sexta-feira, 29 de janeiro de 2021

Aparecido Raimundo de Souza (Parte 30) Invenção de espanto

Vila Velha/ES

PENSEM NUM SUJEITO trabalhador e honesto, cumpridor de seus deveres até debaixo d'água. O Alpheu! Este mesmo, escrito assim, desta forma arcaica, Alpheu com ‘PH’. E ele, por seu turno, fazia questão de deixar pontificado, o ‘PH’. Sem dúvida alguma, este era o cara, apesar de não gostar da melodia do Roberto Carlos, onde o cantor de Cachoeiro de Itapemirim, filho de dona Laura e seu Robertino, dava conta de um indivíduo que exaltava a figura auspiciosa de um craque, o dono do pedaço e da cocada preta, sobretudo, que fazia as honras em todos os sentidos, inclusive e, principalmente, se abrindo feito paraquedas às princesas de todas as idades, o que tornou o bendito fruto amável e benquisto entre as beldades do sexo oposto, Brasil e desvãos além fronteiras.

Mas o nosso Alpheu com ‘PH’, sem tirar nem pôr, fora o escolhido. Homem sério, até seu relógio interno seguia as regras do excelente. Sem nenhuma mancha que tornasse seu passado obscuro, servia de chacota e de gozação para os amigos. Na verdade, um espectador inocente, figura ridícula pela maneira por que se deixava, sobretudo, escravizar com as barbáries e investidas dos idiotas que se diziam e se proclamavam ‘seus chegados’: ‘Você é o cara, mano —, afirmava um’. Este ‘cara é você’ —, ajuntava outro. Por conta deste ‘cara sou eu’, o homenzarrão queria morrer. Tirando esta particularidade, Alpheu com ‘PH’, um santo. Do pau oco, mas santo. Bom pai, ótimo marido e seleto companheiro, principalmente com os colegas de trabalho. O patrão o adorava. Seu trajeto, nos trezentos e sessenta e cinco dias do ano... Apenas um. Com uma variante.

De casa para o trabalho e do trabalho para casa. Nada mudava a sua rota. A vida, para ele, se fazia mais obsessiva que as liquidações das Lojas Renner, anunciando seus auspiciosos e chamativos Black Friday. Alpheu com ‘PH’, como todo ser humano perfeitamente imperfeito, claro, exatamente por ser humano, tinha (apesar dos pesares e da vidinha reta e sem nódoas), cinco defeitos inquestionáveis. Primeiro deles. Gostava de fazer filhos. Por conta desta vida desregrada, no escuro de quatro paredes, enrodilhado com a sua metade gostosa do casamento, a Belinha, e gozando, com ela, os prazeres das fogosidades calientes, trouxera, à luz, em consequência das viradas de olhinhos, nove boquinhas para dar de beber e comer. Nove. Imaginem só! O segundo defeito. Ao sair do trabalho (pegava às cinco da manhã, na padaria do português Manuel Joaquim, parava uma hora para almoçar e, quinze minutos, para engolir o café servido como lanche).

Largava, o batente, às dezessete horas. Todo santo dia esta rotina enervante. O terceiro defeito. O pior deles. Antes de chegar em casa, vinha a variante acima citada. Alpheu com ‘PH’, passava, impreterivelmente, pelo boteco do Aristeu da Conceição (duas quadras de onde morava) e, uma vez ali, alagava os bofes, tomando todas as purinhas com seus amigos de copos. Ficava enraivecido, porque, nesta hora, os falsos amigos das garrafadas zoavam da sua vida certinha, cantando ‘Este cara sou eu’, do Roberto Carlos. Alpheu com ‘PH’, ficava pra morrer. Odiava, com todas as forças, esta canção e, se tivesse poder, pegava seus parceiros e os mandava para verem Papai do céu antes da hora marcada. Um suplício mal parido de que não cogitou, em nenhum momento, a sua postura de cidadão de bem.

Quarto defeito. Chegava, em casa, por volta das vinte e uma e o fazia, aos tropeços, chamando urubu de Nego do Burel e confundindo os postes com os mourões das cercas de arame ao longo da avenida. Morava quase no final dela, num bonito sobrado de alvenaria que lhe fora deixado de herança pelos pais falecidos. Ainda no jardim, ao ouvir o som das crianças jogando em frente à televisão, ato contínuo, pintava o quinto defeito. A criatura então soltava a âncora, deixando, à mostra, um temperamento virulento. Em nome deste drástico frenético, se fazia acessível aos desastres do horror. Arrancava o cinto da calça e pulava, num gingado à Jackie Chan, metendo sem dó nem piedade, um punhado de pancadas nos costados dos pobrezinhos. Neste pega pra capar, os quatro garotos com as idades de sete, nove, treze, e quinze anos, bem ainda, em igual número, as meninas, com dez, onze, quatorze, e dezessete, debandavam, em solitários impulsos, cada um para seu quadrado, os respectivos fundilhos pegando fogo, além das pernas e braços em carne viva. Coisa de meio minuto. O bastante para a gurizada dispersar, se escondendo, entre choros e atropelos, fora do real, todavia, em uma asselvajada realidade adentro.

