quarta-feira, 27 de janeiro de 2021

Edy Soares (Cristais Poéticos) VII

EPÍLOGO

Já sem querer mudar o mundo,
Sinto-me apenas um sentinela,
Um simples vigia.

Arrisco olhares pela janela.
É imenso, é profundo
O abismo da cidade fria.

Nem frestas, nem lampejos,
Nem luz no fim do túnel.
Até me fraquejo!
Nada vejo; nada espero!

Ao que me parece,
No intervalo de cada prece,
Assim como as mentes,
As ruas ficaram vazias.

Sem luta, sem luto,
Sem recompensa,
Se finda a história.

Não há música,
Ninguém toca,
Ninguém mais escuta,
Não há mais, sequer,
Quem movimente a batuta.
* * * * * * * * * * * * * * * *  

JANGADEIRO

Jangadeiro na noite escura,
Sem vela, sem armadura,
Sem remo, perdeu o norte.
Tá entregue ao acaso e à sorte.

Jangada que sob os pés se desfaz,
Socorro que não chega mais,
Pois a esquadra perdeu seu dono,
E os fuzileiros caíram no sono.

Tempestades que trazem medo,
Mares de céu cinzento,
Jangadeiro pede socorro,
À deriva vai noite adentro.

Na terra, ficou sem chão;
No mar, quase sem jangada
à procura de peixe ou pão,
Perdeu-se da enseada.
* * * * * * * * * * * * * * * *  

O SILÊNCIO

Silenciaram-se os sinos e buzinas,
O trem não mais saiu da estação.
Folhas vagam sopradas nas calçadas,
Faz algum tempo...
Muito tempo, desde aquele último clarão.

Da janela, nunca mais trancada,
A vista da rua gélida, fantasma.
Nada que tenha vida ou movimento,
A não ser coisas que o vento ainda sopra.

Imagens na memória, longínquas,
De pessoas sentadas na praça,
E gritos infantis nunca mais ouvidos,
Somente o ruído do vento que passa.

A lua...
Ah! A lua parada no céu,
Até o sol, não mais movimenta,
Parece que a terra agarrou em sua órbita,
Nem sei se é ela, ainda um planeta.

Apalpo nas coisas, me apalpo a toa,
Que susto!...
Nada sinto! Nada sinto!
Estou abstrato, não toco nem grito,
Não tenho um formato, tá tudo esquisito.

Pouco a pouco arisco, arrisco um grito,
Nada sai da garganta, me vem um arrepio!
Não há marcação de tempo, só ouço o vento,
Não há mais dia ou noite... Ficou infinito.
* * * * * * * * * * * * * * * *  

QUANDO A ALMA SE VAI

Um dia a alma acorda,
Bate asas e vai-se embora.
Aqui ela deixa apenas
Saudades nos olhos que choram.

Se vai pra lugar distante,
Repousar em outras esferas,
Preparar, talvez, lugares
Pra outras que aqui esperara.

De onde veio é incógnita,
Aonde vai não se sabe.
Se encontra lugar melhor,
Em nosso pensar não se cabe.

Se aonde vai é eterno,
A alma não é pequena,
Mas grande se prende ao fato
De que a vida aqui vale à pena.
* * * * * * * * * * * * * * * *  

RECOMEÇO

 Eu só queria
Colher a alegria
Que têm as crianças
E guardar... Pra se um dia
Faltar esperança
Por onde eu passar.

Eu só queria
Colher, da flor,
O perfume que exala
E levá-lo na mala,
Pra entregar a quem for,
Onde o amor faltar.

Eu só queria
Colher, dos passarinhos,
O canto que alegra
E espalhá-lo na terra,
Quando o homem não tiver
Mais ânimo pra cantar.

Eu só queria
Colher, dos anciãos,
A paz e a sabedoria,
Pra se algum dia
Aos que, por ganância,
O coração se fechar.

Eu só queria
Mostrar pra esse povo,

Que quando acabar
O que Deus criou,
Por que o homem não cuidou,
Quem colheu a semente
Fará novamente
Brotar, desse chão,
Uma nova estação
E um recomeço, de novo.
* * * * * * * * * * * * * * * *  

REBANHO PERDIDO

Estourada boiada, sem rumo,
Berrante que não ecoa,
Manada que, sem um norte,
Se perde correndo à toa.

Sem um campeiro nobre,
Condutor que conhece a trilha,
Tem lugar, tantos errantes,
Que entregam o rebanho à matilha.

Não andam mais, perfilados,
Dispersos e em desatino,
Pisoteia-se toda a manada.

Qual rebanho que, sem campeiro,
Em trote, vão sem destino
Ou perdidos em disparada.

Fonte:
Edy Soares. Flores no deserto. Vila Velha/ES: Ed. do Autor, 2015.
Livro enviado pelo poeta.

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