domingo, 31 de janeiro de 2021

Varal de Trovas 473

 


Carlos Eduardo Novaes (Volta às aulas)


(Um retorno cada vez mais caro)


Juvenal Ouriço olhou o cartaz da porta: ”Escolinha A Toca da Raposa”. Entrou, sentou-se e alisando seus vastos bigodes ficou aguardando diminuir o movimento da secretaria. Quando a última mãe de aluno retirou-se, Juvenal levantou-se e dirigiu-se à secretária:

- Por obséquio, eu desejava fazer uma matrícula.

- Pois não - disse a moça, apanhando uma ficha de matrícula - como é o nome de seu filho?

- Não. Não é para o meu filho.

- Não? Pra quem é então? Seu sobrinho?

- Não senhora. É pra mim mesmo.

- O senhor? Mas aqui nós só temos maternal, jardim, alfabetização, essas coisas. É uma escolinha de primeiro grau.

- Eu sei - respondeu Juvenal muito sério - eu vim me matricular no jardim de infância.

Meio assustada a moça perguntou se Juvenal tinha o certificado de transferência de outra escola. Como Juvenal dissesse que sua última transferência em escola primária foi em 1948, a professora afirmou que seria preciso fazer um teste ”para saber em qual jardim colocá-lo”. Distraída, preenchendo  a ficha indagou: ”Tem mais de seis anos?”

- Seis anos o quê? - perguntou Juvenal. - De casado? De formado?

A professora apressou-se em dizer que a pergunta era mera formalidade porque ”de acordo com a lei, se o senhor tiver mais de seis anos de idade já poderá ser alfabetizado”.

Juvenal declarou que não estava interessado em ser alfabetizado. Ficou decidido então que iria para o terceiro grau do jardim de infância. A moça pediu-lhe os documentos: certificado de nascimento, atestado de vacina antivariólica, atestado audiométrico e três retratos três por quatro.

- Retrato recente? - perguntou Juvenal - ou de quando eu tinha cinco anos?

A professora informou o preço da anuidade, deu o modelo do uniforme e forneceu a relação do material escolar.

Juvenal leu com atenção a longa lista e observou:

- Esse material aqui é até pro dia do vestibular?

- Não, senhor.  É só para esse ano. O senhor vai querer ônibus?

- Não, obrigado - respondeu Juvenal - eu tenho carro.

Juvenal saiu e enquanto se dirigia ao banco para levantar um empréstimo que lhe permitisse fazer as compras que a escola pedia, pensou que se John Kennedy fosse vivo certamente  diria que ”o preço da educação é o eterno endividamento”.

Na papelaria, depois de brigar mais do que no dia em que foi atrás dos ingressos para o desfile das escolas de samba, Juvenal finalmente conseguiu comprar tudo. Na saída, porém, não aguentou com o peso do embrulho. Teve que chamar um carregador, desses que trabalham no Galeão, mas que no período que antecede a volta às aulas fazem bico na porta de papelarias. Já na casa de uniformes, Juvenal só teve dificuldades em arranjar uma calça curta e um avental  para seu tamanho. Ao seu lado, uma senhora pedia o uniforme da escola Gruta do Leão.

- A   senhora -  perguntou  o vendedor  -  quer completo?

- É sim - disse ela - completo, com camisa, calça, gravata, meias e os sapatos. Quanto é?

- Quatrocentos cruzeiros.

- Quatrocentos cruzeiros? - gritou ela, remexendo o dinheiro na bolsa.

- Então me dá só as meias.

- Tudo um absurdo - exclamou ela - o custo de vida está pela hora da morte.

- É verdade - completou Juvenal - e o custo das aulas está pela hora do recreio.

No primeiro dia de aula lá estava Juvenal Ouriço no fim da fila (era o mais alto da turma) entrando na sala de avental e merendeira. Assustou-se um pouco com o tamanho das mesas e cadeiras: a sala, como toda sala de jardim, mais parecia um quarto de bonecas. Seus coleguinhas foram se sentando e Juvenal permaneceu de pé à procura de um lugar.

– “Tia Lúcia”, disse, ”será que não tem uma cadeira um pouquinho  maior para mim?”

Tia Lúcia respondeu que na sala não havia privilégios e mandou Juvenal sentar-se junto com Fabinho, Beto e Mariana para a aula de pintura. Muito educado Juvenal puxou a cadeirinha, pediu licença e arrumou-se como pôde. Mal sentou-se Mariana correu e se agarrou na saia de tia Lúcia.

- Estou com medo, titia - disse - ele parece o Lobo Mau com aquelas pernas cabeludas e aqueles pés enormes.

- Não tenha medo - procurou acalmá-la tia Lúcia - ele é seu coleguinha.

Mariana, porém, não quis voltar e tia Lúcia foi obrigada a deslocar Rodrigo para a mesa de Juvenal que ficou formada  só por garotos:

- É melhor assim - ponderou Juvenal já inteiramente desinibido - assim a gente pode falar palavrão à vontade. Que é que nós vamos fazer?

- Agora é a aula de pintura - disse Fabinho.

- Ora Fabinho deixa essa aula pra lá - disse Juvenal puxando um baralho do bolso e embaralhando-o - vamos jogar alguma coisa. Que é que vocês sabem jogar?

- Burro em pé.

- Não. Burro em pé também é demais. Que tal um pôquer?

Depois veio a hora da rodinha científica. Tia Lúcia ficava no meio da sala contando histórias e os garotos se punham à vontade para ouvi-la.

- Tia Lúcia - pediu a palavra Juvenal - qual é a história que a senhora vai contar hoje?

- A da Branca de Neve.

- Não. Pelo amor de Deus, a da Branca de Neve não - gritou Fabinho, que é um garoto muito inteligente - já está muito manjada.

- É sim, está muito manjada - completou Juvenal solidário ao coleguinha. - Não dá pra contar uma historinha  da Cassandra Rios?

Tia Lúcia ficou ruborizada com a sugestão de Juvenal. Resolveu deixar a rodinha para mais tarde e iniciar a aula de música. Botou um disco na vitrolinha e enquanto procurava  outros, agachada de costas para a sala, sentiu alguém bater-lhe no ombro:

- Vamos dançar, tia Lúcia?

Era Juvenal.

Tia Lúcia já estava perdendo a paciência. Ralhou com Juvenal e disse que se ele continuasse se comportando mal iria falar com a orientadora pedagógica para chamar seus pais à escola. Juvenal abaixou a cabeça e prometeu se comportar  direitinho. E realmente não deu mais uma palavra.

Na hora da merenda, inclusive, enquanto os outros alunos tomavam seu café com leite, pão e manteiga, refrigerante, doce, biscoito, Juvenal recolheu-se a um canto e sem perturbar ninguém, traçou o maior galeto regado a uma cervejinha.

Juvenal passou o resto do dia tendo uma conduta exemplar.  Terminadas as aulas despediu-se dos coleguinhas e quando ia saindo, tia Lúcia interceptou-o:

– Você não pode sair sozinho.

- E por que não?

- Os alunos do jardim só podem sair com um responsável.

- Mas eu já sou responsável. Não preciso de outro.

- Claro que precisa. É do regulamento. Para evitar o rapto.

- E a senhora acha que alguém vai querer me apanhar no meio da rua?

- É evidente que vai - disse tia Lúcia observando seu uniforme, o avental e a merendeira - principalmente o Pinei.

Juvenal sentou-se emburrado no degrau da escada e indagou:

– E, agora, como é que eu saio?

Tia Lúcia sugeriu que ele chamasse a mãe.

– Minha mãe está muito velhinha.

Então chame a sua mulher.

– Minha mulher está trabalhando. A empregada serve?

Servia. Então, ligou para casa:

- Alô Maria? Aqui é o doutor Ouriço. Eu quero que você dê um pulinho aqui na escola para me buscar. Como? As crianças? Não interessa as crianças, isto é uma ordem, Maria: venha me buscar! - E bateu o telefone.

Aguardando a chegada da empregada junto com Juvenal,  tia Lúcia não conseguiu esconder sua curiosidade e perguntou:

–  O que o senhor está fazendo aqui na escola? O senhor já não sabe de tudo isso?

- Sei, mas meus filhos não sabem.

- E o senhor tem filhos?

- Tenho, cinco, pequenos.

- E por que não os coloca na escola?

- Porque eu teria que abrir falência.  Achei que seria melhor assim: ao invés de mandá-los, eu venho e à noite quando chego em casa conto pra eles tudo o que aprendi.

- E dá resultado?

- Pode não dar. Mas sai muito mais barato.

Fonte:
Carlos Eduardo Novaes. Juvenal Ouriço Repórter. RJ: Nórdica, 1977.

Nilcéia Albuquerque França (Versos Diversos)

DIVERSAS


A Trova é meu grande afã,
e dela não abro mão!
Faz-me fada e até vilã,
muda até o coração!
= = = = = = = = = = =

O dia a dia vai indo,
como a chuva na torrente.
e o Rei Sol já vai sumindo,
surgindo a Lua fulgente!
= = = = = = = = = = =

Naquela tarde risonha,
te conheci, meu amor!
Creio que, comigo, sonhas.
inda sentes meu frescor!
= = = = = = = = = = =

Ser humano é ser mutável.
Um dia é fruto; outro, grão;
Às vezes, admirável;
Outras, só complicação!
= = = = = = = = = = =  

Um menino, mui sapeca,
tentava a raia empinar,
bebendo, numa caneca,
pôs-se o leite a derramar!
* * * * * * * * * * * * * * * *  

BUSCA

Rumávamos a não sei onde,
Dentro de uma roda viva
Hoje estamos em busca
De algo qu’inda não sabemos!

Refletir, refletir, refletir...
Tentando apanhar um sentido,
Aqui, lá e acolá,
De algo qu’inda não sabemos!?

E buscando, chegamos a Deus, o Infinito
E a descoberta, incerta,
De algo qu’inda não sabemos!?

Aspiramos à serenidade,
À sabedoria, ao Amor
De algo qu’inda não sabemos!
* * * * * * * * * * * * * * * *  
 
 ESPERANÇA

Menina bonita,
alegre e faceira
na rua, saltita,
tu és companheira!

A Terra ilumina
Com sua inocência,
És forte, menina,
Iluminescência!

E nesta vida incerta,
alento nasce pra nós,
o futuro é iminente.

A humanidade desperta,
E escuta a tua voz,
Sendo mais diligente!
* * * * * * * * * * * * * * * *  

O CAVALO

Dentre toda a natureza,
O cavalo é o mais legal;
Grandes olhos, macieza,
servidor sempre leal!

