domingo, 31 de janeiro de 2021

Carlos Eduardo Novaes (Volta às aulas)


(Um retorno cada vez mais caro)


Juvenal Ouriço olhou o cartaz da porta: ”Escolinha A Toca da Raposa”. Entrou, sentou-se e alisando seus vastos bigodes ficou aguardando diminuir o movimento da secretaria. Quando a última mãe de aluno retirou-se, Juvenal levantou-se e dirigiu-se à secretária:

- Por obséquio, eu desejava fazer uma matrícula.

- Pois não - disse a moça, apanhando uma ficha de matrícula - como é o nome de seu filho?

- Não. Não é para o meu filho.

- Não? Pra quem é então? Seu sobrinho?

- Não senhora. É pra mim mesmo.

- O senhor? Mas aqui nós só temos maternal, jardim, alfabetização, essas coisas. É uma escolinha de primeiro grau.

- Eu sei - respondeu Juvenal muito sério - eu vim me matricular no jardim de infância.

Meio assustada a moça perguntou se Juvenal tinha o certificado de transferência de outra escola. Como Juvenal dissesse que sua última transferência em escola primária foi em 1948, a professora afirmou que seria preciso fazer um teste ”para saber em qual jardim colocá-lo”. Distraída, preenchendo  a ficha indagou: ”Tem mais de seis anos?”

- Seis anos o quê? - perguntou Juvenal. - De casado? De formado?

A professora apressou-se em dizer que a pergunta era mera formalidade porque ”de acordo com a lei, se o senhor tiver mais de seis anos de idade já poderá ser alfabetizado”.

Juvenal declarou que não estava interessado em ser alfabetizado. Ficou decidido então que iria para o terceiro grau do jardim de infância. A moça pediu-lhe os documentos: certificado de nascimento, atestado de vacina antivariólica, atestado audiométrico e três retratos três por quatro.

- Retrato recente? - perguntou Juvenal - ou de quando eu tinha cinco anos?

A professora informou o preço da anuidade, deu o modelo do uniforme e forneceu a relação do material escolar.

Juvenal leu com atenção a longa lista e observou:

- Esse material aqui é até pro dia do vestibular?

- Não, senhor.  É só para esse ano. O senhor vai querer ônibus?

- Não, obrigado - respondeu Juvenal - eu tenho carro.

Juvenal saiu e enquanto se dirigia ao banco para levantar um empréstimo que lhe permitisse fazer as compras que a escola pedia, pensou que se John Kennedy fosse vivo certamente  diria que ”o preço da educação é o eterno endividamento”.

Na papelaria, depois de brigar mais do que no dia em que foi atrás dos ingressos para o desfile das escolas de samba, Juvenal finalmente conseguiu comprar tudo. Na saída, porém, não aguentou com o peso do embrulho. Teve que chamar um carregador, desses que trabalham no Galeão, mas que no período que antecede a volta às aulas fazem bico na porta de papelarias. Já na casa de uniformes, Juvenal só teve dificuldades em arranjar uma calça curta e um avental  para seu tamanho. Ao seu lado, uma senhora pedia o uniforme da escola Gruta do Leão.

- A   senhora -  perguntou  o vendedor  -  quer completo?

- É sim - disse ela - completo, com camisa, calça, gravata, meias e os sapatos. Quanto é?

- Quatrocentos cruzeiros.

- Quatrocentos cruzeiros? - gritou ela, remexendo o dinheiro na bolsa.

- Então me dá só as meias.

- Tudo um absurdo - exclamou ela - o custo de vida está pela hora da morte.

- É verdade - completou Juvenal - e o custo das aulas está pela hora do recreio.

No primeiro dia de aula lá estava Juvenal Ouriço no fim da fila (era o mais alto da turma) entrando na sala de avental e merendeira. Assustou-se um pouco com o tamanho das mesas e cadeiras: a sala, como toda sala de jardim, mais parecia um quarto de bonecas. Seus coleguinhas foram se sentando e Juvenal permaneceu de pé à procura de um lugar.

– “Tia Lúcia”, disse, ”será que não tem uma cadeira um pouquinho  maior para mim?”

Tia Lúcia respondeu que na sala não havia privilégios e mandou Juvenal sentar-se junto com Fabinho, Beto e Mariana para a aula de pintura. Muito educado Juvenal puxou a cadeirinha, pediu licença e arrumou-se como pôde. Mal sentou-se Mariana correu e se agarrou na saia de tia Lúcia.

