quinta-feira, 21 de janeiro de 2021

Monteiro Lobato (Toque outra)


— ORA TOQUE, Sinhazinha, toque!

— Mas eu não sei...

— Não faz mal, toque assim mesmo, não se faça de rogada. Aquela valsinha...

A pálida menina geme novos luxinhos faceiros, torce os pingentes da almofada e por fim levanta-se, toda dengues, a desculpar-se.

— Vou errar tudo, não tenho estudado há muitos dias, estou esquecida...

— Não faz mal, toque!...

Sinhazinha senta-se ao piano, folheia a maçaroca de músicas e preguiçosamente abre diante de si uma valsa de Aurélio Cavalcanti. E toca: blem, blem, belelém...

A sala então, que só por aquilo esperava, afunda na conversa. O barulho do piano, abafando o tom geral da palestra, dá azo à delícia dos duos, em que cada um pega de cochicho com quem mais o atende. As matronas, donas de casa, caem no assunto dileto — os criados!

— Ai, os criados! Que gente, prima! Que pestes! Não fazem “isto” sem uma pessoa estar em cima; se vão a compras, roubam no troco... E não se lhes diga uma palavrinha! Pedem a conta e dizem desaforos, os demônios...

As meninas rodeiam o moço, que impa como um galo e desdobra o farnel da banalidade tão cara às mulheres; todas ouvem-no atentas, bebem-lhe os ditos, riem das suas pilhérias, acham-no “levado”.

Titinha diz, sorvendo-o com os olhos:

— Este seu Raul é mesmo da pele!

Num desvão da janela cochicha-se um namoro; a das Dores conta à do Carmo que não gosta mais do Luisinho por umas certas coisas que viu no último baile. Do Carmo comenta, sentenciosa:

— Os homens! Os homens!...

Duas em outro canto riem perdidamente, em casquinadas argentinas. Nisto Sinhazinha acaba a valsa. A sala dá pela coisa, interrompe a tagarelice e pede mais:

— Muito bem, Sinhazinha, muito bem! Toque outra!...

Sinhazinha ataca uma scottish.

A sala retoma os temas interrompidos.

— Mas... como eu ia contando...

Impossível negar as vantagens sociais da música.

Fonte:
Monteiro Lobato. Cidades mortas. s/d.

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