Cargas sempre a carregar,
Olhos grandes, mas tranquilos;
A andar ou a trotear,
Alivia o teu destino!

Seja adulto ou criança,
todos querem cavalgar;
todos tem a esperança,
de, um dia, a vir montar!
* * * * * * * * * * * * * * * *  

O MALABARISTA

Um dia, um malabarista,
Tentava se equilibrar,
pois estava numa pista ...
que se iniciava a inclinar!?!

Na mesa ele se apoiava
Mas, em vão mão se continha.
De escorregar não parava,
Que até levou a vizinha!
* * * * * * * * * * * * * * * *  

O POETA

O Poeta brinca e sonha;
vive só a perscrutar;
ser humano a amar,
Deixa a vida bem risonha!

Poeta muda o bisonho,
pois ele o quer transformar;
e a Beleza desnudar,
e a isto não me oponho!

O Poeta é uma essência,
desvendando mil mistérios,
falando de humanidade!

Revelando as consciências,
eis que surge revertério,
eis a universalidade!

Fonte:
João Israel da Silva Azevedo (org.). Superação: poemas, poesias e crônicas. Esperantinópolis, MA: Clube de Autores, 2020. (e-book)

Nilto Maciel (Anedota Medieval)


As núpcias do arquiduque Filipe e da duquesa Isabel ensejaram dias e dias de festa no castelo. Instituiu-se até uma nova ordem – a do Velocino Dourado. Afinal, o senhor tornava-se mais poderoso. A moça trouxera algumas cidades como dote.

Passada a lua-de-mel, Dom Filipe anunciou a primeira separação. Devia participar de uma cruzada. Nas longínquas terras dos infiéis.

Perdida no imenso castelo, cercada de condes, duques, marqueses, viscondes, barões – Isabel estaria por demais exposta ao pecado. E, na ausência de Filipe, quem a velaria? Quem a defenderia? Quem a vigiaria? Ora, um guarda. Sim, um bom e robusto vigia. Um eunuco.

E Platão se instalou no castelo, para defender, velar e vigiar a duquesa.

Longe do marido, Isabel sofria. Para onde ia, também ia o eunuco.

A beleza da senhora aturdia Platão. Dias e noites a mirá-la. No entanto, ela mal olhava para ele. Além de plebeu, eunuco. A solidão, porém, aproximou um do outro. Conversavam e até riam. Ela fazia perguntas, ele contava episódios de sua vida. Não gostava do próprio nome. Muito menos de filosofia. Se pudesse, se chamava Plutão. Adorava mitologia.

Cada vez mais aturdido, o eunuco não continha palavras para satisfazer a curiosidade de Isabel. Servira no serralho do palácio do sultão Abu Talib, em Constantinopla. Guardava as esposas e concubinas do grão-senhor. Beldades fascinantes. Nenhuma, porém, mais formosa que ela, Isabel.

E descrevia cada centímetro do harém.

De Dom Filipe nem notícias. As batalhas se sucediam nas terras dos mouros e os mensageiros falavam apenas de morte e destruição.

Insensível às dores do mundo, Platão só vivia para adorar Isabel. E morria de paixão. Amor impossível. Verdadeiramente platônico. Ora, ela casada e nobre, e ele um pobre eunuco. Não, jamais poderia possuí-la.

Cada vez mais triste, Platão descuidava-se de vigiar Isabel. Refugiava-se em seu quarto. Chorava, imaginava fugir, esquecer aquele amor absurdo. Matar-se, talvez.

Desesperado, decidiu revelar seus sentimentos à duquesa. Qual, porém, não foi sua surpresa! Ela também o amava.

Longe, muito longe do castelo, os cruzados do arquiduque enfrentavam as cimitarras sarracenas. E matavam e morriam com fé, mas sem amor.

Apaixonados, Platão e Isabel ora riam, ora choravam. Riam porque amavam. Choravam ante a deformidade dele.

Noites e noites se passaram. E mais o amor dos dois se exacerbou. Porém, como consumá-lo?

Platão se rendeu de novo à tristeza. Passava horas e horas trancado em seu quarto, longe de Isabel. Um desgraçado! Melhor morrer.

Teve então um sonho. O Dr. Hipócrates, após complicada cirurgia, tornava-o um homem como outro qualquer.

Embora médico competente, o tal Hipócrates tinha suas fraquezas humanas. Assim, só aceitava um tipo de pagamento pelo seu trabalho: Platão se encarregaria da morte imediata de Filipe. Se a cruzada durasse muito tempo, o eunuco partiria para o oriente. E ele, Hipócrates, desposaria a viúva.

Ora, o cirurgião guardava o segredo de sua técnica. Nenhum outro médico no mundo conseguira ainda realizar, com êxito, aquele tipo de implante.

Platão não aceitou de pronto a proposta. Teria de cometer um homicídio. Além disso, D. Filipe era um nobre. A vingança viria sem detença e cruel. Talvez mesmo antes do crime. Pois guerreiro, cruzado, emérito espadachim.

No entanto, para que viver, se não passava de um eunuco? Melhor selar o acordo com Hipócrates.

E partiu para as terras mouriscas.

Ao regressar, já a notícia da morte de Filipe parecia uma antiguidade. E os guardas não o deixaram transpor o portão. O arquiduque Hipócrates não gostava de cruzadas e nunca se ausentava do castelo. Isabel não carecia de eunucos.

D. Filipe, no entanto, deixara um testamento. O arquiducado passaria às mãos de quem contraísse novas núpcias com a duquesa e mantivesse Platão como “eunuco de Isabel, por toda sua vida”.

Embora caviloso, o médico acatava leis e cumpria contratos. E aceitou conversar com seu comparsa. Se o testamento garantisse a este o direito de vigiar Isabel, só restava a ele, Hipócrates, partir em defesa do cristianismo ameaçado.

E leu e releu as últimas vontades do falecido Filipe XX, o Aspado. Não havia dúvida: Platão não poderia mais exercer vigilância sobre a duquesa. Ora, deixara de ser eunuco.

Assim, porém, não pensava Platão. O testamento dizia claramente que ele seria eunuco (guardião) de Isabel “por toda sua vida”.

Por toda a vida de quem? De Platão ou de Isabel?

No calor da discussão, os dois acabaram sem razão. Enfureceram-se. De ofensas verbais passaram a agressões físicas.

Finda a luta, os corpos jaziam em poças de sangue.

Fonte:
Nilto Maciel. Itinerário: contos. Fortaleza, CE: Ed. do Autor, 1974.
Livro enviado pelo autor.

Estante de Livros (“Cinco Minutos”, de José de Alencar)


Cinco Minutos, assim como 'A Viuvinha', foram escritos no início da carreira do autor. Assim como os outros romances caracterizados pelo romantismo ingênuo de Alencar, esses dois não fogem à regra, são feitos aos moldes de folhetim, curtos, quase infantis. Têm como pano de fundo o Rio de Janeiro. Cinco Minutos faz parte da fase urbana do escritor.

Conta a história do casamento do autor com Carlota. No entanto, para o leitor, parece que está escutando uma história que não é para ele, já que Alencar dirige seu texto a uma prima. O leitor aqui é uma terceira pessoa, um 'voyeur' que fica entre José de Alencar e sua prima.

Ao mesmo tempo em que tenta levar o leitor a pensar que tudo é imaginário e faz parte das fantasias do autor, José de Alencar faz questão de narrar fatos verídicos da época, acontecimentos reais que marcaram o Rio de Janeiro no início do século. É tão minucioso nesse aspecto que até narra datas e horários etc.

Atualmente as histórias do autor romântico passam como que quase infantis e ingênuas para o leitor moderno. São narrações em que o amor sempre vence, decisões passionais de amantes, amor e amor e amor. À época, os folhetins eram lidos pelas senhoras burgueses. Exagerando-se um pouco na dose, poderíamos dizer que Alencar lembra remotamente, os livrinhos que embalam os sonhos de moças solteiras, no entanto não se pode deixar de dizer que sua escrita, linguagem, e modo estilístico são de extrema qualidade. Foi Alencar quem se dissociou do modelo português da escrita para definitivamente inaugurar o texto nosso, brasileiro.

Os livros Cinco Minutos e A Viuvinha falam sobre a vida burguesa. Suas personagens são personagens que, no fundo, representam o ideal acabado da vida burguesa, tropicalmente reproduzida na Corte brasileira. Em Cinco Minutos, o narrador-personagem está disponível, da primeira à última página, para satisfazer a todos os caprichos de sua imaginação. Sem compromisso profissional algum, o aspecto financeiro de suas peregrinações atrás de Carlota não chegam jamais a preocupá-lo.

Personagens

Protagonista
: Personagem redonda, também narrador, pois conta a história em 1ª pessoa, não é citado seu nome. A história gira em torno do amor que ele sente por Carlota e a sede que sente em revê-la e estar ao seu lado.

Carlota: Personagem redonda, antagonista no começo, porque ela mesma impede o personagem principal de encontra-la, pois pensa ter uma doença incurável e não quer faze-lo sofrer, mas logo se rende ao amor dele.

Personagens secundárias e planas
: A prima a quem a carta que contém a história é endereçada, a mãe de Carlota, o velho da canoa.

Enredo


Situação inicial:
O protagonista é um homem fútil que não sabe o que é paixão, e vive uma vida rotineira e melancólica. Carlota, menina adoentada de 16 anos, o ama anonimamente, seguindo-o em festas e nas ruas.

Motivo desequilibrador:
A história muda a partir do momento em que ele se atrasa cinco minutos e perde seu ônibus. Ao ter que tomar outro ônibus acaba encontrando Carlota, que não conhece fisicamente ou socialmente, mas que se torna uma obsessão em sua mente.

Clímax:
O momento culminante é quando ela revela sua identidade, sua doença e seu amor por ele, mas logo em seguida o abandona, deixando-o com a escolha de ir a se encontro e presenciar seus últimos dias ou esquece-la e não ver seu sofrimento.

Desfecho final:
A volta do equilíbrio acontece quando ela se cura de sua doença e eles voltam casados da viagem e se estabelecem em “uma linda casa, toda alva e louçã”, que fica fora da cidade e “vivem felizes para sempre”.
 
Espaço
A cidade do Rio de Janeiro, a cidade de Petrópolis, Minas Gerais onde eles se estabelecem no fim, além de vários países da Europa.

Ambiente
Calmo no começo e no fim. Doentio quando ele procura saber a identidade de sua amada e quando ele tenta chegar rápido ao Rio de Janeiro.