Este sistema abrupto não mudava nunca. Bastava por os pés no alpendre, o couro começava a comer e se esparramar solto nas oito crianças. Alto lá: não somavam nove? Sim, isto mesmo, nove. A mais nova, a Aninha, de cinco anos, não alimentava o hábito de ficar jogando com os irmãos. Dava oito horas, a lindinha saia de cena e partia para a horizontal. Por certo, se estivesse entre os consanguíneos, não escaparia das perversidades do Alpheu com ‘PH’. Belinha, coitada, a esposa aflita, vinha lá de dentro correndo, apavorada (às vezes, com uma tigela cheia de pipocas nas mãos ou uma garrafa de refrigerante) e, ao se deparar com o bafafá, se intrometia às cegas para cima do marido, pedindo a ele, aos gritos vociferados que não agisse daquela forma com seus rebentos.

Afinal de contas, eles não tinham culpa de terem sido postos no mundo:

— Alpheu, pelo amor de Deus — separava, ou tentava. – Pare de tratar as suas crias deste jeito. Eles não estavam fazendo nada, só jogando. Deixe de ser violento. Respeite a sua família, em nome do Senhor Jesus. Que loucura! Todo santo dia este perrengue... Olhe pela janela. Nossos vizinhos, boquiabertos e pasmos, presenciando os descalabros das suas malditas biritas.

Alpheu com ‘PH’, no seu intenso sentimento de ódio descomedido, na danação de distribuir cintadas, às vezes acertava a pobre mulher onde não devia.

Mesmo ferida, braços e pernas, ou onde pegasse as correadas, a piedosa e santa mãe não deixava de se impor. Alpheu com ‘PH’, sequer dava ouvidos aos seus clamores e lamúrias. Cansado de distribuir porradas, o pinguço saía cambaleando, segurando aqui e acolá e acorria para o banheiro. Antes de fechar a porta, deixava sintetizado à esposa ultrajada:

— Não se esqueça: Alpheu, sua vadia... Alpheu com ‘PH’.

Belinha, ofendida e insultada na sua moral, apesar dos safanões e arranhões, não abria a guarda. Resmungava, xingava, chorava e para extravasar as suas inquietações, geralmente mandava junto com seus derrotismos alguma coisa pesada, jogada com força em direção ao embriagado:

— Vai para os quintos, cão sarnento.

O tinhoso, duro na queda, não arredava. Seguia sempre assim, sem nenhuma mudança. Em parte, culpa da mulher. Ora, convenhamos. Sabendo que o marido não mudava seus modos em relação aos jogos, por que não exigia que as crianças jantassem e subissem para dormir antes que o tresloucado desse o ar da graça? Se tivesse se precavido... Aconteceu, entretanto, que num final de semana os meninos haviam acabado de chegar de uma festinha de aniversário de um vizinho parede-meiado. Todos os nove. Por algum motivo, até o presente momento não esclarecido devidamente, Alpheu com ‘PH’, saiu mais cedo da padaria. Passou pelo boteco antes da hora prevista e se empanturrou, em rodadas à gostos apurados, com os amigos de sempre. Em seguida pegou o rumo de seu barraco. Ao chegar no portão, dali mesmo, ao ouvir as risadas barulhentas vindas do interior da residência não se fez de rogado. Arrancou da cinta e...

...Meteu os pés na porta e escancarou partindo para o ataque. Aos estropigaitados* de ‘eu mato’, pegou o primeiro, agarrou o segundo, esbofeteou o terceiro, socou o quarto... Belinha, em contrapartida, se armou de uma cadeira e investiu contra o desmiolado. Ele não se deteve. Seguiu mandando correadas e bordoadas no quinto, no sexto... Belinha, braba (pensem numa fêmea endiabrada), quebrou uma cadeira nas pernas dele. Entretanto, esta medida não se fez objetiva pelo menos para fazê-lo parar. Alpheu com ‘PH’, não se intimidou. Correu para o sétimo, grudou nos peitos do oitavo, derrubou o quinto...

Voltou para o segundo... Aplicou uma rasteira no oitavo... Quando, avistou num canto, a nona, ou seja, a Aninha, a coitadinha agachada, chorosa e assustadíssima, as mãozinhas cobrindo suas estremeções, Alpheu com ‘PH’, voou feito um leão faminto para deitar o sarrafo na brejeira:

— Até que enfim, esta maldita, hoje, está no bolo. Saiba, praguinha dos infernos, que de agora você não me escapa. Vai apanhar dobrado. Faz tempo que não boto os sentidos em seu magérrimo esqueleto...

Belinha, ao ouvir estas palavras, chegou ao ápice do seu desespero. Alcançou os píncaros do seu furor. Galgou às cumeadas das contrariedades que a dominavam e a fizeram crescer na sua cólera interior. Como um raio, passou as mãos num vaso de flores enorme e pesado (mais robusto que a consciência de Rodrigo Maia), que descansava, solitário sobre uma mesinha de centro, e mandou direto nos cornos de sua parte podre da maçã. Alpheu com ‘PH’, titubeou. Tentou ir em frente. Qual o quê! Ensaiou alguns passos. Inútil. Desabou, caindo de joelhos, o sangue jorrando abundantemente em meio à sua testa.

Antes de sair do ar, de vez, ouviu estas palavras da sua linda consorte:

— Na minha caçulinha, seu verme peçonhento, você não encosta as patas. Esta ai, seu corno safado, não é sua filha.
* * * * * * * * * * * * * * * *  
Vocabulário:
Estropigaitados
– atrapalhados, embaraçados, confusos.


Fonte:
Aparecido Raimundo de Souza. “Comédias da vida na privada”. RJ: Editora AMC-GUEDES, 2020.
Texto enviado pelo autor.

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