segunda-feira, 26 de abril de 2021

Rachel de Queiroz (O Telefone)


FESTA COM FOGUETE, discurso e banda de música marcou a inauguração da Companhia Telefônica na cidade de Aroeiras. Se bem não fosse grande a rede e poucos os aparelhos instalados, mais ou menos uma dúzia. Os telefones oficiais eram o da delegacia, o da estação do trem, o da Câmara e o da casa do juiz; e, entre os particulares, havia dois especialmente importantes, que uniam pelo fio elétrico o casarão do major Francisco Leandro, chefe do partido marreta, com o sobrado do coronel Benvindo Assunção, chefe rabelista, ricaço, com loja grande no térreo, de onde lhe vinha a fortuna.

E, tanto numa casa como na outra, a presença do telefone, suscitando a possibilidade de uma comunicação impossível, criava uma tensão perigosa.

Imagine-se que já há umas duas gerações aquelas famílias não se falavam, a não ser em hora de briga. Em perto de cinquenta anos, o mais que um Assunção ouvia de um Leandro, eram frases assim: “Se prepare pra morrer, cabra!” ou: “Essa eleição foi roubada!” ou ainda: “Se é homem puxe a arma.”

Também nessas horas de arrebatamento, diziam outras coisas, dessas que os jornais chamam de “termos de baixo calão”.

Houve igualmente uma frase dita por um Leandro a um Assunção e que ficou célebre: na famosa briga do adro da matriz, quando Carlinho Leandro baleou de morte o moço Donato Assunção, a bela Sinhá Leandro, mulher de Carlinho, que saía da missa atrás do marido, ajoelhou-se ao pé do moribundo, disse: “Jesus seja contigo”, e depois lhe cerrou os olhos. Aí, Carlinho quis matar Sinhá no sufragante, achando que aquele “Jesus seja contigo” já era começo de adultério. Sinhá saiu correndo e gritando através da praça e se asilou em casa de um irmão; e desse caso nasceu uma briga subsidiária, que felizmente não rendeu muito. Pois Sinhá, que estava grávida, morreu de mau sucesso; e o irmão, pegou-o a febre amarela, numa viagem que fez ao Rio de Janeiro.

Um Assunção, para um Leandro, era assim uma ideia proibida, imagem proibida, palavra proibida. Nas melhores fases de tréguas, quando um Assunção ia pela calçada e avistava um Leandro, dobrava a primeira esquina ou, na falta de esquina, tomava ostensivamente a calçada oposta.

Ainda uns poucos meses atrás, passando pela rua do Carmo o coronel Benvindo, montado no seu melado campolina (de nome Dois de Ouro), e o filho de Chico Leandro chegando à calçada, o menos que pôde fazer foi cuspir no rastro dele. Frente a frente só se encontravam em hora de luta, e até na igreja tinham os seus bancos separados, um do lado do altar de são José, o outro no da Boa Morte.

Pois agora lá estava o telefone, como uma estrada franca, uma porta aberta entre as duas casas. Com o seu ar preto e sonso, pendurado na parede do corredor, bastava alguém rodar a manivela, dizer à telefonista o número inimigo, o dos Leandro era 15-22, o dos Assunção era 15-21 (pelo seguro, para não haver preferências, o vigário, presidente da Companhia Telefônica, tirou os números na sorte) — e logo, do lado proibido, alguém responderia!

Calcule só! Ali, junto ao retrato mortuário do finado Donato, debaixo do quadro do Coração de Jesus, se poderia escutar a voz de um Leandro. Era uma tentação do inferno.

E nessas coisas meditava o coronel Benvindo, balançando-se na sua rede branca, armada no alpendre do sobrado, que dava para o jardim. Aspirava o cheiro das rosas abertas depois da chuva e olhava de viés para o bicho falante, tão quieto na sua caixa envernizada. Ora, sim, senhor, ter o Chico Vinte ao alcance da voz! (O Chico Vinte assim se chamava por ser o vigésimo filho do finado Carlinho Leandro, havido da sua segunda esposa, que lhe dera quatorze filhos, depois dos seis da desditosa Sinhá.) Chico Vinte, sendo, embora, o caçula, herdara do pai a chefia, por ser o mais disposto, o mais amante da família, o mais dedicado à política, o que se deixara ficar pelas Aroeiras, criando gado e destilando cachaça na sua fazenda da Trapoeiraba. A velha casa da família, na praça da Matriz, com dezoito portas e janelas de frente, oito para a praça e dez no oitão, era o seu pouso na cidade.

Sim, essas coisas pensava o coronel Benvindo, enquanto fazia a sua sesta. Pensava nelas, quando de repente o telefone tocou, como se respondesse àqueles pensamentos. Tocou, repetiu, bem alto e impertinente.