Tempo cronológico
A história que é narrada se passa no ano de 1857.

Tempo psicológico
O livro é todo em flashback, pois o narrador conta a história que se passou dois anos atrás. Ele infere no meio da narração suas reflexões sobre a vida, os costumes, suas vaidades e seus conhecimentos sobre as mulheres.

Foco narrativo
O discurso é direto, o narrador em 1ª pessoa dá aos leitores uma visão parcial daquilo que está sendo narrado, a visão dele. Ele conta a história do centro, pois ele é o personagem principal, fazendo uso de vários canais para se comunicar com o leitor, palavras, reflexões, sentimentos, ações, etc…

O livro é na verdade uma carta endereçada a uma prima, citada algumas vezes e usada na tentativa do narrador interagir com o leitor.

Fontes:
Algo Sobre
Cola da Web

sábado, 30 de janeiro de 2021

Eduardo Affonso (Nada Além)


Quando eu morrer, assim que chegar do lado de lá e confirmar que não há lado de lá, faço questão de baixar em algum centro só para dar a má notícia.

– Se houver algum espírito entre nós, que se manifeste.

– Não tem espírito nenhum porque espírito não existe. Vim só para dizer que não tem nada do lado de cá. O Além é uma ilusão.

– Se não tem nada desse lado daí, onde é que tu estás?

– Em lugar nenhum. Ateus são como a Buzina do Chacrinha: acabam quando terminam. Morreu, zefini. E não precisa me tratar na segunda pessoa porque sei que este centro é em Magé, não em Bagé.

– Mas se tu, quer dizer, se você acabou e não está em lugar nenhum como é que estamos conversando neste momento. Não faz sentido…

– Exatamente. Sabe qual a diferença entre o unicórnio de 4 chifres e o de 7 chifres?

– Um tem 3 chifres a mais.

– Não, não tem diferença nenhuma. Nenhum dos dois existe. Você estar falando agora com um espírito ateu inexistente é a mesma coisa de estar falando com um espírito de luz, que também não existe. É tudo uma projeção do seu inconsciente, tudo sua imaginação.

– Você está insinuando que isto aqui é uma armação?

– Uma armação, eu não digo. Um delírio, com certeza. Mas acredito que seja uma forma de consolar as pessoas, e nada mais consolador que a fantasia. Então, tá de boa.

– Mas não tem mesmo nada aí?

– Nadica.

– “Nosso lar” então era…

– … licença poética. Onde já se viu passarela para espírito, que não tem corpo, ter guarda-corpo? Tinha que ter guarda-espírito…

– É que os espíritos…

– Nem vem. Espírito é espírito, corpo é corpo. Uma coisa é o relógio, outra é a corda do relógio.

– Você não está comparando a alma humana com a corda do relógio, está? A corda é uma coisa mecânica…

– … e a alma é uma coisa química. Ou quer que eu acredite que, quando um relógio para, a corda do relógio vai para a “Nossa relojoaria”, onde continua tendo a forma de despertador, cuco, carrilhão, Casio, Rolex? E que depois um reloginho desses de ponteiro, se nunca tiver se atrasado na vida, pode reencarnar – quer dizer, reenrelojar – num relógio digital ou mesmo num celular…. me poupe.

– Mas é que a alma, o espírito, o perispírito, a psique, princípio vital…

– Mano, eu só vim para avisar que vocês vão se decepcionar quando chegarem aqui e não for nada do que imaginam. Porque aqui não existe. É só um imenso Nada, um Nada absoluto. Até eu, que sabia que ia encontrar o Nada fiquei abismado com um o tamanho do Nada que encontrei. Vazião mesmo.

– Ok, o papo tá ótimo, mas tem outros ectoplasmas na fila de espera para se manifestar e o pessoal aqui do centro tá ficando meio indócil com essa nossa conversa. Ide em paz, espírito ateu!

– Valeu, irmão! E obrigado pela segunda do plural. Pena que não exista nenhum centro espírita ateu. Ia ser divertido baixar lá com Freud, Einstein, da Vinci, Hawking, Sagan, Sartre, Niemeyer – que também chegaram aqui, não encontraram nada e vão passar o resto da eternidade sem uma corrente pra arrastar, uma cartinha para ditar, uma gira para animar, uma casa mal assombrada pra assombrar. Pensando bem, inexistir tem suas vantagens. A gente descansa. Fui!

– Já vai tarde. (Suspira fundo) Desculpem, irmãos. Tivemos uma interferência aqui na conexão com o Além, que já foi restabelecida. Tem alguém aqui cujo nome começa com a letra M? O espírito de um ente querido tem uma mensagem de paz para você…

Fonte:
Blog do Eduardo Affonso

A. A. de Assis (Era um tempo e tanto) Parte 3, final

47.
Menino de sete
versus menino de oitenta.
Jogo de botão.

48.
Olhar de criança.
Tendo à frente dois sabugos,
dois boizinhos vê.

49.
A primeira volta
na primeira bicicleta.
Esquecer quem há-de?

50.
A prece das seis.
Cantavam em coro as aves
as Ave-Marias.

51.
Um quintal eu tinha
que tinha abacate e pinha.
Tinha passarinhos.

52.
Tuka, Puã, Xuê.
Difícil mesmo era achar
um sem apelido.

53.
Ventinho legal.
Vamos pra beira do rio
soltar papagaio.

54.
Tinha a escrivaninha,
tinha uma pena e o tinteiro.
Tinha um escritor.

55.
Ah, os velhos mestres.
Cabelos bancos, ou sem-los,
que bonitos são.

56.
Gira o mundo, gira.
Desde a primeira girada,
quanto sonho em mira.

57.
O sonho dos sonhos.
O baile das debutantes
num salão dourado.

58.
Que bom que deixaram
seus sorrisos para os netos.
Álbum de família.

59.
Noite de retreta.
A bandinha no coreto
e os casais sonhando.

60.
Festa no vagão.
Hora de abrir o farnel
para o frango assado.

61.
Foi progresso ou não?
Meu vô trocou a espingarda
por um violão.

62.
Quatro e quatro... oito,
café com leite e biscoito.
Lembra a tabuada?

63.
Aula de latim.
Ego mei mihi me me,
sui sibi se se.*

64.
Teste de audição.
Canta ao longe um pintassilgo
e eu escuto, oba.

65.
Cada mês que passa
vai passando a ser passado.
Um a um, que pena...

66.
Quantas vezes, ah,
eu vi o pião rodar.
E os anos também.

67.
Quais os rios, nós.
Há pedras, mas também flores,
da nascente à foz.

68.
A esperança é infinda.
Os galos cantam ainda
nos quintais vizinhos.

69.
Caminhar, cantar.
Ó ciranda, ó cirandinha,
vamos ser e andar.

70.
Grave em ouro e bronze:
haverá futuro, e bom.
Isaías, onze.
==================================
*São pronomes pessoais da primeira e da terceira pessoa.

Fonte:
A. A. de Assis. Era um tempo e tanto. (triversos). Ed. Do Autor, 2021.
Ebook enviado pelo autor.

Júlia Lopes de Almeida (A Rosa branca)


A Magalhães de Azeredo


A viúva do comandante Henriques dizia a toda a gente que, das suas duas netinhas, dava preferência à primeira; demonstrando pela segunda uma simpatia medíocre.

Comentava cada um a seu modo aquela excentricidade de velha romântica. O verdadeiro motivo, porém, consistia em ser a neta mais velha extraordinariamente parecida com a família Henriques, enquanto que a mais moça pertencia toda à família do pai, um provinciano feio.

Ângela, que era a primeira, recebia continuamente presentes da avó; a outra, a Inês, olhava com melancolia para aquelas doces manifestações de amor, perguntando mentalmente em que desmereceria ela da ternura da mãe de sua mãe?

Acostumaram-se todos com aquela injustiça, menos a pobre Inezinha, que chorava muitas vezes às ocultas, chamando-se desgraçada!...

Com o tempo veio a necessidade de Ângela entrar para um colégio. A avó lamentou-se, tornando-se ainda mais indiferente para a pobre Inês e atirando-lhe para cima todas as culpas; era ela quem quebrava a louça que se sumia do armário; era ela que fazia enxaquecas à mãe com a bulha dos seus sapatos insuportáveis; era ela quem arrancava as plantas do jardim e quem roubava os doces do guarda–prata; era ela quem batia nos animais, quem riscava os móveis, quem enchia de trapos e de papéis o chão, quem impacientava as criadas e pedia dinheiro às visitas.

Ela era o demônio! e, na sua opinião, seria muito mais sensato mandá-la de preferência para o colégio, como pensionista, e deixar em casa a Ângela, a quem se oferecia para pagar os mestres.

O alvitre não foi bem recebido. E Ângela teve de partir para Itu, lugar escolhido para a sua educação.

Na véspera, à noite, recaindo a conversa sobre assuntos de pressentimentos e de superstições, Ângela teve a fantasia de dizer à avó:

– Olhe, vovó, todas as manhãs há de ver no seu oratório uma rosa branca. Será o meu pensamento que há de vir visitá-la. No dia em que a rosa estiver meio murcha, será um sinal de que eu estou doente; e se ela não aparecer, será porque eu morri!

– Deixa-te de tolices! Não quero que minha filha leve de casa semelhantes ideias! Acreditarás por acaso nisso?

– Não, mamãe... eu estava brincando... Descanse que a rosa branca não há de vir!

Do seu canto, a pobre Inês observou que o olhar da avó se tornara angustioso, turvo como a água onde se refletisse uma nuvem negra. A pobre senhora acreditava em sonhos e em fantasmas; sabia histórias complicadas e extravagantes; coisas extraordinárias que ela queria impor à fé ou à incredulidade dos outros! Já agora, se a rosa branca não surgisse todas as madrugadas aos pés da Virgem das Dores, ela havia de supor que a sua Angelita tinha ido fazer companhia aos querubins.

E enquanto a sua preferida dizia descuidada e risonha: “Eu estava brincando...” a outra lia-lhe no olhar toda a inquietação e tristeza!

A despedida de Ângela foi dolorosa para o coração da avó; a pobre senhora levou o dia inteiro a chorar, encerrada no quarto, e, quando consentiu em ir ao chá, notaram todos a extraordinária alteração da sua fisionomia. Estava impaciente, frenética, olhando de soslaio para a pobre Inês, com quem várias vezes ralhou sob qualquer pretexto:

– Menina, isso são modos? Tire a mão da mesa!

E continuava depois, voltando-se para uma visita:

– Tanto tem a Angelita de ajuizada e de boa quanto esta tem de insensatez e mau gênio! Pudera! fazem-lhe todas as vontades! Eu nunca vi!

