— ORA TOQUE, Sinhazinha, toque!
— Mas eu não sei...
— Não faz mal, toque assim mesmo, não se faça de rogada. Aquela valsinha...
A pálida menina geme novos luxinhos faceiros, torce os pingentes da almofada e por fim levanta-se, toda dengues, a desculpar-se.
— Vou errar tudo, não tenho estudado há muitos dias, estou esquecida...
— Não faz mal, toque!...
Sinhazinha senta-se ao piano, folheia a maçaroca de músicas e preguiçosamente abre diante de si uma valsa de Aurélio Cavalcanti. E toca: blem, blem, belelém...
A sala então, que só por aquilo esperava, afunda na conversa. O barulho do piano, abafando o tom geral da palestra, dá azo à delícia dos duos, em que cada um pega de cochicho com quem mais o atende. As matronas, donas de casa, caem no assunto dileto — os criados!
— Ai, os criados! Que gente, prima! Que pestes! Não fazem “isto” sem uma pessoa estar em cima; se vão a compras, roubam no troco... E não se lhes diga uma palavrinha! Pedem a conta e dizem desaforos, os demônios...
As meninas rodeiam o moço, que impa como um galo e desdobra o farnel da banalidade tão cara às mulheres; todas ouvem-no atentas, bebem-lhe os ditos, riem das suas pilhérias, acham-no “levado”.
Titinha diz, sorvendo-o com os olhos:
— Este seu Raul é mesmo da pele!
Num desvão da janela cochicha-se um namoro; a das Dores conta à do Carmo que não gosta mais do Luisinho por umas certas coisas que viu no último baile. Do Carmo comenta, sentenciosa:
— Os homens! Os homens!...
Duas em outro canto riem perdidamente, em casquinadas argentinas. Nisto Sinhazinha acaba a valsa. A sala dá pela coisa, interrompe a tagarelice e pede mais:
— Muito bem, Sinhazinha, muito bem! Toque outra!...
Sinhazinha ataca uma scottish.
A sala retoma os temas interrompidos.
— Mas... como eu ia contando...
Impossível negar as vantagens sociais da música.
Fonte:
Monteiro Lobato. Cidades mortas. s/d.
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