
– Que casal?
– Um casal de gringos, para quem eu doei meu café com pão.
– Por aqui não apareceram... limitou-se a dizer, quase monossilábica.
Nisso entrou o Edir no refeitório, cumprimentou todo mundo e me olhando de esguelha, falou com jeito gozador:
– Agora tu deu pra falar sozinho?
– Como é que é? Ficou doido cara?
– Eu doido? Quando cheguei ontem de madrugada, passei por ti fugindo da chuva e te vi conversando animado com o sofá. Voltei depois pra fechar o portão e novamente tu falavas sozinho. Quando retornei de vez pra dormir tu tava ensaiando dar um beijo no vento e depois disso tudo o doido sou eu? E caiu na gargalhada...
Ficou claro para mim que, por alguma razão, só eu vira o romântico par com quem conversei. Perdendo por completo a fome retornei ao quarto, reconstituindo de memória os fatos, tentando entender todo aquele imbróglio protagonizado pelo estranho e misterioso casal. Parei em frente ao velho sofá e o que vi me convenceu que algo inusitado acontecera naquela chuvosa madrugada. No lugar onde sentara a moça, restava abandonado o mesmo bilhete que escrevi para a Jacira e que na minha frente foi dobrado com esmero e colocado no bolso da surrada calça jeans usada por aquela esquisita criatura.
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