A mãe acudiu em defesa da filha, e a questão prolongou-se, até que a avó, desesperada, exclamou:

– A outra foi aos onze anos de pensionista para o colégio; pois bem, esta tem nove, e aposto em como nem daqui a três anos irá acompanhar a irmã! Injustiças é que me revoltam.

Inês ouvia humilhada e triste aquela troca de palavras, consolando--se com a doçura do olhar da mãe, que caía sobre ela como uma bênção.

No seu pequeno quarto, em frente à cama vazia da irmã, Inezinha procurava em vão adormecer. Revolvia-se entre os lençóis, olhava para o teto, onde a luz da lamparina punha sombras, e lembrava-se do olhar da avó, quando a Ângela falara na rosa branca! Ah! por que lhe quereria tanto mal a sua avó? No entanto, procurava fazer-lhe as vontades, e tinha-lhe até muita amizade! Realmente, a Ângela era tão boa! e tão bonita!

Sim, ela também achava natural que a velhinha preferisse a outra... Mas seria razoável que a deprimisse sempre, e assim... diante de gente de fora? Tentava dormir: fechava os olhos e punha-se a rezar:

– Ave, Maria, cheia de graça!... E a rosa branca? ah! se a vovó não a encontra no oratório... é capaz de chorar! Fazei, virgem Maria, com que nasça uma rosa branca a vossos pés!

"Se fosse eu que estivesse no colégio, a vovó estaria contente! Por que será que não gosta de mim? É verdade que eu lhe tenho feito mal, mas sem ser por vontade... entornei-lhe chá quente na mão... quebrei o seu espelho novo; mas o que com certeza ela não me perdoa é eu ter batido na Ângela! Coitadinha da Ângela! ela não se queixou... quem teria visto? mas se eu não lhe batesse, ela matava o gato da vizinha, e depois? Sim! a vovó tem-me raiva desde esse dia... mas eu tenho dado tantos beijos na Ângela! Pobre da minha irmã, que saudade ela hoje terá da sua caminha!

Apesar dos meus beijos, a amizade da vovó não voltou. Mamãe sempre me diz que não julgue eu isso, que a vovó adora-me! como o saberá? Mas a mamãe não mente; logo que diz, é porque é."

Com as mãozinhas cruzadas sobre o peito, toda envolvida na sua longa camisa de dormir, Inês lutava com a insônia, e, para afastar os pensamentos, recomeçava a dizer: "Ave, Maria, cheia de graça, o Senhor é convosco..."

No entanto, antevia as mãos trêmulas da avó, procurando em vão a rosa branca entre as dobras do veludo azul do manto de Nossa Senhora. Depois as lágrimas caindo-lhe às duas pela face engelhada... E tinha pena, e tornava, cheia de fé, a suplicar:

– Virgem Maria! fazei com que nasça uma rosa branca a vossos pés!

A luz da lamparina foi-se tornando pálida à proporção que os vidros da janela se iam iluminando pela claridade exterior. Inês ergueu--se. Nunca tinha visto amanhecer, mas o seu fito era outro; foi cautelosamente à janela, abriu-a e olhou. Nuvens cor-de-rosa enovelavam-se sob o céu azul; no alto, mostrava-se a lua, estreita como um fio de luz arqueado, e um pouco abaixo entrebrilhava uma grande estrela esbranquiçada e fria. Os pássaros cantavam; havia uma frescura leve toda embalsamada de aromas.

Inês espreitou o oratório.

Nada! A lâmpada acesa, bruxuleante, difundia a sua tênue chama sobre um ramo de flores artificiais! Voltou à janela do seu quarto, ao rés do chão; vacilou um momento, mas, armando-se de coragem, saltou-a, e correu para um recanto do jardim, onde várias roseiras ostentavam as suas belíssimas flores.

À hora do almoço, a avó apareceu risonha e tranquila, com o olhar abrandado por uma misteriosa doçura d’alma. Passaram-se dias, durante os quais a pobre senhora achou sempre no seu oratório a prometida rosa branca, que era, a seu ver, a visita do pensamento da adorada netinha! Cada vez mais terna para a ausente, tornava-se mais ríspida para a Inês. A pequenita andava agora mais abatida e magra, chegando a inspirar cuidados à família.

A história da rosa era ignorada por todos; a avó guardava o segredo da visita de Ângela, egoisticamente, conservando as rosas, mesmo depois de murchas, num cofrezinho dourado!

Um dia, estavam todos à mesa, quando o jardineiro se foi queixar de que todas as noites ia alguém roubar uma rosa branca a uma das roseiras de mais estimação do jardim!

Da rua não entrava ninguém; aquilo era coisa de gente da casa; pedia providências.

Inês tornou-se rubra; a avó estremeceu, e o dono da casa, um colecionador fanático, prometeu um tiro a quem, sem seu consentimento, lhe arrancasse as rosas do jardim. À noite verificou a existência de um formoso botão. No dia seguinte o botão havia desaparecido!

Aquela persistência exasperou-o. Começaram as indagações. A avó julgou de seu dever intervir, contando o fato que se passava consigo, e aconselhando paciência. Era a mão invisível de um ente sobrenatural e piedoso, que vinha, mensageiro da sua Angelita, trazer-lhe a flor prometida!

Essa revelação desorientou-os. A pessoa era então, evidentemente, de casa, e tão íntima que entrava nos quartos da família! Houve ameaças... Entretanto, a doce rosa branca, aquietadora dos sustos da avó, aparecia todas as manhãs, fresca e orvalhada, sob o manto estrelado da mãe de Deus!

As criadas começaram a supor fantasmas, a asseverar que os viam, e de tal forma que a própria Inês entrou de ter medo!

Uma noite deitou-se resolvida a faltar à sua caridosa lembrança; a avó que tivesse paciência e apreensões e lágrimas – ela não se arriscaria nunca mais para poupar-lhe esses desgostos! E ficou, como na primeira noite, nervosa, imaginando a decepção da velha! Passou por fim ligeiramente pelo sono; acordando, viu tamanha claridade na janela, que supôs ser já dia. Saltou do leito, e, sem meditar, levada pelo hábito, ainda quase a dormir, pulou para o jardim, arrastando na areia a sua camisola branca e magoando no chão os pezinhos descalços.

A lua, em todo o esplendor, espalhava a sua luz aveludada; estava tudo silencioso, silencioso!

Inês, no meio do caminho, ao ar fresco, compreendeu o seu engano: levantara-se alta noite! A bulha dos seus passos naquela solidão horrorizou-a. Ah! era a hora dos fantasmas, e ela não ousava olhar para trás! caminhava sempre, com os lábios secos e os olhos muito abertos! Foi com um movimento nervoso que arrancou da haste a triste flor piedosa, não ousando observá-la, porque, quando à violência do puxão a roseira balançou os seus botões nevados, afigurou-se-lhe ver uma dança macabra improvisada no ar por estranhos e pequeninos espectros! Correu então alucinada para casa, saltou para dentro, e, sem tomar as precauções do costume, entrou no oratório precipitadamente e atirou aos pés da Virgem a doce rosa branca, murmurando ao mesmo tempo, com a voz alterada pelo medo:

“Salve, Rainha... Mãe de misericórdia... vida e doçura... esperança nossa!”

Não acabou. Transida de medo e de frio, cairia no chão... se dois braços não a amparassem meigamente.

Eram os braços da avó, que a cobria de beijos, repetindo-lhe:

– Como tu és boa, minha adorada Inês! como tu és boa!

Fonte:
Júlia Lopes de Almeida. Ânsia eterna. 2. ed. rev. Brasília: Senado Federal, 2020. Publicada originalmente em 1903.

Concurso de Crônicas Lygia Lopes dos Santos (Prazo: 25 de Junho)


Com as pedras desiguais da vida,
Lygia Lopes dos Santos compõe
seu notável mosaico literário.”
Helena Kolody


A Academia Feminina de Letras do Paraná (AFLP) e o Centro de Letras do Paraná (CLP) convidam a comunidade paranaense a participar do Concurso de Crônicas Lygia Lopes dos Santos. A iniciativa compõe as atividades comemorativas dos 50 anos de fundação da AFLP. Associando-se nessa comemoração, o CLP presta merecida homenagem à Academia e oferece sua contribuição ao objetivo de aproximar letras e comunidade.

AUTORA HOMENAGEADA

Lygia Lopes dos Santos, a autora que dá nome a este Concurso, presidiu a Academia Feminina de Letras do Paraná no período de 2004 a 2016 e participou da Diretoria do Centro de Letras do Paraná em várias gestões, frequentando, assiduamente, suas atividades.

Filha da fundadora da AFLP, professora Pompília Lopes dos Santos, e do professor, escritor e membro da Academia Paranaense de Letras Dario Nogueira dos Santos, Lygia fez licenciatura na PUC. Na educação, foi proprietária e diretora de escola, além de professora em várias instituições de ensino. Trabalhou na Fundação Cultural de Curitiba, de 1973 a 2000, ocupando cargos de coordenação e chefia, vindo a fundar (1982) e coordenar a Livraria Dario Vellozo durante cinco anos. À disposição da Universidade Federal do Paraná, lotada na Editora Scientia et Labor, criou a Livraria da Universidade Federal do Paraná, em 1988. Em 1978 veio à luz seu livro de contos “Dança do Caos”, com apreciações de Helena Kolody e Denise Guimarães* e prefácio de Valfrido Piloto. Tem várias publicações em revistas, livros, jornais e coletâneas. Mas sua grande satisfação era escrever crônicas.

REGULAMENTO

1. OBJETIVOS

O Concurso tem como principais objetivos: incentivar o leitor a escrever, estimular a produção literária, identificar novos escritores e oferecer oportunidade para revelação de talentos.

Sendo a crônica porta-voz de opiniões e reflexões sobre questões do cotidiano, as entidades promotoras convidam o leitor a opinar e refletir ao escrever sobre o que vê, lê e pensa, de modo a, por meio da escrita, ampliar o sentido dos fatos e coisas que permeiam sua realidade.

2. TEMA

A crônica deverá se referir ao seguinte tema: Vamos falar de amor?

O tema convida a uma releitura da presença do amor nas situações simples ou complexas, alegres ou tristes, mas sempre impactantes no dia a dia das pessoas.

3. PERÍODO DE INSCRIÇÕES

As inscrições serão gratuitas e estarão abertas de 26 de janeiro de 2021 a 25 de junho de 2021.

