“Tem poucos, raros amigos — o homem atrás dos óculos e do bigode.” O verso sempre me apavorou. Sempre quis ter muitos, vastos amigos, inúmeros, incontáveis, 1 milhão de amigos, como Roberto Carlos, pra bem mais forte poder cantar.
“Poucos, raros amigos”, reitera Drummond, e eu imaginava um pobre homem preso eternamente àquele início de festa em que só chegou um casal ou àquele fim de festa em que só sobrou um casal.
“O inferno são os outros”, diz o personagem de Sartre sobre a companhia obrigatória de duas pessoas, e entendo a agonia dele, não porque fosse melhor ficar só, mas porque eram só duas pessoas. “O inferno são poucos outros”, deveria ter concluído o personagem.
Não há solidão pior que a companhia de apenas um vizinho no elevador, de dois primos distantes no Natal, de só três espectadores numa peça. Poucos outros são o inferno, muitos outros são o Carnaval.
Lembro a história de uma amiga que foi estudar na Alemanha. Depois de algumas semanas solitárias em que seus olhares cúmplices davam n’água, finalmente conseguiu se aproximar de uma colega local, com quem trocou um lápis, um comentário maldoso e, finalmente, algumas risadas.
“Acho que esse é o começo de uma bela amizade”, pensou ela, como Bogart. Mas “Casablanca” se passa num bar no Marrocos, e não numa faculdade alemã — onde tiveram início poucas, raras amizades.
No dia seguinte, aos sorrisos, a suposta amiga alemã passou a evitá-la. Trocou de lugar na sala, parou de trocar olhares e, ao encontrá-la na rua, chegou a trocar de calçada. “O que foi que fiz de errado?”, pensou nossa conterrânea. Depois de algum tempo, tomou coragem para interpelar a colega.
“A gente estava se aproximando e você sumiu”, ela disse. “Desculpe”, explicou a alemã, “é que já tenho amigos o bastante”. E prosseguiu. “Você parece legal, mas a gente estava quase ficando amiga, e, se isso acontecesse, teria que ir à sua festa de aniversário, ao lançamento do livro da sua mãe. Fiz as contas e descobri que não tenho tempo para mais nenhum amigo.”
Na época achei cruel, uma história de terror alemã. Hoje entendo a amiga. O inferno é ter amigos demais, que é quase igual a não ter amigo nenhum.
Nos últimos meses, tenho gostado de falar apenas com os amigos de que gosto muito. “Tem poucos, raros amigos — o homem atrás da máscara e do face shield.” É bom também.
Fonte:
Folha de São Paulo. Opinião. 11 de agosto de 2020.
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