sexta-feira, 2 de abril de 2021

Leon Eliachar (A Experiência)

Eu era a cobaia. Quando subi na balança, depois de um regime apertadíssimo de dois anos e meio, estava pesando “menos 48 quilos”. Era a primeira vez que via um homem pesar “menos” — e esse homem era eu. Pra subir na balança eu precisava descer: colocaram no meu pé uma espécie de âncora que me puxava pra baixo. Pra sair, era só destarrachar a corrente que eu saltava. Foi o que fizeram, quando comecei a subir. Lá em baixo, os cinco cientistas esfregavam as mãos, cada vez menores. Uma sensação de alívio, à medida que me afastava deles. Não sentia o meu corpo e, pra ser franco, nem sei mesmo se ainda tinha corpo, pois não era possível pesar “menos” e ainda ter um corpo. Tentei me apalpar, mas não tinha forças pra mover os braços. Só a muito custo percebi que nem sequer tinha braços. Isso de não ter braços foi o que mais me preocupou — até eu descobrir que também não tinha pernas. Nem tronco. Nem pescoço, incrível, eu não tinha mais eu. Era um absurdo. Como é que eu estava pensando? Pelo menos devia ter cabeça —- mas como verificar, se não podia perguntar a ninguém e os cientistas ficaram lá em baixo, cada vez mais pequenininhos e cada vez menos cientistas? Tentei me lembrar do primeiro dia em que me apresentei como voluntário e para isso usei o sistema do “flashback”, muito usado pelo cinema americano. Tudo foi ficando fora de foco e quando começou a ficar nítido, o tecnicolor estava impecável — e eu sempre imaginei que só se pensava em preto no branco.

— Voluntário 1.335!

Era eu. Aquela voz gritando o meu número nunca mais me saiu da cabeça. E dizer que a cabeça era a única coisa que me restava. Acredito que sim, porque sem ela eu nunca poderia pensar tudo isso que vou pensar. Eu estava num desses laboratórios de pesquisas cósmicas e aceitei sentir as emoções de uma cobaia para um novo invento. Ouvi dizer que estavam tentando lançar no espaço um homem sem máquina e isso era um bom assunto para uma grande reportagem. E os outros 1.334 voluntários, que fim levaram?

— Está com medo?

Lembro-me que sorri quando desafiaram a minha vaidade. Achei que seria uma grande reportagem e pensei na cara incrédula dos diretores do jornal, quando eu chegasse à redação com uma série de artigos: “eu voltei do espaço”. E se eu não voltasse, como mandar a reportagem? Pensei num novo título: “eu não voltei do espaço”, primeira e última de uma série. Mas quem escreveria? Não pude nem terminar de raciocinar: um homem barbado me olhou dos pés à cabeça (bons tempos aqueles em que eu ainda tinha pés) e disse categórico:

— O senhor será submetido a um severíssimo tratamento de despersonalização material. Está disposto?

Não tive tempo pra decidir. Dois braços fortes me carregaram e me colocaram dentro de um cofre de vidro. Do lado de fora, dezenas de olhos faiscavam de curiosidade pra ver o que acontecia. O Dr. Krutschneider, ou Kafinotch, não me lembro bem, chegou a falar em desintegração do corpo humano como o primeiro passo para a nova conquista da ciência.

Nessa altura dos acontecimentos eu só pensava na reportagem, mesmo porque não havia outro remédio, pois do lado de fora eu tinha a impressão que ninguém ouvia nada.

— Ligue o comutador n.° 3!

— Pronto.

— Comutador n.° 4!

— Pronto.

— Comutador n.° 5.

Até aí eu ouvia tudo o que diziam, nitidamente.

Não sei se chegaram a ligar o comutador n.° 6 porque quando me tiraram do cofre me disseram que eu já estava lá há um mês. Pedi uma Coca-cola, a única coisa que me ocorreu pedir, e fiquei sabendo que ali era o único lugar do mundo onde não havia chegado a Coca-cola. Fantástico. Se eu contasse isso na reportagem, ninguém acreditaria. Me levaram para um salão todo branco e me submeteram a um processo de desidratação e, logo em seguida, de descalcificação, o que era muito perigoso, pois estavam fazendo de mim um sujeito descalcificado: qualquer errinho de revisão, seria fatal para a minha reputação.

— Tire a roupa.

Tirei.

— Tire o corpo.

— Como?

— Tire o corpo.

Vontade eu tinha de tirar o corpo fora, mas de que jeito? Dois enfermeiros se aproximaram com uma máquina de calcular. Na contagem dos meus glóbulos vermelhos e brancos houve um saldo de 0,00000000002 a favor dos vermelhos e, pra acertar as contas, foi preciso contratarem o maior contabilista do país pra tirar a diferença. Segundo a teoria do Dr. Germigold, que estava fazendo um estágio ali, pois ganhara uma bolsa de estudos, o meu desaparecimento seria feito consubstancialmente e quando lhe perguntei o que significava isso, ele limitou-se a me olhar com um ar de superioridade, como quem quer evitar de me chamar de ignorante.

— Ignorante!

Mas não evitou. Foi justamente aí que comecei a perder rapidamente o peso. Quando cheguei a “zero grama” era como se não existisse mais. Não tinha fome, não tinha sede e ainda que tivesse não tinha por onde engolir, pois a minha garganta havia sumido. Ainda assim, eles não ficavam satisfeitos: queriam que eu pesasse menos do que menos.

Um ano e meio depois eu não sentia mais o corpo, só sentia a cabeça. Pedi um comprimido e me disseram que isso de nada adiantaria pois o comprimido não tinha por onde circular. Me imaginei só cabeça, com manchetes nos jornais e fotografia do meu rosto: “foi visto em Belo Horizonte a cabeça voadora”. No princípio ninguém acreditaria, porque em Belo Horizonte acontece de tudo. Mas depois minha cabeça seria vista no Alasca, na Indochina, no Afeganistão, no Meyer e em Cabo Canaveral. Provavelmente eu seria fotografado pelo João Martins, só pra meter inveja nos discos voadores. Haveria enquetes a meu respeito: “você acredita na “cabeça voadora”?”

O IBOPE faria pesquisas e concluiria que 57% dos homens já haviam visto a “cabeça voadora”; 24% das mulheres também; 13% das crianças tinham pavor e 0,6% se negariam a responder. Possivelmente um vespertino americano ofereceria cem mil dólares pela minha cabeça — “viva ou morta”.

Parece que descobriram que eu estava pensando demais. Só pode ser isso, do contrário não lhes ocorreria nunca me submeterem também à prova de desmemorização. Afinal, se só me restava a cabeça que é que eles queriam que eu fizesse com ela? A última dúvida que tive foi se já haviam mandado o meu corpo ao espaço ou se pretendiam mandar a minha cabeça, depois de darem sumiço no meu corpo. Que pretendiam eles? Se fizessem desaparecer também a cabeça nada lhes restaria pra mandar ao espaço.

Assim não era vantagem: mandar nada ao espaço era muito simples, era o mesmo que não mandar pois não havia o que mandar. Quem estaria falhando: os cientistas, que já estavam perdendo a minha cabeça ou eu que já estava perdendo a cabeça dos cientistas? O certo é que se me fizeram ficar sem memória como é que não conseguiam me impedir de raciocinar? Outro coisa: e quem poderia garantir que eu estivesse raciocinando direito? Vou ser franco: este, aliás, foi o meu último raciocínio lógico, porque daí em diante não consigo me lembrar de mais nada. Absolutamente nada. 
 
Foi quando perdi a cabeça.

Fonte:
Histórias do Acontecerá -1. RJ: GRD.

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