4. CONDIÇÕES DE PARTICIPAÇÃO

4.1. A participação é aberta a autores paranaenses, ou residentes no Estado do Paraná maiores de 18 anos.

4.2. Não poderão participar os membros da comissão organizadora e julgadora, as acadêmicas da AFLP e os membros da Diretoria, das Comissões de Assessoramento e dos Conselhos do CLP.

4.3. Serão aceitas obras redigidas exclusivamente em língua portuguesa, desde que não publicadas em jornais, revistas e periódicos impressos, não sendo impedimento à inscrição a simples divulgação anterior em blogs e sites pessoais, além de redes sociais.

4.4. Cada participante pode se inscrever com uma crônica, que deverá atender ao limite máximo de 4.200 caracteres (com espaços e título incluídos), apresentação em formato A4, fonte Times New Roman tamanho 14, espaçamento entre linhas 1,5 e margens 2,5cm, em formato PDF. O título, o pseudônimo do autor e o conteúdo da crônica devem ser as únicas informações junto ao corpo do anexo.

4.5. Trabalhos que não atendam as especificações detalhadas no item 4.4 serão desclassificados.

4.6. Trabalhos que não aludam ao tema (Vamos falar de amor?) serão desclassificados.

5. ENCAMINHAMENTO DO TRABALHO

5.1.  O trabalho deverá ser enviado em arquivo formato PDF para o endereço concursodecronicas@hotmail.com. O assunto do email deve ser “Concurso Crônicas + pseudônimo do participante”.

5.2. No e-mail devem constar dois anexos: a ficha de inscrição, conforme modelo disponível ao final do presente Regulamento, devidamente preenchida e salva como “Inscrição”, e o arquivo PDF contendo a crônica e salvo com o nome da crônica.

5.3. Não será enviado e-mail de confirmação de recebimento por parte da comissão organizadora.

6. PREMIAÇÃO

6.1. O primeiro, segundo e terceiro colocados receberão troféu e certificado; o quarto, quinto e sexto colocados receberão medalha e certificado; o sétimo, oitavo, nono e décimo colocados receberão certificado.

6.2. Todos os textos classificados serão publicados nas redes sociais da AFLP e do CLP, bem como em jornais, blogs literários e podcasts apoiadores dessa iniciativa.

6.3. Os textos premiados ficarão à disposição da Academia Feminina de Letras do Paraná e do Centro de Letras do Paraná para serem veiculados (divulgados) em diferentes mídias, respeitando sempre a menção ao nome do autor que, desde logo, autoriza sua ampla veiculação.

7. ETAPAS DO CONCURSO

7.1. O processo de seleção dos trabalhos e condução do Concurso terá as seguintes etapas:

1ª) recebimento das inscrições e triagem, a ser realizada pela Comissão Organizadora, no intuito de verificar obediência aos termos do presente Regulamento e consequente desclassificação daqueles que descumpram qualquer dos itens dispostos;

2ª) envio dos trabalhos que estejam de acordo com o presente Regulamento à Comissão Julgadora, formada por 05 (cinco) membros, especialmente convidados pelas entidades promotoras, os quais avaliarão as obras (pontuação de 0 a 10), em caráter de decisão irrevogável, de acordo com os critérios de domínio da linguagem, criatividade, coesão/coerência, desde já estabelecidos;

3ª) divulgação dos resultados nas redes sociais da AFLP e CLP, no site https://academiafemininade7.wixsite.com/concurso;

4ª) comunicação dos primeiros 10 (dez) colocados via e-mail até o dia 27 de agosto de 2021;

5ª) entrega dos prêmios aos 10 (dez) primeiros colocados em setembro de 2021, em modalidade presencial ou digital, a ser definida e divulgada naquela data.

8. ORGANIZAÇÃO

8.1. Cabe à Academia Feminina de Letras do Paraná e ao Centro de Letras do Paraná, em conjunto, solucionar quaisquer controvérsias, casos omissos ou pendências advindas do Concurso, bem como realizar de modo exclusivo quaisquer comunicados aos participantes e interessados, que deverão sanar suas dúvidas e levar suas questões ao email concursodecronicas@hotmail.com.

8.2. O trabalho da organização encerra-se a partir da entrega dos prêmios aos vencedores.

9. COMISSÃO JULGADORA

9.1. As decisões da comissão além de irrevogáveis são irrecorríveis.

9.2. A composição da comissão julgadora será divulgada junto aos resultados.

10. DISPOSIÇÕES GERAIS


10.1. Efetivada a inscrição, não serão aceitas quaisquer alterações nos trabalhos entregues.

10.2. Não serão aceitos trabalhos que possuam conteúdo racista, machista, homofóbico ou de qualquer forma preconceituoso, ou que expresse propaganda política ou conotação religiosa.

10.3. Ao realizar a inscrição, o candidato manifesta pleno acordo com o Regulamento e autoriza, para todos os fins, a divulgação e publicação de seu nome e trabalho inscrito, a critério da organização, em quantos e quais veículos sejam considerados adequados, podendo vir a compor uma antologia a critério exclusivo dos organizadores.

10.4. Os textos serão publicados com o nome do autor (indicado na ficha de inscrição), exceto quando o autor manifestar expressamente a intenção de ser identificado apenas por pseudônimo.

10.5. Os participantes são integralmente responsáveis pela veracidade das informações prestadas e pelas consequências jurídicas decorrentes de eventual prática de plágio (total ou parcial), respondendo perante terceiros em todas as esferas pelos conteúdos que caracterizem a obra.

10.6. Fica eleito o foro da Comarca de Curitiba para dirimir quaisquer dúvidas constantes do presente Regulamento.

Ficha de Inscrição clique em
https://drive.google.com/file/d/1lIgQXZlGft9JxXe0I6ibC0gF3jqGrfGM/view

sexta-feira, 29 de janeiro de 2021

Varal de Trovas 472

 


Luís da Câmara Cascudo (Cobra Norato)


No paranã* do Cachoeiri, entre o Amazonas e o Trombetas, nasceram Honorato e sua irmã Maria, Maria Caninana.

A mãe sentiu-se grávida quando se banhava no rio Claro. Os filhos eram gêmeos e vieram ao mundo na forma de duas serpentes escuras.
 
A tapuia batizou-os com os nomes cristãos de Honorato e Maria. E sacudiu-os nas águas do Paranã porque não podiam viver em terra.

Criaram-se livremente, revirando ao sol os dorsos negros, mergulhando nas marolas e bufando de alegria selvagem. O povo chamava-os: Cobra Norato e Maria Caninana.

Cobra Norato era forte e bom. Nunca fez mal a ninguém. Vez por outra vinha visitar a tapuia velha, no tejupar* do Cachoeiri. Nadava para a margem esperando a noite.

Quando apareciam as estrelas e o aracuã* deixava de cantar, Honorato saía da água, arrastando o corpo enorme pela areia que rangia. Vinha coleando, subindo até a barranca. Sacudia-se todo, brilhando as escamas na luz das estrelas. E deixava o couro monstruoso da cobra, erguendo-se um rapaz bonito, todo de branco. Ia cear e dormir no tejupar materno. O corpo da cobra ficava estirado junto do paranã*. Pela madrugada, antes do último cantar do galo, Honorato descia a barranca, metia-se dentro da cobra que estava imóvel. Sacudia-se. E a cobra, viva e feia, remergulhava nas águas do paranã.

Voltava a ser a Cobra Norato.

Salvou muita gente de morrer afogada. Direitou montarias e venceu peixes grandes e ferozes. Por causa dele a piraíba* do rio Trombetas abandonou a região, depois de uma luta de três dias e três noites.

Maria Caninana era violenta e má. Alagava as embarcações, matava os náufragos, atacava os mariscadores que pescavam, feria os peixes pequenos. Nunca procurou a velha tapuia que morava no tejupar do Cachoeiri.

No porto da Cidade de Óbidos, no Pará, vive uma serpente encantadora, dormindo, escondida na terra, com a cabeça debaixo do altar da Senhora Sant'Ana, na Igreja que é da mãe de Nossa Senhora.

A cauda está no fundo do rio. Se a serpente acordar, a Igreja cairá. Maria Caninana mordeu a serpente para ver a Igreja cair. A serpente não acordou mas se mexeu. A terra rachou, desde o mercado até a Matriz de Óbidos.

Cobra Norato matou Maria Caninana porque ela era violenta e má. E ficou sozinho, nadando nos igarapés, nos rios, no silêncio dos paranãs.

Quando havia putirão* de farinha, dabacuri* de frutas nas povoações plantadas à beira-rio, Cobra Norato desencantava, na hora em que os aracuãs deixam de cantar, e subia, todo de branco, para dançar e ver as moças, conversar com os rapazes, agradar os velhos.

Todo mundo ficava contente. Depois, ouviam o rumor da cobra mergulhando. Era madrugada e Cobra Norato ia cumprir seu destino.

Uma vez por ano Cobra Norato convidava um amigo para desencantá-lo. Amigo ou amiga. Podia ir na beira do paranã, encontrar a cobra dormindo como morta, boca aberta, dentes finos, riscando de prata o escuro da noite: sacudir na boca aberta três pingos de leite de mulher e dar uma cutilada com ferro virgem na cabeça da cobra, estirada no areião.

Cobra fecharia a boca e a ferida daria três gotas de sangue. Honorato ficava só homem, para o resto da vida. O corpo da cobra seria queimado. Não fazia mal. Bastava que alguém tivesse coragem.

Muita gente, com pena de Honorato, foi, com aço virgem e frasquinho de leite de mulher, ver a cobra dormindo no barranco. Era tão grande e tão feia que, dormindo como morta, assombrava. A velha tapuia do Cachoeiri, ela mesma, foi e teve medo. Cobra Honorato continuou nadando e assobiando nas águas grandes, do Amazonas ao Trombetas, indo e vindo, como um desesperado sem remissão.

Num putirão famoso, Cobra Norato nadou pelo rio Tocantins, subindo para Cametá. Deixou o corpo na beira do rio e foi dançar, beber, conversar. Fez amizade com um soldado e pediu que o desencantasse. O soldado foi, com o vidrinho de leite e um machado que não cortara pau, aço virgem. Viu a cobra estirada, dormindo como morta. Boca aberta. Sacudiu três pingos de leite entre os dentes. Desceu o machado, com Vontade, no cocuruto da cabeça. O sangue marejou. A cobra sacudiu-se e parou.

Honorato deu um suspiro de descanso. Veio ajudar a queimar a cobra onde vivera tantos anos. As cinzas voaram. Honorato ficou homem. E morreu, anos e anos depois, na cidade do Cametá, no Pará.