- Estou com medo, titia - disse - ele parece o Lobo Mau com aquelas pernas cabeludas e aqueles pés enormes.

- Não tenha medo - procurou acalmá-la tia Lúcia - ele é seu coleguinha.

Mariana, porém, não quis voltar e tia Lúcia foi obrigada a deslocar Rodrigo para a mesa de Juvenal que ficou formada  só por garotos:

- É melhor assim - ponderou Juvenal já inteiramente desinibido - assim a gente pode falar palavrão à vontade. Que é que nós vamos fazer?

- Agora é a aula de pintura - disse Fabinho.

- Ora Fabinho deixa essa aula pra lá - disse Juvenal puxando um baralho do bolso e embaralhando-o - vamos jogar alguma coisa. Que é que vocês sabem jogar?

- Burro em pé.

- Não. Burro em pé também é demais. Que tal um pôquer?

Depois veio a hora da rodinha científica. Tia Lúcia ficava no meio da sala contando histórias e os garotos se punham à vontade para ouvi-la.

- Tia Lúcia - pediu a palavra Juvenal - qual é a história que a senhora vai contar hoje?

- A da Branca de Neve.

- Não. Pelo amor de Deus, a da Branca de Neve não - gritou Fabinho, que é um garoto muito inteligente - já está muito manjada.

- É sim, está muito manjada - completou Juvenal solidário ao coleguinha. - Não dá pra contar uma historinha  da Cassandra Rios?

Tia Lúcia ficou ruborizada com a sugestão de Juvenal. Resolveu deixar a rodinha para mais tarde e iniciar a aula de música. Botou um disco na vitrolinha e enquanto procurava  outros, agachada de costas para a sala, sentiu alguém bater-lhe no ombro:

- Vamos dançar, tia Lúcia?

Era Juvenal.

Tia Lúcia já estava perdendo a paciência. Ralhou com Juvenal e disse que se ele continuasse se comportando mal iria falar com a orientadora pedagógica para chamar seus pais à escola. Juvenal abaixou a cabeça e prometeu se comportar  direitinho. E realmente não deu mais uma palavra.

Na hora da merenda, inclusive, enquanto os outros alunos tomavam seu café com leite, pão e manteiga, refrigerante, doce, biscoito, Juvenal recolheu-se a um canto e sem perturbar ninguém, traçou o maior galeto regado a uma cervejinha.

Juvenal passou o resto do dia tendo uma conduta exemplar.  Terminadas as aulas despediu-se dos coleguinhas e quando ia saindo, tia Lúcia interceptou-o:

– Você não pode sair sozinho.

- E por que não?

- Os alunos do jardim só podem sair com um responsável.

- Mas eu já sou responsável. Não preciso de outro.

- Claro que precisa. É do regulamento. Para evitar o rapto.

- E a senhora acha que alguém vai querer me apanhar no meio da rua?

- É evidente que vai - disse tia Lúcia observando seu uniforme, o avental e a merendeira - principalmente o Pinei.

Juvenal sentou-se emburrado no degrau da escada e indagou:

– E, agora, como é que eu saio?

Tia Lúcia sugeriu que ele chamasse a mãe.

– Minha mãe está muito velhinha.

Então chame a sua mulher.

– Minha mulher está trabalhando. A empregada serve?

Servia. Então, ligou para casa:

- Alô Maria? Aqui é o doutor Ouriço. Eu quero que você dê um pulinho aqui na escola para me buscar. Como? As crianças? Não interessa as crianças, isto é uma ordem, Maria: venha me buscar! - E bateu o telefone.

Aguardando a chegada da empregada junto com Juvenal,  tia Lúcia não conseguiu esconder sua curiosidade e perguntou:

–  O que o senhor está fazendo aqui na escola? O senhor já não sabe de tudo isso?

- Sei, mas meus filhos não sabem.

- E o senhor tem filhos?

- Tenho, cinco, pequenos.

- E por que não os coloca na escola?

- Porque eu teria que abrir falência.  Achei que seria melhor assim: ao invés de mandá-los, eu venho e à noite quando chego em casa conto pra eles tudo o que aprendi.

- E dá resultado?

- Pode não dar. Mas sai muito mais barato.

Fonte:
Carlos Eduardo Novaes. Juvenal Ouriço Repórter. RJ: Nórdica, 1977.

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