O pessoal de casa acorreu todo para ver o que seria, mas ninguém se atreveu a pegar o fone. Falar no telefone era falar em nome da casa, prerrogativa do chefe da família. E assim o coronel, quando achou que a campainha já tocara o suficiente, levantou-se da rede e atendeu. O padre lhe ensinara o que dizer:

— Alon! — berrou, pois, o velho, na sua voz fanhosa.

Do outro lado, uma fala irreconhecível, num falsete disfarçado, gritou em resposta ao alon:

— É você, Benvindão?

Assombrado com a insolência, o coronel nem soube o que responder. E então o falsete deu um riso e soltou a injúria suprema:

— Benvindão, vim te convidar! Hoje tem missa por alma da Pomba Rola!

Pomba-Rola era o gordo esqueleto de família da estirpe dos Assunção. Não vê que são descendentes do antigo vigário colado de Sant’Ana das Dores; mas o padre velho, em vez de fazer igual aos outros do seu tempo, e escolher moça de família, como tantos que chegavam a trazer uma prima para casa, vestida de noiva, dando assim origem a uma família que podia não ser legal, mas era respeitável; o padre velho, não, foi arranjar amizade com uma rapariga de ponta de rua, por alcunha a Pomba-Rola, a quem montou casa e deu estado. Verdade que, depois de ama do vigário, mãe de sua prole numerosa, na qual se distinguiram dois doutores e um alferes herói do Paraguai, Pomba-Rola assumiu o seu nome legítimo de dona Dorotéia e se tornou matrona de respeito. Ademais, agora, já estava morta há quase um século. Contudo, quando alguém queria insultar um Assunção, era só falar em pomba, em rola, ou nas duas juntas. Também usavam arrulhar de longe, imitando a rolinha fogo-pagô.

Quanto sangue correu na rua, lá nas Aroeiras, por causa dessa ave inocente, saberá são Miguel Arcanjo, que toma nota dessas coisas, e mais ninguém.

E pois o coronel, ao ouvir aquela palavra, soltou o fone da mão como se tivesse um bicho dentro, e o fone ficou balançando no fio, tal uma cobra que acabasse de morder. Mas durou pouco o assombro do velho. Com aquela rapidez de ação que lhe dera a chefia do seu clã, meteu a mão na manivela e se pôs a berrar para a telefonista:

— Quem foi o moleque sem-vergonha que falou agora pra minha casa?

Maria Mimosa, filha da professora, que fizera estágio em Fortaleza aprendendo para telefonista, honrou o ensino que recebera e respondia apenas as fórmulas regulamentares:

— Faz favor? Número, faz favor?

O coronel, cego de raiva, berrou mais alto:

— Maria Mimosa, deixe de se fazer de boba! Sou eu que estou falando! Me diga já quem foi o malcriado que ligou pra cá!

Meio trêmula, mas ainda oficial, a voz da telefonista resistiu:

— Desculpe, coronel, mas o regulamento não permite revelar o nome do assinante que pediu ligação... Temos o segredo profissional...

— Maria Mimosa, se você não contar já esse segredo profissional, eu vou aí e rebento essa joça!

Maria Mimosa gaguejou um pouco e acabou confessando tremulamente:

— A chamada partiu de 15-22...

— Casa de quem, com todos os diabos?

Mais trêmula ainda, já em prantos, prevendo a gravidade da sua revelação, Maria Mimosa confessou:

— É a residência do major Francisco de Assis Leandro...

Devagarinho, com mão firme, o coronel depôs o fone no gancho. O entrevero com Maria Mimosa lhe dera tempo para recuperar a sua famosa calma dos momentos de ação. Majestosamente, desceu até a loja. Mandou espalhar uns recados. Aos poucos foram chegando os seus homens de confiança. Dois cabras que mandara vir há tempos do riacho do Sangue. Zé Vicente, seu caixeiro, Amarílio, cabra roxo-gajeru que tinha fama de perverso e a moda de reclamar contra pau de fogo, que não é arma de macho: com ele, só no aço frio. Depois veio do cercado, no Juremal, o cavalo Dois de Ouro. O coronel montou, acompanhado por dois cavaleiros: o dito Zé Vicente e seu Pedrinho Queiroz, o genro, marido de Juvenília, a filha mais velha, meio feiosa, mas que tocava piano e lia livro em francês.

Os demais seguiam a pé, cada um com o seu rifle na bandoleira; até Amarílio carregava o seu, não por gosto, dizia ele, mas pelo “regulamento”.

Alcançando a praça da Matriz, parou a expedição para tomar chegada. Já correra, na rua, a nova da saída do grupo encangaçado, e já se apinhavam curiosos em cada esquina. O delegado de polícia trancou os praças na cadeia (era partidário do coronel Benvindo) para “evitar arruaças”.