Não há nesse rio e terras do Pará quem ignore a vida da Cobra Norato. São aventuras e batalhas.

Canoeiros, batendo a jacumã*, apontam os cantos, indicando as paragens inesquecidas:

- Ali passava, todo o dia, a Cobra Norato...
* * * * * * * * * * * * * * * *  
Vocabulário:
Aracuã – ave trepadora.
Dabacuri - festa oferecida por uma aldeia a outra.
Jacumã – leme, remo.
Paranã – pequeno braço de rio.
Piraíba – espécie de peixe.
Putirão – trabalho comum, gratuito, (mutirão) em proveito de um indivíduo que oferece alimentação e bebidas e depois um baile.
Tejupar – casa de palha, palhoça.


Fonte:
Luís da Câmara Cascudo. Lendas Brasileiras para Jovens. Projeto LpT (Livro para Todos).

A. A. de Assis (Era um tempo e tanto) Parte 2


24.
Mindim, seu-vizim,
pai-de-todos, fura-bolo.
Ao sobrante, o piolho.

25.
Tão longe, tão ontem.
Era uma vez eu menino
ensaiando a vida.

26.
Salgados, refrescos.
Lá ia alegre a moçada
para o piquenique.

27.
Baile na penumbra.
Pares de rostos colados
e um bolero ao fundo.

28.
Moradas sem muros,
simbólicas taramelas.
Cidade sem medo.

29.
Bença mãe, bom dia,
por favor, me dá licença.
Os belos bons modos.

30.
A pasta da escola.
Cartilha, papel manilha,
e o mata-borrão.

31.
De nublar a vista.
Vestida de azul e branco
passa a normalista.

32.
Meninas de tranças
cantando canções de roda.
Voltarão à moda?

33.
As artes da infância,
a turma da escola, o rio.
A terra natal.

34.
Namoro na praça.
Quanta história teve início
num flerte no footing.

35.
Tal e qual nos filmes.
No restaurante do trem
o jantar a dois.

36.
Pião, bilboquê,
bolinha de gude, ioiô.
Não tem mais por quê?

37.
Dou um Superman
por um Marvel e um Tarzan.
Troca de gibis.

38.
A santa saída.
Na porta da igreja os moços
esperando as moças.

39.
Ridentes passeios.
Vovô leva o neto ao bosque
para ouvir gorjeios.

40.
Bibibi-fonfom.
Carangos e calhambeques
na hora do rush.

41.
De repente o choque.
Eu da geração da valsa
vi nascer o rock.

42.
Outrora cantavam
de tardezinha as cigarras.
Onde mora o outrora?

43.
Moça na janela.
Na rua em frente um violino
sola o Autumn Leaves.

44.
Em nobre moldura
o retrato oval do avô.
Gratidão da prole.

45.
Um homem na rua
assobia o Hino à Alegria.
Obrigado, irmão.

46.
Abaixo o estilingue.
O pito da professora
na molecadinha.

Fonte:
A. A. de Assis. Era um tempo e tanto. (triversos). Ed. Do Autor, 2021.
Ebook enviado pelo autor.

Aparecido Raimundo de Souza (Parte 30) Invenção de espanto

Vila Velha/ES

PENSEM NUM SUJEITO trabalhador e honesto, cumpridor de seus deveres até debaixo d'água. O Alpheu! Este mesmo, escrito assim, desta forma arcaica, Alpheu com ‘PH’. E ele, por seu turno, fazia questão de deixar pontificado, o ‘PH’. Sem dúvida alguma, este era o cara, apesar de não gostar da melodia do Roberto Carlos, onde o cantor de Cachoeiro de Itapemirim, filho de dona Laura e seu Robertino, dava conta de um indivíduo que exaltava a figura auspiciosa de um craque, o dono do pedaço e da cocada preta, sobretudo, que fazia as honras em todos os sentidos, inclusive e, principalmente, se abrindo feito paraquedas às princesas de todas as idades, o que tornou o bendito fruto amável e benquisto entre as beldades do sexo oposto, Brasil e desvãos além fronteiras.

Mas o nosso Alpheu com ‘PH’, sem tirar nem pôr, fora o escolhido. Homem sério, até seu relógio interno seguia as regras do excelente. Sem nenhuma mancha que tornasse seu passado obscuro, servia de chacota e de gozação para os amigos. Na verdade, um espectador inocente, figura ridícula pela maneira por que se deixava, sobretudo, escravizar com as barbáries e investidas dos idiotas que se diziam e se proclamavam ‘seus chegados’: ‘Você é o cara, mano —, afirmava um’. Este ‘cara é você’ —, ajuntava outro. Por conta deste ‘cara sou eu’, o homenzarrão queria morrer. Tirando esta particularidade, Alpheu com ‘PH’, um santo. Do pau oco, mas santo. Bom pai, ótimo marido e seleto companheiro, principalmente com os colegas de trabalho. O patrão o adorava. Seu trajeto, nos trezentos e sessenta e cinco dias do ano... Apenas um. Com uma variante.

De casa para o trabalho e do trabalho para casa. Nada mudava a sua rota. A vida, para ele, se fazia mais obsessiva que as liquidações das Lojas Renner, anunciando seus auspiciosos e chamativos Black Friday. Alpheu com ‘PH’, como todo ser humano perfeitamente imperfeito, claro, exatamente por ser humano, tinha (apesar dos pesares e da vidinha reta e sem nódoas), cinco defeitos inquestionáveis. Primeiro deles. Gostava de fazer filhos. Por conta desta vida desregrada, no escuro de quatro paredes, enrodilhado com a sua metade gostosa do casamento, a Belinha, e gozando, com ela, os prazeres das fogosidades calientes, trouxera, à luz, em consequência das viradas de olhinhos, nove boquinhas para dar de beber e comer. Nove. Imaginem só! O segundo defeito. Ao sair do trabalho (pegava às cinco da manhã, na padaria do português Manuel Joaquim, parava uma hora para almoçar e, quinze minutos, para engolir o café servido como lanche).

Largava, o batente, às dezessete horas. Todo santo dia esta rotina enervante. O terceiro defeito. O pior deles. Antes de chegar em casa, vinha a variante acima citada. Alpheu com ‘PH’, passava, impreterivelmente, pelo boteco do Aristeu da Conceição (duas quadras de onde morava) e, uma vez ali, alagava os bofes, tomando todas as purinhas com seus amigos de copos. Ficava enraivecido, porque, nesta hora, os falsos amigos das garrafadas zoavam da sua vida certinha, cantando ‘Este cara sou eu’, do Roberto Carlos. Alpheu com ‘PH’, ficava pra morrer. Odiava, com todas as forças, esta canção e, se tivesse poder, pegava seus parceiros e os mandava para verem Papai do céu antes da hora marcada. Um suplício mal parido de que não cogitou, em nenhum momento, a sua postura de cidadão de bem.

Quarto defeito. Chegava, em casa, por volta das vinte e uma e o fazia, aos tropeços, chamando urubu de Nego do Burel e confundindo os postes com os mourões das cercas de arame ao longo da avenida. Morava quase no final dela, num bonito sobrado de alvenaria que lhe fora deixado de herança pelos pais falecidos. Ainda no jardim, ao ouvir o som das crianças jogando em frente à televisão, ato contínuo, pintava o quinto defeito. A criatura então soltava a âncora, deixando, à mostra, um temperamento virulento. Em nome deste drástico frenético, se fazia acessível aos desastres do horror. Arrancava o cinto da calça e pulava, num gingado à Jackie Chan, metendo sem dó nem piedade, um punhado de pancadas nos costados dos pobrezinhos. Neste pega pra capar, os quatro garotos com as idades de sete, nove, treze, e quinze anos, bem ainda, em igual número, as meninas, com dez, onze, quatorze, e dezessete, debandavam, em solitários impulsos, cada um para seu quadrado, os respectivos fundilhos pegando fogo, além das pernas e braços em carne viva. Coisa de meio minuto. O bastante para a gurizada dispersar, se escondendo, entre choros e atropelos, fora do real, todavia, em uma asselvajada realidade adentro.

Este sistema abrupto não mudava nunca. Bastava por os pés no alpendre, o couro começava a comer e se esparramar solto nas oito crianças. Alto lá: não somavam nove? Sim, isto mesmo, nove. A mais nova, a Aninha, de cinco anos, não alimentava o hábito de ficar jogando com os irmãos. Dava oito horas, a lindinha saia de cena e partia para a horizontal. Por certo, se estivesse entre os consanguíneos, não escaparia das perversidades do Alpheu com ‘PH’. Belinha, coitada, a esposa aflita, vinha lá de dentro correndo, apavorada (às vezes, com uma tigela cheia de pipocas nas mãos ou uma garrafa de refrigerante) e, ao se deparar com o bafafá, se intrometia às cegas para cima do marido, pedindo a ele, aos gritos vociferados que não agisse daquela forma com seus rebentos.

Afinal de contas, eles não tinham culpa de terem sido postos no mundo:

— Alpheu, pelo amor de Deus — separava, ou tentava. – Pare de tratar as suas crias deste jeito. Eles não estavam fazendo nada, só jogando. Deixe de ser violento. Respeite a sua família, em nome do Senhor Jesus. Que loucura! Todo santo dia este perrengue... Olhe pela janela. Nossos vizinhos, boquiabertos e pasmos, presenciando os descalabros das suas malditas biritas.

Alpheu com ‘PH’, no seu intenso sentimento de ódio descomedido, na danação de distribuir cintadas, às vezes acertava a pobre mulher onde não devia.

Mesmo ferida, braços e pernas, ou onde pegasse as correadas, a piedosa e santa mãe não deixava de se impor. Alpheu com ‘PH’, sequer dava ouvidos aos seus clamores e lamúrias. Cansado de distribuir porradas, o pinguço saía cambaleando, segurando aqui e acolá e acorria para o banheiro. Antes de fechar a porta, deixava sintetizado à esposa ultrajada:

— Não se esqueça: Alpheu, sua vadia... Alpheu com ‘PH’.

Belinha, ofendida e insultada na sua moral, apesar dos safanões e arranhões, não abria a guarda. Resmungava, xingava, chorava e para extravasar as suas inquietações, geralmente mandava junto com seus derrotismos alguma coisa pesada, jogada com força em direção ao embriagado:

— Vai para os quintos, cão sarnento.

