terça-feira, 6 de abril de 2021

Fernando Sabino (Como melhorar a memória)

Antes que eu me esqueça, compro o livro e trago-o para casa. Há muito tempo ando atrás dele: “Como Melhorar Sua Memória”, de um americano cujo nome no momento não me vem à memória.

Logo às primeiras páginas o autor se propõe a fazer com que eu tenha uma memória tão extraordinária como a do General Marshall. Quem foi mesmo o General Marshall? Além do plano que tomou seu nome, o que mais que ele fez? Diz o autor que o General Marshall, durante a guerra, concedeu uma entrevista coletiva a mais de sessenta correspondentes. Cada um fez a sua pergunta, o general ouviu atentamente, e depois respondeu uma por uma, pela ordem, e lembrando-se ainda do nome de cada jornalista e do respectivo jornal.

Não peço tanto. Meu problema com relação à memória é muito mais primário e toca às vezes as raias da oligofrenia: simplesmente não sou capaz de guardar o nome ou a cara das pessoas.

Uma fisionomia familiar, que não identifico, deixa-me logo naquele estado de inquietação que prenuncia a eclosão desastrosa de uma gafe. Então bato cordialmente às costas de um desafeto, ou forjo outro, virando a cara a um velho conhecido. Já cheguei, por equívoco, a despedir-me num bar estendendo a mão a um por um dos que compunham uma roda de gente inteiramente desconhecida — a minha mesa era outra, fato que me escapou ao voltar do toalete. Certa vez, noutro bar, eu era servido por um velho e conhecido garçom, com ares de desembargador aposentado. Foi o homem ir lá dentro mudar de paletó para sair, e retive-o quando voltava, convidando-o para tomar alguma coisa: para mim agora se tratava mesmo de um conhecido desembargador aposentado.

Não que minha falta de memória se circunscreva aos bares, onde se bebe para esquecer. Ainda há pouco tempo eu me referia aos vexames que o esquecimento me tem feito passar, nascido da mais diabólica distração. Em matéria de nomes e fisionomias, então, o General Marshall é, para mim, um dos grandes gênios da humanidade: não creio que em toda a minha vida tenha guardado corretamente sessenta nomes na cabeça. O pior é que me vem sempre a insopitável cretinice de designar alguém que conheço por um nome semelhante ao seu, ou mesmo completamente diferente, sem nenhuma procedência, aumentando a confusão. É fácil perceber por que o Esmaragdo para mim é Maraschino, o Vinícius é Demetrius e o Josué é Samuel. Mas por que diabo chamo o Paulo Mendes Campos de Nicodemus e o Pedro Gomes de Ramon?

Pois encontrei no tal livro um capítulo especialmente dedicado ao meu caso. Propõe um método prático e infalível de ligar para sempre uma fisionomia ao seu verdadeiro nome, evitando confusões futuras e as distorções que fazem surgir na minha mente uma floresta de apelidos. Consiste simplesmente no seguinte: primeiro destacamos no rosto da pessoa que não queremos esquecer um detalhe qualquer — o bigode, por exemplo; depois ligamos o indivíduo em questão ao lugar em que o encontramos — vamos dizer a Praça General Osório; finalmente, juntamos seu nome — digamos Carlos Penteado — aos dois dados anteriores, numa frase que ficará para sempre na memória, representando simbolicamente a pessoa da qual não queremos nos esquecer. Assim: o General Osório penteou o bigode do Carlos. Ou então: o penteado do Carlos Osório foi feito pelo general de bigode.

Fácil, como se vê. Diz o livro que então a presença da referida pessoa fará logo saltar-nos na mente a frase que compusemos, e nosso único trabalho será traduzir. Como medida de precaução, devemos sempre que possível anotá-la num caderninho, para não esquecer.

Outra coisa que o livro ensina, e que não me saiu mais da cabeça, é que não adianta quebrá-la, tentando arrancar dela aquilo que a gente esqueceu. Esta lição, pelo menos, imediatamente aprendi: deixei de fazer força para me lembrar do que quer que seja, e continuo vivendo como sempre, sem me lembrar de nada, mas pelo menos sem me aborrecer mais com isso. Ainda há pouco me veio à lembrança um sugestivo exemplo com que ilustrar o meu progresso em matéria de memória, e que serviria de brilhante fecho a esta crônica. Como veio, foi — pouco importa: fecho-a assim mesmo.

Fonte:
Fernando Sabino. Deixa o Alfredo falar. Publicado em 1976.

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