Chegando defronte à porta da casa das dezoito portas e janelas, o coronel sofreou o Dois de Ouro. Sem desmontar, bateu palmas. Ninguém atendeu. Mas escutou-se, no lado do oitão, o fechar brusco de uma janela. O coronel então chegou mais perto, e com o cabo do chicote martelou a porta e gritou:

— Ô de casa!

A medo entreabriu-se uma rótula e apareceu na frincha o olho enviesado de uma cunhã, perguntando quem era.

— Quero falar com o dono da casa!

A cunhã abriu mais um dedo de janela:

— Major Chiquinho foi no sítio, só vem de noite.

— Pois que me apareça outro homem! Não haverá outro homem nessa
casa?

Aí a porta da rua se escancarou nos dois batentes e surgiu a magra figura de Francisquinho, também chamado o Vinte-e-Um, porque, além de ser o filho único de Chico Vinte, era viciado em baralho, no jogo do vinte e um.

Dizia-se que Francisquinho era tísico. Magrelo, nos seus dezoito anos, a mãe o queria padre, mas o seminário o expulsara depois de umas histórias mal contadas. E, no abrir da porta, também Francisquinho foi gritando:

— Homem tem! Tá falando com ele! Mas homem é que não estou vendo! Só um baiacu velho em cima de um cavalo!

Com o que dizia, queria era distrair a atenção dos atacantes. Pois no que falava, puxou a mão que trazia às costas e na mão vinha uma garrucha com que atirou na direção do coronel quase à queima-roupa. Por fortuna do velho, no momento em que partia o tiro ele levantava a mão com o chicote; a carga de chumbo passou-lhe raspando entre a costela e o braço e foi pegar bem na arca do peito do infeliz Zé Vicente, que caiu de borco por cima do cavalo. Aí Amarílio se adiantou com a faca nua na mão. Embolou com o meninote e rolaram os dois pela calçada. O coronel apeou do melado e se meteu casa adentro, sem olhar para trás nem tirar o chapéu. Subia os três degraus do corredor quando se ouviu um alarido de mulher chorando, depois uma voz severa a comandar:

— Parem com essa prantina!

E dona Joaquininha, mulher de Chico Vinte, apareceu na porta da sala a perguntar, muito calma:

— Que é que o senhor quer na minha casa, coronel Benvindo?

O velho tirou o chapéu:

— Minha senhora, eu só quero punir um criminoso.

Dito isso, passou pela dona, entrou na sala, localizou o telefone e o indicou para os dois cabras que o seguiam na pisada:

— Arranquem esse bicho daí.

E quando os homens puxaram a faca para cortar os fios, o coronel recomendou:

— Não. Arranquem. Quero com tripa e tudo.

Os cabras fizeram força, a caixeta do telefone se largou dos pregos, junto com pedaços de reboco; e as entranhas da coisa falante ficaram indecentemente à mostra.

— Levem pra rua.

Puseram o telefone no chão da praça, no meio do capim-de-burro, todo eriçado de fios, como se fosse uma aranha-caranguejeira. E aí o coronel mandou acender fogo com os paus arrancados à cerca de um terreno baldio.

A chama subiu. “Em cima do bicho! Em cima do bicho!”, recomendava o coronel. E o telefone ardeu muito tempo, exalando um cheiro ruim de celuloide e borracha queimada. Por fim, só ficaram os pedaços de ferro e louça dos isoladores, entre as cinzas.

O coronel se manteve imóvel e calado, assistindo, enquanto os seus cabras, de armas na mão, guardavam o fogo. Ao acabar tudo, o velho correu os olhos pelo povo que espiava medroso e disse bem alto:

— Foi pra aprender a não soltar má-criação a homem.

Vinte-e-Um não morreu, embora a facada de Amarílio lhe houvesse ofendido os bofes. Morrinhou, morrinhou, acabou escapando, sempre magro e amarelo. Quem morreu foi o pai, Chico Vinte. Veio-lhe uma paixão tão grande, ao saber da desfeita, que lhe deu um ar. Entrevou-se e, com poucos meses, era finado.

E o Leandro defunto, o filho fraco do peito, a guerra entre as duas famílias se amainou. Benvindão ficou chefe absoluto e fez o prefeito e seis oitavos da Câmara, na primeira eleição. Agora, teve uma coisa: nunca mais, em casa de um Leandro ou de um Assunção, na cidade de Aroeiras, se viu um telefone.

Fonte:
Rachel de Queiroz. A casa do Morro Branco: crônicas. 
RJ: J. Olympio. Publicado em 1999.

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