O tinhoso, duro na queda, não arredava. Seguia sempre assim, sem nenhuma mudança. Em parte, culpa da mulher. Ora, convenhamos. Sabendo que o marido não mudava seus modos em relação aos jogos, por que não exigia que as crianças jantassem e subissem para dormir antes que o tresloucado desse o ar da graça? Se tivesse se precavido... Aconteceu, entretanto, que num final de semana os meninos haviam acabado de chegar de uma festinha de aniversário de um vizinho parede-meiado. Todos os nove. Por algum motivo, até o presente momento não esclarecido devidamente, Alpheu com ‘PH’, saiu mais cedo da padaria. Passou pelo boteco antes da hora prevista e se empanturrou, em rodadas à gostos apurados, com os amigos de sempre. Em seguida pegou o rumo de seu barraco. Ao chegar no portão, dali mesmo, ao ouvir as risadas barulhentas vindas do interior da residência não se fez de rogado. Arrancou da cinta e...

...Meteu os pés na porta e escancarou partindo para o ataque. Aos estropigaitados* de ‘eu mato’, pegou o primeiro, agarrou o segundo, esbofeteou o terceiro, socou o quarto... Belinha, em contrapartida, se armou de uma cadeira e investiu contra o desmiolado. Ele não se deteve. Seguiu mandando correadas e bordoadas no quinto, no sexto... Belinha, braba (pensem numa fêmea endiabrada), quebrou uma cadeira nas pernas dele. Entretanto, esta medida não se fez objetiva pelo menos para fazê-lo parar. Alpheu com ‘PH’, não se intimidou. Correu para o sétimo, grudou nos peitos do oitavo, derrubou o quinto...

Voltou para o segundo... Aplicou uma rasteira no oitavo... Quando, avistou num canto, a nona, ou seja, a Aninha, a coitadinha agachada, chorosa e assustadíssima, as mãozinhas cobrindo suas estremeções, Alpheu com ‘PH’, voou feito um leão faminto para deitar o sarrafo na brejeira:

— Até que enfim, esta maldita, hoje, está no bolo. Saiba, praguinha dos infernos, que de agora você não me escapa. Vai apanhar dobrado. Faz tempo que não boto os sentidos em seu magérrimo esqueleto...

Belinha, ao ouvir estas palavras, chegou ao ápice do seu desespero. Alcançou os píncaros do seu furor. Galgou às cumeadas das contrariedades que a dominavam e a fizeram crescer na sua cólera interior. Como um raio, passou as mãos num vaso de flores enorme e pesado (mais robusto que a consciência de Rodrigo Maia), que descansava, solitário sobre uma mesinha de centro, e mandou direto nos cornos de sua parte podre da maçã. Alpheu com ‘PH’, titubeou. Tentou ir em frente. Qual o quê! Ensaiou alguns passos. Inútil. Desabou, caindo de joelhos, o sangue jorrando abundantemente em meio à sua testa.

Antes de sair do ar, de vez, ouviu estas palavras da sua linda consorte:

— Na minha caçulinha, seu verme peçonhento, você não encosta as patas. Esta ai, seu corno safado, não é sua filha.
* * * * * * * * * * * * * * * *  
Vocabulário:
Estropigaitados
– atrapalhados, embaraçados, confusos.


Fonte:
Aparecido Raimundo de Souza. “Comédias da vida na privada”. RJ: Editora AMC-GUEDES, 2020.
Texto enviado pelo autor.

Estante de Livros (“A Ferro e Fogo”, de Josué Guimarães)


A saga da colonização alemã, particularizada na luta pela sobrevivência e na identificação com as condições históricas rio-grandenses por parte da família Schneider, lembra como processo narrativo O tempo e o vento, de Erico Verissimo. Porém o sopro épico que anima as páginas do escritor de Cruz Alta é substituído por uma preocupação maior com o prosaico, com a mesquinha luta cotidiana, com a tarefa inglória de resistência em meio a uma terra estranha.

Local e época:

A narrativa se passa no Rio Grande do Sul [abrangendo as terra que hoje correspondem ao Chuí, Santa Vitória do Palmar, São Leopoldo, Porto Alegre, Rio Grande e Portão], no tempo do Império, num ambiente hostil, pobre e violento durante e após a guerra da Cisplatina, onde os personagens principais vivem em meio a bugres, negros, castelhanos, gaúchos, soldados e alemães.

Caracterização dos personagens:

Catarina - era uma mulher de rosto redondo e forte. Uma mulher decidida, batalhadora, humilde e mãe de três filhos. Apesar das dificuldades que passou, era solidária, carinhosa, cristã, corajosa e paciente. Ela era esperta, pois sabia lidar com os negócios, e trabalhadora. Não tinha preconceitos e tomava as iniciativas pois possuía uma personalidade forte.

Daniel Abrahão - era indeciso, covarde, queria preservar sua vida, não enfrentando as situações e acabou ficando alheio a tudo e obcecado pela religião. Era um homem sem iniciativa que acabou sendo comandado por sua mulher.

Grundling - era um homem perspicaz, ganancioso, preconceituoso, fazia de tudo para realizar os seus objetivos, gostava de ostentação, de mostrar sua riqueza. Ele apreciava beber e frequentar casas de prostituição. Embora gostasse muito da esposa com a qual teve dois filhos.

Resumo:

O governo brasileiro estava trazendo imigrantes da Alemanha para o Rio Grande do Sul, com a promessa de que eles receberiam terras, sementes, animais,... Dentre esses imigrantes estava a família de Daniel Abrahão Lauer Schneider, que se instalou na Real Feitoria de Linho Cânhamo [atual São Leopoldo]. Ele, sua mulher Catarina e seu filho Phillip viviam em condições miseráveis.

Daniel e um grupo de amigos se reuniam para beber e Grundling era quem pagava essas bebedeiras. Um dia, Grundling propôs um negócio para Abrahão, ele daria todas as condições para uma viagem ao sul do estado, forneceria um casal de escravos, um índio chamado Juanito e terras, mas Grundling não especificou qual era o negócio, disse apenas que iriam armazenar mercadorias. Daniel estava indeciso, quem optou por ir foi Catarina, pensando no futuro de seus filhos. Depois de alguns dias de viagem, chegaram ao local e começaram a realizar as reformas necessárias. Apareceu por lá Harwether, uma amigo das antigas bebedeiras, trazendo as mercadorias que deveriam ficar guardadas ali até Mayer ir buscá-las.

Já estavam há algum tempo no negócio, quando se iniciou a Guerra da Cisplatina, e Daniel descobriu que as mercadorias armazenadas por ele eram armas e os castelhanos já estavam desconfiados do contrabando. Certa vez, Juanito viu uma tropa aproximando-se, avisou Catarina que ordenou a Daniel que se escondesse em um poço e ela mentiu para os soldados castelhanos que o marido não estava. Eles descobriram as armas e as levaram. O movimento de soldados era contínuo, não só de castelhanos com também de brasileiros, por isso Daniel permaneceu vários meses no poço que ate já estava mais estruturado. Catarina foi violentada por soldados e Juanito ficou coxo por causa das surras. Mayer mentiu em São Leopoldo que Daniel contrabandeava armas para os castelhanos, por isso os soldados brasileiros também estava atrás de Daniel.

Enquanto os Schneider passavam dificuldades, Grundling e seu amigo Major Schaeffer, amigo da Imperatriz Leopoldina, se divertiam com bebedeiras e prostitutas. Grundling, a pedido do doutor Hillebrand, decide ajudar uma moça deixada por bugres na cidade. Com o passar do tempo ele se apaixona pela moça chamada Sofia, casa com ela e tem filhos.

Aparece na estância dos Schneider um soldado chamado Ostereich, um alemão convocado para lutar na guerra, informa Catarina sobre o fim da guerra da Cisplatina e que ele voltava para São Leopoldo. Catarina menciona o desejo de deixar aquelas terras e ir para São Leopoldo. Então eles entram em um acordo, ela trocaria as terras pelas propriedades de Ostereich.

Os Schneider foram para lá e Catarina decidiu que Daniel voltaria a exercer sua profissão de origem, a de seleiro. Além disso, abriu vários empórios, e já estava fazendo concorrência aos empórios de Grundling. Daniel ficou traumatizado com a guerra e constrói um alçapão para permanecer durante a noite.

Grundling descobriu que Catarina estava na cidade e foi falar com ela. Foi recebido hostilmente com uma arma empunhada por ela, sendo inviável a comunicação ele retornou para casa. Enquanto isso, havia uma conspiração por parte dos alemães que reclamavam da demora na entrega das terras prometidas, houve algumas mortes de alemães o que aumentava ainda mais a revolta.

Grundling não permitia que a esposa saísse às ruas pois eram sujas e ele não gostaria que ela tomasse sol e queimasse sua pele branca. Sofia acabou ficando anêmica e morreu. Catarina resolve ir acertar as contas com Grundling, em quem ela colocava toda a culpa pelas desgraças que aconteceram em sua vida. Quando chega ao local, Grundling pensa que ela vem em solidariedade por causa da morte da esposa. Ao olhar a profunda tristeza que invade Grundling, ela desiste do seu objetivo [matar], esquece seu velho ódio e segue junto a ele o cortejo, contendo o choro.

Fonte:
Algo Sobre.

quinta-feira, 28 de janeiro de 2021

Mia Couto (O Menino no Sapatinho)


Era uma vez o menino pequenito, tão minimozito* que todos seus dedos eram mindinhos. Dito assim, fino modo, ele, quando nasceu, nem foi dado à luz mas a uma simples fresta de claridade.

De tão miserenta, a mãe se alegrou com o destamanho do rebento — assim pediria apenas os menores alimentos. A mulher, em si, deu graças: que é bom a criança nascer assim desprovida de peso que é para não chamar os maus espíritos. E suspirava, enquanto contemplava a diminuta criatura. Olhar de mãe, quem mais pode apagar as feiuras e defeitos nos viventes?

Ao menino nem se lhe ouvia o choro. Sabia-se de sua tristeza pelas lágrimas. Mas estas, de tão leves, nem lhe desciam pelo rosto. As lagriminhas subiam pelo ar e vogavam suspensas. Depois, se fixavam no teto e ali se grudavam, missangas tremeluzentes.

Ela pegava no menino, com uma só mão. E falava, mansinho, para essa concha. Na realidade, não falava: assobiava, feito uma ave. Dizia que o filho não tinha entendimento para palavra. Só língua de pássaro lhe tocaria o reduzido coração. Quem podia entender? Ele há dessas coisas tão sutis, incapazes mesmo de existir.

Como essas estrelas que chegam até nós mesmo depois de terem morrido. A senhora não se importava com os diz-que-diz. Ela mesmo tinha aprendido a ser de outra dimensão, florindo como o capim: sem cor nem cheiro.

A mãe só tinha fala na igreja. No resto, pouco falava.

O marido, descrente de tudo, nem tinha tempo para ser desempregado. O homem era um farrapo, bêbado, entorna garrafas. Do bar para o quarto, de casa para a cervejaria.

Pois, aconteceu o seguinte: dadas as dimensões de sua vida e não havendo berço à medida, a mãe colocou o menininho num sapato. E o cujo era o esquerdo do único par, o do marido. De então em diante, o homem passou a calçar um só pé. Só na ida isso o incomodava. Na volta, ele nem se percebia de ter pés, dois na mesma direção.

Em casa, no calor da palmilha, o miúdo aprendia já o lugar do pobre: nos embaixos do mundo. Junto ao chão, tão rés e rasteiro que, em morrendo, dispensaria quase o ser enterrado. Uma peúga* desirmanada lhe fazia de cobertor. Se o frio lhe estreitasse, a mulher se levantava de noite para repuxar a trança dos atacadores*. Assim lhe calçava um aconchego. Todas as manhãs, de prevenção, ela avisava os demais e demasiados:

— Cuidado, já adentrei o menino no sapato.

Que ninguém, por descuido, o calçasse. Quando‑muito, o marido quando voltava bêbado e queria sair uma vez mais, desnoitado, sem distinguir o esquerdo do menos esquerdo. A mulher não deixava que o berço fugisse do vislumbre dela. Porque o marido já se outorgava, cheio de queixa:

— Então, ando para aqui improvisar um coxinho?

— É seu filho, pois não?

— O diabo que te carregue!

E apontava o filhote: o individuozito interrompia o seu calçado? Pois que, sendo aqueles seus exclusivos e únicos sapatos, ele se despromoveria* para um chinelado?

— Sim — respondeu a mulher. — Eu já lhe dei os meus chinelos.

Mas não dava jeito naqueles areais do bairro. Ela devia saber: a pessoa pisa o chão e não sabe se há mais areia em baixo que em cima do pé.

— Além disso, eu é que paguei os tais sapatos.

Palavras. Porque a mãe respondia com sentimentos:

— Veja o seu filho, parece o Jesuzinho empalhado, todo embrulhadinho nos bichos de cabedal.

Ainda o filho estava melhor que Cristo — ao menos um sapato já não é bicho em bruto. Era o argumento dela mas ele, nem querendo saber, subia de tom:

— Cá se fazem, cá se apagam!

O marido azedava e começou a ameaçar: se era para lhe desalojar o definitivo pé, então, o melhor seria desfazerem-se do vindouro. A mãe, estarrecida, como se fosse o fim de todos os mundos:

— Vai o quê fazer?

— Vou é desfazer.

Ela prometia‑lhe um tempo, na espera que o bebê graúdasse. Mas o assunto azedava e até degenerou em soco, punhos ciscando o escuro. Os olhos dela, amendoados ainda, continuaram espreitando o improvisado berço. Ela sabia que os anjos da guarda estão a preços que os pobres nem ousam.

Até que o ano findou, esgotada a última folha do calendário. Vinda da igreja, a mãe descobriu-se do véu e anunciou que iria compor a árvore de Natal. Sem despesa, nem sobrepeso. Tirou à lenha um tosco arbusto. Os enfeites eram tampinhas de cerveja, sobras da bebedeira do homem. Junto à árvore ela rezou com devoção de Eva antes de haver a macieira. Pediu a Deus que fosse dado ao seu menino o tamanho que lhe era devido. Só isso, mais nada. Talvez, depois, um adequado berço. Ou quem sabe, um calçado novo para o seu homem. Que aquele sapato já espreitava pelo umbigo, o buraco na frente autorizando o frio.

Na sagrada noite anterior, a mulher fez como aprendera dos brancos: deixou o sapatinho na árvore para uma qualquer improbabilíssima oferta que lhe miraculasse o lar.

No escuro dessa noite, a mãe não dormiu, seus ouvidos não esmoreceram. Despontavam as primeiras horas quando lhe pareceu escutar passos na sala. E depois, o silêncio. Tão espesso que tudo se afundou e a mãe foi engolida pelo cansaço.

Acordou cedo e foi direta ao arbusto de Natal. Dentro do sapato, porém, só o vago vazio, a redonda concavidade do nada. O filho desaparecera? Não para os olhos da mãe. Que ele tinha sido levado por Jesus, rumo aos céus, onde há um mundo apto para crianças. Descida em seus joelhos, agradeceu a bondade divina. De relance, ainda notou que lá no teto já não brilhavam as lágrimas do seu menino. Mas ela desviou o olhar, que essa é a competência de mãe: o não enxergar nunca a curva onde o escuro faz extinguir o mundo.
* * * * * * * * * * * * * * * * 
Vocabulário:
Atacadores – Cordão que se enfia em ilhós para amarrar espartilhos, calçados.
Despromoveria – reduziria, rebaixaria.
Minimozito – muito pequeno.
Peúga – meia curta.


Fonte:
Mia Couto. O menino no sapatinho. Lisboa/Portugal: Editorial Caminho, 2013.

A. A. de Assis (Era um tempo e tanto) Parte 1


01.
Ouço ainda o canto
de um velho carro de boi.
Era um tempo e tanto.

02.
Memórias, memórias.
Volta e meia volta a minha
me contando histórias.

03.
Passeio ao passado.
Passe livre pra quem curte
recurtir saudade.

04.
Suave chegava
o som de uma serenata.
O luar luava.

05.
Ouvi gramofone,
ouvi discos de vinil.
Ouvi sabiás.

06.
Bem-traçadas linhas,
acanhadas confissões.
As cartas de amor.

07.
Eram tão mamães
as cantigas de ninar.
Tão mamães os colos.

08.
Jipe, jardineira,
teco-teco, DC-3.
Pioneiros chegando.

09.
Semente na mão.
O pai plantando o futuro
do filho doutor.

10.
O pilão de milho,
o moinho de café.
Chuveiro de balde.

11.
Prosa na cozinha.
Requentando a canja,
recontando casos.

12.
A Páscoa, o Natal,
a festa do Padroeiro.
Famílias à mesa.

13.
Tardes de verão.
Vizinhança na calçada
pondo o assunto em dia.

14.
Será que ainda contam
histórias de era uma vez?
Conta mais, Dindinha.

15.
Hoje o hoje é hoje,
amanhã já será ontem.
Tudo assim, num zás.

16.
Do vapor ao jato.
Súbito o mundo virou
de ponta-cabeça.

17.
Voar era o sonho,
até que o sonho voou.
O céu é das asas.

18.
Chaplin, Pavarotti,
Gandhi, Churchill, Luther King.
Riquíssimo século.

19.
Garrincha e Pelé.
Depois deles nunca mais
houve igual olé.

20.
Faz tempo houve um tempo
em que a gente olhava o céu.
Via e ouvia estrelas.

21.
Repicam os sinos.
Os mesmos que os meus ouvidos
de menino ouviram.

22.
Ele na primeira,
eu na derradeira infância.
O bisneto e o biso.

23.
Dedão destroncado,
braço preso na tipoia.
Garoto levado.
-----------------------------------
Continua...

Fonte:
A. A. de Assis. Era um tempo e tanto. (triversos). Ed. Do Autor, 2021.
Ebook enviado pelo autor.

Marcelo Spalding (Dicas de Escrita) A ambientação em textos históricos


Textos históricos, ficcionais ou não, são dos mais procurados pelos leitores, afinal a História com “H” maiúsculo nos oferece algumas das mais interessantes histórias de amor, poder, traição, ódio. Julio Cesar, Cleópatra, Arthur, Napoleão, Joana D’Arc, reis, papas e lendas são personagens extremamente ricos e conhecidos do público leitor, convertendo-se em personagens muito produtivos para a literatura contemporânea.

Entretanto, quem se aventura a escrever um texto histórico deve ter alguns cuidados com o enredo e a ambientação, pelo bem da verossimilhança. O curioso é que em relação ao enredo alguns artistas fazem o que se chama metaficção historiográfica, combinando de modo irreal os fatos da história e por vezes inclusive modificando-os (Jô Soares, Tarantino). Se isso no começo espantou os leitores e espectadores, hoje é considerado característica da cultura pós-moderna.

Mesmo nesses casos, porém, é fundamental que a ambientação seja verossímil. Por mais que o artista esteja recriando os fatos da segunda guerra, por exemplo (como Tarantino em Bastardos Inglórios), não pode de uma hora para outra aparecer alguém com um telefone celular, ou alguém ouvindo Lady Gaga, ou alguém comentando sobre Barack Obama, ou alguém de minissaia.

Nesse sentido, para escrever um texto histórico procure se informar sobre a cultura da época que seu texto quer retratar: os costumes, a moda, o turismo, a gastronomia. Mas procure se informar com textos e documentos da época, não a partir de textos de outros escritores sobre a época, pois sempre que um autor contemporâneo resgata o passado, ele o faz com o olhar contemporâneo.

Claro que alguns se esforçam para tornar a ambientação mais realistas, outros não se preocupam nada com isso (como os blockbusters históricos de Hollywood, em que as mulheres têm cabelos bem cortados, sobrancelhas aparadas e axilas depiladas), mas a verdade é que é impossível dissociarmos totalmente o tempo que vivemos, seus valores, seu passado, seus aprendizados, do tempo representado.

Lembre-se, por fim, de que a língua também é parte da cultura e também se modifica com o tempo. O próprio vocabulário das personagens precisa ser adequado à época: tenha cuidado com gírias, regionalismos ou construções comuns hoje, mas não utilizadas na época de ambientação do texto.

Textos históricos contemporâneos e textos históricos clássicos A literatura tem uma tradição milenar, então podemos ler textos escritos em épocas históricas, como as revoluções francesas, a formação das nações, das repúblicas, etc. Esses textos são clássicos de Balzac, Stendhal, Walter Scott, Goethe, Machado, e são excelentes fontes de aprendizado para quem deseja reconstruir determinada cultura de época.

Mais comuns, porém, são textos escritos em uma época e que retomam épocas anteriores. Eça de Queirós, por exemplo, escreveu o ótimo Ilustre Casa de Ramires, sobre a formação de Portugal, voltando aos anos 1100. Embora seja um texto antigo (escrito nos anos 1800), ele não é autêntico na representação do passado.
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Este material é parte da Oficina de Criação Literária Online.  
Inscrições abertas.
http://www.oficinaliterariaonline.com.br

Fonte:
Texto enviado por Marcelo Spalding.